Afetos para um bem viver: subjetividades, arte e teorias de negras sapatonas

2024-06-12

Afeto, prazer e desejo correspondem a uma tríade teórica que tem sido bastante explorada nos últimos anos, no campo dos estudos das humanidades, em especial, nas artes, nos estudos de gênero e sexualidades e nas linguagens. E, por isso, podemos erroneamente sentir que haja um certo esgotamento sobre tais questões. No entanto, construir um dossiê que nos convide a elaborar saberes que atravessam o corpo através de múltiplas dimensões que constroem subjetividades contracoloniais (Antônio Bispo, 2023), a partir dos usos dos afetos, do prazer e dos desejos produzidos e reencenados coletivamente por pessoas negras sapatonas é imprescindível para a construção contemporânea de conhecimentos e saberes os quais trazem, dentre outras questões, modos de operar a vida em rupturas com o aparato colonial.
Foi Tanya Saunders (2017) que elaborou o termo epistemologia negra sapatão e trouxe para nós uma certa perspectiva de como, perfazendo um ideário diametramente oposto ao modelo que se elegeu como “humano”, sapatonas negras, sejam cis, trans ou não bináries, forjam para si, e para o mundo ao seu redor, outras possibilidades de coexistir em diferença na coletividade. Portanto, seus modos de viver a vida, suas gingados, seus subterfúgios, suas linhas de fuga e seus usos dos afetos colaboram fundamentalmente para uma vida vivível.
“O erótico é pulsão de vida”, já dizia Audre Lorde (2019), através de sua teoria poética ou suas poesias teóricas, nos ensinou que o erótico é um afeto basilar na (sobre)vivência e socialização de e entre sapatonas negras, pois ele, sendo o ânimo nos ajuda a construir caminhos possíveis de Bem Viver, a despeito da força dos afetos coloniais. Assim como o erótico, Audre Lorde (2019) elaborou de maneira sofisticada uma compreensão do afeto da raiva como um uso poderoso de revide diantes das violências afetivas coloniais do racismo, misoginia, lesbo/transfobia.
Rasurar os silêncios históricos em torno dos afetos e prazeres da complexidade sexual das pessoas negras tem sido um investimento basilar, que encoraja a construção de subjetividades eróticas e narrativas de prazer, possibilitando a abertura de novas experiências e trajetos de sentido para as plurais sexualidades negrofemininas. A criação de estratégias, que rasure narrativas coloniais sobre o prazer e o afeto das pessoas negras sapatonas, tem sido um gesto que permite outros trajetos de sentidos para as corporeidades negras, cujo vislumbre aciona práticas de autogestão do prazer que reconstitui o afeto, o prazer, o desejo como energia telúrica vital para o Bem Viver.E para sentir a pulsão dos afetos é preciso estar de pés descalços, em contato com a terra e o mundo, que emana força e energia vital.
Para além da sobrevivência, o Bem Viver, como nos ensina secularmente as experiências comunitárias ameríndias e afro-brasileiras, correspondem a práticas e gestos cotidianos de estar no mundo movimentando afetos, usando-os, de modo a produzir vida e desejos em abundância para nossas comunidades e nossa ancestralidade. Nesse sentido, construir saberes que são atravessados pelos usos dos afetos, como fez Audre Lorde (2019), Mayana Soares (2021) e Geni Núñez (2023); pelos desejos, como nos termos de Deleuze e Guattari (1977), que desaguam como riografias, como nos convida a sentir e elaborar Camila Carmo (2020); assentando a autogestão dos prazeres dos corpos de mulheres negras, em especial, sapatonas, como ensina Luana Souza (apud Mayana Rocha Soares, 2021), a partir de corporeidades pretas, inconformes de gênero e dissidentes sexuais, é construir caminhos possíveis e inevitáveis de Bem Viver.
Nos interessa, portanto, produções textuais e artísticas (artigos, ensaios ou textos artísticos), bem como performances e produções artevistas que coloquem afeto, prazer e desejo como lupa investigativa e como potência criativa das produções de pessoas negras sapatonas. Diante disso, propomos para este dossiê andar de pés descalços para o diálogo e construções teóricas através de artigos, entrevistas, ensaios e produções artísticas que impulsionam os seguintes questionamentos: como usar os afetos para construir Bem Viver? Como estamos fazendo a autogestão do nosso prazer? Quais desejos estão no jogo de nossas vidas?

Nesse sentido, buscamos textos-corpos que dialoguem com os seguintes eixos:
• Feminismos lésbicos negro;
• Transfeminismos negros sapatão;
• Linguagens artístico-teóricas negro sapatão;
• Teoria dos afetos;
• Afetos coloniais;
• Práticas sexuais e seus afetos, a partir de variadas linguagens artísticas, de sapatonas negras;
• Expressões contracoloniais de construir Bem Viver.

Organização:
Ma. Camila Carmo, professora, escritora, pesquisadora e doutoranda no programa de pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA);
Dra. Fátima Lima, antropóloga e professora do programa de pós-graduação em Linguística Aplicada (UFRJ);
Ma. Luana Souza, pesquisadora das corporeidades e de práticas sexuais entre mulheres negras e doutoranda (UNICAMP);
Dra. Mayana Soares, pesquisadora dos afetos e de literatura brasileira e professora na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

Cronograma:
Prazo para submissão: 31 de dezembro de 2024 (até 22h)
Previsão de publicação: até junho de 2025

Referências:

ANTÔNIO BISPO. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Piseagrama, 2023.

AUDRE LORDE. Irmã Outsider. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Autêntica, 2019.

CAMILA CARMO. Riografias e reexistências negras: a poesia de Lívia Natália. 74f. Dissertação (Mestrado). Programa de pós-graduação em Literatura e Cultura.Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2020. Orientação: Prof. Dr. Arivaldo Sacramento de Souza.

GENI NÚÑEZ. Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.

GILLES DELEUZE; FÉLIX GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

MAYANA ROCHA SOARES. Nós: afetos e literatura. 223f. Tese (Doutorado). Programa de pós-graduação em Literatura e Cultura. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2021. Orientação: Profa. Dra. Denise Carrascosa.

TANYA SAUNDERS. Epistemologia negra sapatão. Revista Periodicus, v. 7, n. 1, maio/out. 2017, p. 102-116.