Editorial
Para
não mais esquecer! Apresentação do número especial “A questão racial no mundo
empresarial”
Lest we forget! Presentation of the special
issue “racial dimensions in the corporate world”
Pedro Jaime
Professor do Programa de Pós-graduação em
Administração do Centro Universitário Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (FEI), Doutor em Antropologia Social
pela Universidade Estadual de São Paulo (USP). E-mail: pedrojaime@fei.edu.br
Paula
Barreto
Professora da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA), Doutora em Sociologia
pela Universidade Estadual de São Paulo (USP). E-mail: paulacbarr@uol.com.br.
Cloves Oliveira
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA), Doutor Ciência Política
pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. E-mail:
cloves.luiz@uol.com.br
Pode-se
afirmar com segurança que a questão racial possui mais de um século de tradição
de pesquisas nas ciências sociais no Brasil, se tomarmos como marco de
referência a obra de Nina Rodrigues, que remonta ao final do século XIX
(Corrêa, 1998; Gonçalves da Silva, 2002; Munanga,
2009). Ademais, esse tema conquistou uma posição de destaque em cursos de
graduação, de pós-graduação e nos periódicos da área neste país, seja com o
rótulo de sociologia das relações raciais, de antropologia das populações
afro-brasileiras, ou de estudos étnico-raciais.
Todavia,
tal temática tem sido largamente esquecida no campo científico da administração
na sociedade brasileira. Alguns autores já sinalizaram para esse esquecimento.
Costa e Ferreira (2006), por exemplo, argumentaram que a dimensão racial
representa uma das grandes lacunas dos estudos sobre diversidade realizados
pelos pesquisadores brasileiros de administração, ao passo que Barbosa (2009)
denunciou a negação da raça nos estudos organizacionais em nosso país. Escrevendo
alguns anos mais tarde, Rosa (2014) confirmou a existência desse vazio.
Ademais, enfatizou que os pesquisadores brasileiros em gestão da diversidade
ainda tratam da questão racial dialogando quase que exclusivamente com
estudiosos estadounidenses, ignorando a produção teórica nacional em sociologia
e em antropologia sobre a questão racial, o que considerou um grande equívoco a
ser reparado pela área de estudos organizacionais. É verdade, no entanto, que a
emergência do tema da gestão da diversidade despertou a produção acadêmica em
administração no Brasil para a questão racial (Fleury, 2000; Alves e Galeão
Silva, 2004).
Da parte
das ciências sociais, por sua vez, o mundo empresarial não tem sido o locus empírico privilegiado nas pesquisas
brasileiras sobre a questão racial. Ou ao menos a presença de negros nos
espaços de maior poder, prestígio e remuneração dentro desse universo não foi
objeto prioritário de investigação. As religiões; as manifestações culturais e
artísticas, tais como a capoeira e o hip hop; as resistências identitárias; os
movimentos sociais negros; as desigualdades raciais em sentido amplo; e mais
recentemente as políticas de ação afirmativas para a inclusão racial no ensino
superior preencheram a agenda de pesquisas desse campo disciplinar em nosso
país. Consequentemente, a mecânica de produção do racismo no mundo empresarial
no Brasil e as possibilidades relativas ao seu enfrentamento ficaram
desconhecidas.
A rigor, a
questão racial no mercado de trabalho já foi objeto da atenção de cientistas
sociais brasileiros (Barreto, 1997; Castro e Barreto, 1998). Todavia,
enfocou-se sobretudo a posição subalterna em que a população negra se encontra na
estrutura ocupacional. O fenômeno de afrodescendentes posicionados em postos de
maior status têm sido mais investigado no mundo da política, desde o clássico
livro de Oracy Nogueira (1992), até publicações mais contemporâneas (Oliveira,
2008 e 2016), do que na área dos negócios.
Só mais
recentemente, trabalhos situados na fronteira entre as ciências sociais e a
ciência da administração no Brasil têm discutido a ascensão social de negros no
mundo empresarial, público ou privado. Este é o caso de estudos como o de
Ladeia (2006) sobre a mobilidade social de afrodescendentes em empresas
paulistas; de Santana (2009) sobre negros que ocuparam postos de alto escalão
no serviço público em Salvador; de Figueiredo (2012) sobre empresários negros
também na capital baiana; de Souza (2015) sobre ascensão profissional de negros
em cargos de comando em Belo Horizonte; e de Jaime (2016) sobre trajetórias
sociais e percursos profissionais de duas gerações de executivos negros no
mundo corporativo em São Paulo.
Avançar no
preenchimento dessa lacuna simultaneamente teórica e empírica é fundamental
para o desenvolvimento da produção científica nacional, tendo em vista a
centralidade que as organizações empresariais possuem para a integração do
negro na sociedade de classes (Fernandes, 2008). Pensando nisso, e levando em
consideração a importância da interdisciplinaridade para o amadurecimento da
pesquisa no âmbito da administração, a revista Organizações & Sociedade
generosamente nos abriu espaço na sua pauta para a publicação do Número
Especial “A questão racial no mundo empresarial”.
