CHAMADA DE TRABALHOS PARA DOSSIÊ - Mulheres e lutas políticas na América Latina: perspectivas materialistas

2024-04-03

CHAMADA DE TRABALHOS PARA DOSSIÊ  -  Mulheres e lutas políticas na América Latina: perspectivas materialistas -Orgs. Rafaela Cyrino, Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) , Patrícia Vieira Trópia, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Luisina Bolla, Universidad Nacional de La Plata, CONICET - Data de Fechamento em 15/maio/24; Publicação 30 jun/24. 

Este Dossiê tem por objetivo publicar pesquisas, preferencialmente oriundas de trabalhos empíricos, que examinem a atuação das mulheres latino-americanas nas lutas políticas, a partir de abordagens materialistas. Visa à publicação de artigos que nos permitam acessar os diversos espaços concretos de participação política na América Latina, onde o aumento da presença das mulheres encontra alguma forma de resistência.
Partimos de uma concepção ampliada de política, que inclui tanto a representação partidária e sindical quanto a participação das mulheres em movimentos sociais e associações populares, cujos protestos são expressão das lutas feministas.
No Brasil, o interesse acadêmico pelo tema “mulheres e política” vem se ampliando ao longo do tempo. A IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995) ocorrida em Beijing, na China, certamente impulsionou novos estudos acadêmicos sobre o tema. Em 2001, publica-se, na Revista Estudos Feministas, o Dossiê “Mulheres na Política, mulheres no Poder”, sob coordenação de Miriam Grossi e Sônia Malheiros Miguel. Há que se referenciar, também, no campo da teoria política feminista os estudos de Marlise Matos e Flávia Biroli sobre mulheres, representação política e violência.
Embora tenha se ampliado o interesse acadêmico pela atuação das mulheres nos partidos, nos processos eleitorais, nos poderes (judiciário, legislativo e executivo) e nos movimentos sociais, ainda existe uma carência de estudos que desenvolvam abordagens notadamente materialistas. É neste sentido que este Dossiê tem por objetivo publicar estudos que busquem analisar, a partir das relações sociais (de produção e reprodução), a atuação das mulheres na esfera política.
Esperamos receber artigos que, partindo da categoria da totalidade, analisem, de uma perspectiva estrutural, as dimensões materiais e ideológicas dos processos de dominação, exploração e apropriação envolvendo o sujeito político “mulheres”. A análise estrutural considera como as lutas políticas das “mulheres” se inserem historicamente nos sistemas capitalista, patriarcal e racista, que ora as unem ora dividem-nas.
Considerar tais processos estruturais significam levar em conta tanto a base material quanto a ideológica que configuram o processo de expulsão das mulheres do mundo político. Colette Guillaumin (2014) cunhou o conceito de “ideologia da natureza”, o qual pode ser útil para explicar as formas de ocultamento da militância política delas, sobretudo nos processos revolucionários. Segundo Guillaumin, a imputação de uma natureza específica às mulheres, uma natureza fundamental, imóvel, permanente, não transcendente, faz parte do processo de dominação, pois elege os Homens como o único referente para se pensar a sociedade humana, a consciência e a conduta política. Nestes termos, toda iniciativa política por parte dos apropriados tende a ser duramente rejeitada ou reprimida.
Como a contradição faz parte da realidade social dos diversos sistemas de opressão, são bem-vindas análises que permitam compreender como as opressões de sexo, classe e raça se entrelaçam não só nas diversas arenas da luta política, mas no interior de cada movimento social.
Com esse propósito, são bem-vindas análises materialistas teoricamente informadas por distintas correntes feministas, como o feminismo materialista, o feminismo marxista, o feminismo negro, o feminismo decolonial, entre outras; excetua-se o feminismo liberal, que se revela incompatível com a proposta desse Dossiê.
Levando-se em conta que o sujeito político “mulheres” não é homogêneo, pois atravessado por múltiplas opressões, torna-se fundamental que as análises sejam amparadas pela categoria da consubstancialidade (Kergoat, 2010). Como as relações sociais de sexo (incluindo a sexualidade), raça e classe encontram-se imbricadas na realidade social é importante considerar como as diferentes opressões que incidem sobre o sujeito político “mulheres” constituem uma síntese contraditória e exigem, para o seu enfrentamento, uma conjunção das lutas sociais. Para pensar a dinâmica do imbricamento entre os diversos sistemas de opressão na realidade social, autoras como Heleieth Saffiotti, Daniele Kergoat e Jules Falquet recorreram a metáforas “do nó frouxo” (Saffiotti, 2004), “do círculo e da “espiral” (Kergoat, 2010) e “dos vasos comunicantes” (Falquet, 2019).
Cabe ainda destacar a importante contribuição do grupo Combahee River Collective na teorização da simultaneidade das opressões de sexo, raça e classe, incluindo a sexualidade. O conceito de “interlocking systems of oppression” (COMBAHEE River Collective, 1997), formulado pelo coletivo, visa justamente ajudar a pensar em uma luta simultânea contra todas as opressões. Em Imbrication: femmes, race et classe dans les mouvements sociaux, Falquet (2021), partindo de uma abordagem materialista, analisa as lutas sociais no continente Abya Yala, contra as injustiças oriundas dos múltiplos e imbricados sistemas de opressão.
