Gênero e Sexualidade: novas perspectivas e intersecções sobre experiências indisciplinadas

2023-04-15

Durante muito tempo, as ciências humanas foram conduzidas por homens brancos, cisgêneros e heteronormativos, e voltadas às narrativas sobre as aventuras de um sujeito social e histórico com as mesmas características. Desde há pelo menos quatro décadas, e hoje principalmente, podemos dizer que o campo dos estudos de gênero e da sexualidade tem rompido as amarras do pensamento heterossexual e, quanto ao gênero, tem se tornado cada vez mais indisciplinado (OLIVEIRA, 2019). No Brasil, desde os anos 1980 e, principalmente, 1990, os estudos das relações de gênero e da sexualidade têm se constituído em um amplo e complexo campo de investigação dos modos de construção das subjetividades, corporalidades e sexualidades. Com as contribuições de Joan Scott (1990), Judith Butler (2013) e Connell (1995, 2015), expandiram-se ainda mais o vocabulário, as possibilidades de interpretação dos fatos, o corpus documental, analítico e teórico. Adensaram-se as análises sobre temas e sujeitos, até então, escamoteados pelas narrativas hegemônicas, tais como a sexualidade, a história da vida privada e do cotidiano, do amor e amizades, da família, da infância, entre tantos outros (RAGO, 1998).

Se, inicialmente, o gênero foi entendido como sinônimo de “mulher”, na contemporaneidade, abordar as questões de gênero significa ampliar o foco das “mulheres” para o processo histórico de construção das “relações entre homens e mulheres, mas também entre mulheres e entre homens.” (PEDRO, 2011). Assim, além das mulheres, os homens passaram a ser compreendidos também como sujeitos de gênero (CONNELL, 2005, ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013). Na esteira dessa complexificação analítica, e assumindo seu caráter marcadamente político, vimos emergir a problematização da cisgeneridade e da transgeneridade, reconhecidas em sua dimensão histórica e cultural no processo de produção e significação dos corpos sexuados e generificados. Essa insurgente perspectiva trans assume o enfrentamento levado a cabo por pesquisadores e pesquisadoras, no sentido de problematizar as naturalizações produzidas para e sobre as inconformidades e as conformidades de gênero e sexualidade em relação ao cis-tema (sistema) hetero-normativo (LOPES, 2018).

 Assim, a desconstrução dos binarismos que polarizam os gêneros, as sexualidades e as corporalidades permitiu a percepção da multiplicidade de mulheres, mas também possibilitou o desenvolvimento dos estudos das masculinidades, ambas as temáticas consideradas em uma perspectiva interseccional. Ou seja, o desabrochar, fortalecimento e difusão dos estudos das subalternidades chamou atenção para o problema das diferenças dentro das diferenças, isto é, para a importância de análises que articulam os vários eixos ou critérios de diferença, conjugando gênero, raça, classe, entre outros, em análises interseccionais. Consagrando o gênero como uma categoria útil à análise histórica, Scott ressaltou a importância de se investigar como o gênero é um sentido primário das relações de poder e um pressuposto das instituições sociais, de maneira que o emprego da categoria gênero tornou-se pertinente aos variados campos de investigação social, histórica e antropológica. É no sentido dessa abertura à pluralidade de áreas de pesquisa, assim como de objetos e recortes temporais, que o dossiê temáticoGênero e Sexualidade: novas perspectivas e intersecções sobre experiências indisciplinadas” quer problematizar os modos como os gêneros se fazem e desfazem nas áreas de saber das ciências humanas e sociais, abordando temas como histórias das mulheres e dos homens, das feminilidades, das masculinidades e de dissidências à matriz cis-heteronormativa. O objetivo é discutir as ordens, padrões institucionais e normas de gênero e de sexualidade impostas e burladas por sujeitos que destacam a indisciplina à ordem e padrões vigentes em dada sociedade.  

Dessa maneira, neste dossiê serão bem-vindos estudos, pesquisas e ensaios forjados a partir de perspectivas sociológicas, antropológicas e históricas interessadas nas relações sociais que engendram os corpos sexuados e que tenham como ponto de partida, chegada ou como caminho, um ou mais dos seguintes tópicos: 1) analisar e problematizar a  produção, social, cultural e histórica das relações de gênero em distintos contextos temporais e espaciais; 2) abordar, de modo interseccional, como os marcadores sociais da diferença atravessam e modulam as possibilidades de “ser”, “estar” e de se “fazer” homem  ou mulher numa dada sociedade; 3) produzir debates e reflexões que explorem distintas perspectivas teóricas já consolidadas ou em emergência, priorizando a interface dos estudos das relações de gênero, das masculinidades e das teorias queers, reconhecendo os limites e potencialidades das aproximações desses campos analíticos; 4) espera-se produção de reflexões, empíricas ou teóricas, que sejam capazes de articular diversos tipos de documentos, com enfoque em diferentes períodos históricos e regiões do Brasil e do mundo; interessa, ainda, que tais análises estejam atentas às dinâmicas não dicotômicas, que articulem campo e cidade, suas centralidades, periferias/margens e possíveis intersecções.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920 / 1940). 2ª Edição. São Paulo: Intermeios, 2013.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. O passado, como falo? : o corpo sensível como um ausente na escrita da história. In:__________ O Tecelão dos Tempos, novos ensaios de teoria da história. SP, Intermeios, 2019, p. 39-56.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

CONNELL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 185-206, 1995.

______. Masculinities. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 2005.

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______; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Estudos Feministas, Florianópolis, v., n. 21, p. 241-282, jan./abr. 2013.

______. Questões de gênero e justiça social. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p.11-48, jan./jun. 2014.

______; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: Versos, 2015.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

LOPES, Fábio Henrique. Cisgeneridade e historiografia. Um debate necessário. In: NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. (Orgs.). História e teoria queer. Salvador, BA: Editora Devires, 2018, p. 77-100.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.2, p. 101-132, 1995.

MAGALHÃES GOMES, Camilla de. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas (Porto Alegre), v. 18, p. 65-82, 2018.

OLIVEIRA, Maria Maria da Glória de. A história disciplinada e seus outros: reflexões sobre as (in)utilidades de uma categoria. In: AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo. (Orgs.). A história (in)disciplinada. Teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória, ES: Editora Milfontes, 2019, p. 53-72.

PEDRO, Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan-jun, p. 270-283, 2011.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu (11), p. 89-98, 1998.

ROCHA, Cássio Bruno Araujo. Identidades narrativas e performatividade de gênero: cruzamentos conceituais possíveis após a morte do sujeito. Revista Gênero, v. 19, p. 025-044, 2018.

_____. Teoria Queer entre a Pós- modernidade e o Presentismo: um caminho crítico possível?.

 

Cássio Bruno de Araujo Rocha

Doutor em História (UFMG)

caraujorocha@gmail.com

 

Natanael de Freitas Silva

Doutor em História (UFRRJ)

natanaelfreitass@gmail.com

 

Rafael França Gonçalves dos Santos

Doutor em História (UFRRJ)

rafael.fgs@hotmail.com

  Prazo para submissão: 12/07   Previsão de publicação: novembro de 2023