A Chamada
de Artigos convidava professores-pesquisadores dos campos da administração, das
ciências sociais e humanas e de áreas afins a submeterem artigos. Ela apontava a
intenção de acolher textos que empreendessem discussões teóricas sobre
conceitos-chave da temática, a exemplo de racismo, antirracismo, desigualdades
raciais, inclusão racial, diversidade racial em suas conexões com o mundo
empresarial. Indicava também que seriam bem-vindas contribuições que resultassem
de pesquisas empíricas sobre temas como:
a) contextos
sociopolíticos globais, nacionais e subnacionais que geram demandas por
iniciativas de diversidade racial por parte das empresas, a exemplo das
mobilizações das redes transnacionais de advocacy antirracista, das
políticas públicas federais, estaduais ou municipais de promoção da igualdade
racial, e da atuação das organizações internacionais na agenda voltada para os
direitos dos afrodescendentes.
b) traduções
para diferentes localidades dos discursos e práticas relativos à diversidade
racial promovidos pelas corporações multinacionais, em razão dos contextos
socioculturais e dos quadros institucionais distintos daqueles encontrados nos
seus países de origem.
c) tensões,
conflitos, negociações e acordos entre diferentes atores (governamentais,
privados e não governamentais) envolvidos nos debates políticos e nas
iniciativas públicas e empresariais voltadas para a inclusão de
afrodescendentes nas empresas.
d) trajetórias
sociais e percursos profissionais de negros e negras nas empresas (inclusive
dos novos imigrantes e/ou refugiados africanos e haitianos), problematizados a
partir dos debates contemporâneos sobre a raça, tratada ou não em suas
intersecções com classe, gênero, sexualidade e nacionalidade; e/ou pensadas por
meio das experiências de inclusão/exclusão no ambiente de trabalho.
e) produção,
circulação e recepção de discursos sobre a questão racial produzidos pelas
empresas na gestão dos processos mercadológicos e comunicacionais com seus
diversos públicos, incluindo as representações do negro/a nesses discursos e/ou
veiculadas em diferentes mídias.
Em termos epistemológicos e
teórico-metodológicos, pretendia-se incorporar tanto análises que se concentrassem
no nível macrossocial, isto é, no contexto societal; quanto aquelas que
privilegiassem o nível microssocial, relativo às
vidas dos sujeitos, mas sempre num diálogo com o nível meso,
das dinâmicas organizacionais e das práticas de gestão. Seriam valorizados
igualmente textos resultados de investigações empreendidas a partir de
estratégias metodológicas quantitativas, qualitativas ou multimétodo.
Finalmente esperava-se poder contar com análises sobre a questão racial no
mundo empresarial lastreadas em diferentes lentes teóricas, bem como com
exercícios de reflexividade, isto é, com contribuições que abordassem o lugar
de fala da/do pesquisadora/pesquisador em um mundo acadêmico, como o
brasileiro, que Carvalho (2006) já denunciou como estando marcado por um
confinamento racial; e que acrescentaríamos como sendo atravessado por gênero.
As comunidades científicas dos campos da
administração, das ciências sociais e humanas e de áreas afins responderam
positivamente ao nosso convite. Afirmamos isso em razão da quantidade de artigos
que foram encaminhados: 46 submissões! Isto tornou a seleção das contribuições
que vieram a compor esse Número Especial um empreendimento complexo e extenuante.
Ele foi levado a bom termo graças ao apoio da editora, professora Ariádne Rigo; da secretária da
revista, Tamires Lordelo; e dos/das colegas
responsáveis pelos pareceres. Acreditamos que após uma apreciação em desk review de todos os textos e a avaliação
dupla cega daqueles que foram pré-selecionados, conseguimos garantir a diversidade
das contribuições, como pretendíamos. Dentre os artigos que compõem o Número
encontram-se estudos resultantes de pesquisas que adotaram abordagens
metodológicas quantitativas ou qualitativas, que privilegiaram distintos níveis
de análise (micro, meso ou macro) e que se orientaram
por diferentes lentes teóricas ou fundamentações epistemológicas. Além disso, é
possível perceber que os artigos se distribuem em pelo menos três subáreas da
administração: Estudos Organizacionais, Gestão de Pessoas e Marketing, com
interfaces entre elas e em alguns casos também com aquela de Administração
Pública e Governo.
