v. 4 n. 4 (2020): Dossier Arte, cuidado e tecnologias do bem viver
Quando lançamos a chamada para o Dossier Arte, cuidado e tecnologias do bem viver, na primavera de 2019, não poderíamos imaginar que seríamos surpreendidos por uma pandemia mundial no verão seguinte. Nem que no outono entraríamos em um estado de emergência sanitária, humanitária e política, o qual adentraria o inverno de 2020.
Essa é a estação em que lançamos, com atraso, o volume 4 da Revista Metamorfose. “Atraso” talvez soe agora como um categoria anacrônica, já que o momento não poderia ser mais oportuno, no sentido de oportunidade do kairós grego. O momento certo para refletir sobre a necessidade de buscar modos de conviver, co-habitar e tecer alianças estratégicas entre indivíduos, espécies e culturas, como nossa chamada original convocava.
É digno de nota que os oito artigos, os três ensaios, o manifesto e o diálogo aqui reunidos tenham sido produzidos antes da disseminação do novo coronavírus. No entanto, todos eles, cada um a seu modo, oferecem perspectivas de cuidado e escuta atenta entre corpos, práticas e saberes que dizem respeito aos desafios postos pela atualidade. É assim que essas contribuições nos ajudam a praticar atravessamentos entre artes, tecnologias e ciências, tendo como horizonte comum a saúde e o bem estar, em seus sentidos ampliados.
Começamos por Akasha em Movimento: desenvolvimento neuropsicomotor infantil e sentidos corporais, curso do Paratodos/UFRJ, artigo da artista-pesquisadora Marta Simões Peres e da cientista Maira Fróes que parte da potência da dança como prática restaurativa, e apresenta uma metodologia de cuidado corporal, apostando na diversidade, no acolhimento e no empoderamento das singularidades.
Continuamos com o professor e psicoterapeuta Cezar Migliorin por uma paisagem “ainda instável e cheia de fragilidades” em suas notas com uma prática de Cinema e clínica. Nesse artigo somos conduzidos por uma reflexão sobre a experiência de uma comunidade de cinema, a partir do fundamento comum da produção de imagens. O autor partilha a noção de que, por meio de atravessamentos criativos transindividuais, se restabelece potência de vida, invenção e cura. Cura compreendida não em um sentido medicalizado de oposição à doença, mas no seu sentido originário de zelo, atenção e relação de alteridade.
Seguindo por essa trilha da força conectiva da arte, em suas formas privilegiadas de invenção de mundos, a artista-pesquisadora Leandra Lambert nos fala da construção de espaços de refúgios, narrativas e tecnologias no mundo sublunar, de onde se pode imaginar alternativas e sensibilizar pessoas, ante o cenário de globalização perverso que o capitaloceno anuncia. Também situado entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados, o artista-pesquisador Saulo Almeida promove uma aproximação da morte como estratégia de cura de si, ante os riscos das dinâmicas terapêuticas neoliberais aplicadas por organizações, no formato de workshops de gestão pessoal e exercícios motivacionais.
Em seus relatos sobre vivências das mulheres negras na cidade de Maceió, a arquiteta Mayara Almeida analisa o livre trânsito de corpos racializados e generificados como determinante não apenas para um planejamento urbano inclusivo mas para uma experiência mais democrática de cidade. A questão do controle dos corpos também é tema do artigo do sanitarista Teófanes de Assis, com o tema foucaultiano das tecnologias médicas e corpos dóceis para arquitetar novas subjetividades.
Baseadas na análise de práticas populares de cuidado da medicina tradicional, as pesquisadoras Bianca Rückert e Antônia Vitória Aranha compartilham resultados da pesquisa qualitativa sobre os valores no cuidado em saúde de mulheres camponesas, realizada com o Coletivo de Mulheres Cuidadoras, da região do Vale do Rio Doce. Tratadas como dimensões historicamente relacionadas ao feminino, as tecnologias de acolhimento, práticas de diálogo e afetividade apresentadas pelas autoras expõem o cuidado com a saúde a um só tempo como ciência, arte e relação de comunhão com a natureza.
Por fim, Stefane Souto traz uma potente reflexão sobre a noção de aquilombamento aplicada ao campo das artes e da cultura, “com o objetivo de compreender o que a identidade negra afrodiaspórica, como categoria social dissidente, pode propor em termos de tecnologia de organização e insurgência cultural anticolonial”.
O Manifesto CoMA de Mulheres Artistas abre passagem para os ensaios de artistas pesquisadores, começando com o O dildo nosso de cada dia, apontamentos pornoterroristas de Poliana Paiva sobre tecnologias sexuais que invertem, “nem que por um instante, a perversa lógica da objetificação que massacra os corpos femininos”. Lara Ovídio, através de uma forma de escrita fragmentada, alterna o registro de um diário pessoal do golpe e a análise da obra de dois artistas contra o totalitarismo. Por último, Matheus Montanari apresenta os processos de produção e fruição da instalação interativa Corpo memórico, articulando a teoria ator rede à sua investigação sobre objetos de memória.
Fecha o volume o diálogo entre arte e ciência mediado pelo artista Luca Forcucci, com a participação da cientista Bárbara Carine Pinheiro e desta artista-pesquisadora que vos escreve. Nessa conversa falamos sobre epistemicídios, sistemas de autovalidação, potência poética e política de dispositivos (artísticos e científicos) e identidades e diferenças entre esses campos de invenção de mundo.
É isso. Estamos gratos por publicar, enfim. Demorou, mas como se diz na Capoeira Angola, devagar também é longe.
Paola Barreto a.k.a. Dr Fantasma
Editora Chefe