No Brasil, os trabalhos sobre a militância política das mulheres em ações de cunho revolucionário concentram-se sobretudo no período da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964. O projeto “Memórias do exílio”, que procurou dar voz aos militantes políticos exilados (homens e mulheres), serve como testemunho da militância feminina contra o regime militar. Esse projeto deu origem à uma primeira publicação, em 1976, de uma obra coletiva intitulada “Brasil 1964/19??- Memórias do exílio, de muitos caminhos”. Apesar do testemunho de mulheres exiladas nesse primeiro volume, foi publicado um segundo volume, em 1980, dedicado apenas às mulheres exiladas (tanto as perseguidas, as punidas, as presas, as torturadas quanto as que sofreram perseguições indiretas). Essa obra coletiva, denominada “Memória das mulheres do exílio (volume II), sob coordenação de autoras como Albertina Costa de Oliveira, foi uma iniciativa do Grupo de Mulheres Brasileiras de Lisboa, reunidas em função da situação de exílio. Elas justificam a publicação de um volume dedicado exclusivamente às mulheres posto que estas nunca foram reconhecidas pela historiografia, sendo necessário, portanto, recuperar a sua História.
Outros estudos testemunharam a oposição política das mulheres à ditadura. A pesquisa de Marcelo Ridenti (1990) tem como centralidade a militância política das mulheres, nos anos 60 e 70, em organizações clandestinas e em grupos guerrilheiros de combate à ditadura militar. E Maria Amelia Teles (1993) em “Breve história do feminismo ” dedica uma seção do livro à participação das mulheres na luta armada.
Acompanhando o movimento dialético das lutas políticas das mulheres nas sociedades latino-americanas, os estudos pós-coloniais/decoloniais trazem novas perspectivas de análise. As lutas políticas das mulheres são inseridas em realidades sociais mais complexas. Para além dos limites territoriais, vislumbram-se novas alianças e resistências no combate às categorias coloniais e neocoloniais que sustentam as relações hierárquicas Norte-Sul.
Referência nesse debate é a realização, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do “I Colóquio Internacional Gênero, feminismos e ditadura no Cone Sul”, em 2009, com o objetivo de formar uma rede de pesquisadores a fim de recuperar a história sobre gênero, feminismos e ditadura no Cone Sul. Este I Colóquio, organizado por Joana Maria Pedro e Cristina Wolff, reuniu pesquisadoras do Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, México, Argentina e Bolívia, dando origem à publicação do livro “Resistências, gênero e feminismos contra as Ditaduras do Cone Sul”, em 2011. Uma segunda edição deste Colóquio foi realizada em 2014, também na UFSC, indicando a consolidação dos estudos pós-coloniais e o interesse por abordagens que dessem conta de pensar a unidade das lutas feministas de natureza anticolonial. Retratando, ainda, a experiência de mulheres brasileiras exiladas na ditadura militar no Brasil, Maira Abreu publica, em 2014, “Feminismo no exílio: o círculo de mulheres brasileiras em Paris e o grupo latino-americano de mulheres em Paris”. Essa obra, que tem como foco as mulheres militantes brasileiras exiladas em Paris nos anos 70, apresenta as principais questões discutidas pelos coletivos, suscitadas pelo contato com os movimentos feministas europeus e com as tensões com as organizações de esquerda.
Com a ascensão da extrema direita ao poder no Brasil, em 2019, renovou-se o interesse pela militância das mulheres com a publicação, em 2022, da obra “Guerrilheiras: memórias da ditadura e militância feminina” de Juliana Marques do Nascimento. A autora resgata a participação feminina nas guerrilhas, a partir da militância de duas figuras representativas da luta feminina contra o regime: Iara Iavellberg e Dilma Rousseff, deposta do poder no golpe de 2016.
Além de levar em conta os pontos de convergência que nos permitem pensar nas lutas políticas das mulheres da América Latina, há que se atentar, também, para as especificidades históricas que singularizam cada luta política, de acordo com o lugar e o contexto histórico. Autoras como Maria Lugones, Jules Falquet, Ochy Curiel e Lélia Gonzalez são algumas das referências nessa empreitada.
No Brasil, destaca-se, ainda, a contribuição de Maria Amélia de Almeida Teles (1993) para a construção de uma história decolonial, complexa e repleta de contradições das lutas políticas das mulheres. Trata-se de uma história que inclui a luta por creches e pela redução do custo de vida, a luta das mulheres da periferia, das trabalhadoras rurais, a participação das mulheres na luta armada e nos sindicatos. Elizabeth Sousa-Lobo (1991) analisa, em “A classe operária tem dois sexos”, a baixa participação das mulheres nos sindicatos industriais dos anos de 1970 e 1980. Vale destacar, ainda, a contribuição de Renata Gonçalves (2008) para uma análise dialética da participação das mulheres nos diferentes espaços de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST): acampamento, ocupação e assentamento.
Embora existam testemunhos das lutas sociais das mulheres indígenas e da criação de associações envolvidas nessas lutas, como a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) criada nos anos 80 e a União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), criada em 2009, são poucos os estudos sobre o sujeito político “mulheres indígenas”. Na América Latina Ochy Curiel (2007) tem dado visibilidade às lutas das mulheres indígenas na Bolívia e no México e destacado as suas posições pós-coloniais críticas e radicais, na luta contra as relações patriarcais, racistas e sexistas na sociedade latino-americana.
Por fim, neste Dossiê consideramos promissoras as análises que articulem as dimensões da política e da sexualidade, rumo a uma “economia política do sexo”, nos termos propostos por Gayle Rubin (1993) e por Monique Wittig (2013). De fato, a construção social da sexualidade das mulheres, tal como teorizado por Kate Millett (1974), pode ajudar a explicar como estas foram concreta e ideologicamente afastadas do universo da política. Carole Pateman, em “O contrato