Os artigos veiculados nesse Número
Especial abarcam um espectro relativamente amplo de reflexões sobre a questão
racial no mundo empresarial. Alguns cobrem discussões classicamente tratadas no
âmbito das ciências sociais, mesmo se trazem uma atualização ou alguma
novidade. Outros abrem novas avenidas para o estudo dessa temática. No entanto,
é forçoso reconhecer que ficou nítido para nós Editores Convidados,
especialmente para aqueles que tiveram toda a sua formação, desde a graduação,
marcada pelos estudos étnico-raciais, e que pesquisam esse tema há muitos anos
(Cloves Oliveira e Paula Barreto), a heterogeneidade
no domínio da literatura sobre as relações raciais no Brasil entre os/as autores/as
dos oito artigos que compõem o Número. Isto é algo compreensível, uma vez que,
como já sinalizado na abertura dessa apresentação, essa literatura remonta ao
final do século XIX. Portanto, o seu domínio não é algo que se conquista da
noite para o dia. Com essa observação queremos, entretanto, destacar que se a
interdisciplinaridade é fundamental ao avanço do conhecimento científico e deve
ser estimulada, ela não pode prescindir de um esforço para se levar em conta a
complexidade das discussões travadas no interior de cada uma das disciplinas que
se encontram.
No artigo “Diferenças salariais devido à Raça entre 2002 e 2014 no Brasil:
evidências de uma decomposição quantílica”,
Gustavo Saraiva Frio e Luiz Felipe Campos Fontes, recorrendo aos microdados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar
(PNAD) e aplicando o método da decomposição contrafactual
Oaxaca-Blinder conjugado com o Recentered
Influence Function Regression (RIF-Regression),
demonstram que a desigualdade racial no mercado de trabalho persistiu, mesmo
num período em que o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico
importante. Os dados analisados evidenciaram que o diferencial salarial entre
brancos e não brancos diminuiu muito pouco no horizonte temporal analisado.
Todavia, eles revelaram também que a queda do gap salarial
ocorreu com maior magnitude nos quantis mais elevados
da distribuição, ou seja, nos postos de trabalho pagadores de maiores salários.
Algo que esteve associado ao avanço dos anos de escolaridade da população negra.
Segundo os autores, isso remete a possibilidades de superação
das barreiras postas à mobilidade social deste segmento populacional,
especialmente pela via da implementação das cotas para inclusão de
afrodescendentes no ensino superior.
No entanto, o acesso a níveis mais
elevados de escolaridade não necessariamente garante uma inserção mais
qualificada de negros/as no mercado de trabalho. Outros fatores podem bloquear
a ascensão de afrodescendentes às posições de maior poder, prestígio e remuneração
no mundo empresarial. É isso o que revela o artigo “The judging of good looking in personal selection”, de autoria
de Altair Santos Paim e Marcos Emanuel Pereira. Eles analisaram os efeitos do
racismo no julgamento da boa aparência em seleção de pessoal. Os autores
utilizaram uma amostra não aleatória, composta por setenta e quatro (74)
participantes, sendo quarenta e dois profissionais (57%). Os instrumentos
utilizados foram uma avaliação de currículos, um conjunto de escalas de
preconceitos, um inventário sobre racismo no mercado de trabalho, um indicador
de boa aparência e um questionário sociodemográfico. Três hipóteses foram
testadas, sendo que duas delas se confirmaram: a que postulava a preferência
por candidatos brancos e a que sugeria uma maior tendência em escolher
candidatos de cor mais clara. Advoga-se então que os processos seletivos devem
se fundamentar no acolhimento da diversidade racial, elemento fundamental para
o desenvolvimento criativo e inovador das organizações.
Um elemento estrutural do processo de
construção das imagens da nação na sociedade brasileira talvez dificulte a
superação do racismo nos processos de recrutamento e seleção de pessoal.
Trata-se do mito da democracia racial. Ele é o objeto do artigo de Celso
Machado Junior, Roberto Bazanini e Daielly Melina Nassif Mantovani Ribeiro. Em “The myth of racial democracy in the labor market: a critical analysis of the participation
of afrodescendants in Brazilian companies”, eles
apresentam os resultados de uma investigação que visou analisar as
oportunidades dos negros em termos de empregabilidade e ascensão profissional
em nosso país. Para tanto, recorreram a uma pesquisa documental com 117
organizações que fazem parte do conjunto das 500 maiores empresas do Brasil. Os
resultados apontam que a democracia racial constitui um mito em nossa
sociedade, daí a necessidade de se avançar com as políticas sociais que
minimizem as desigualdades entre brancos e negros, especialmente nos níveis
hierárquicos mais elevados das organizações, associadas a práticas que
estimulem a diversidade nas companhias.
Além de colocar entraves à ascensão de
afrodescendentes às posições mais prestigiosas do mercado de trabalho, o mito
da democracia racial se encontra presente no outro extremo da estrutura
ocupacional. Esta é uma conclusão que emerge da leitura do artigo “A invisibilização
do negro no trabalho escravo contemporâneo: evidências a partir das condições
de vulnerabilidade social”, de autoria de Rodrigo Martins Baptista, Mariana
Lima Bandeira e Maria Tereza Saraiva de Souza. Fazendo uso dos
indicadores socioeconômicos, geográficos, socioculturais e de vulnerabilidade
social produzidos pelos relatórios publicados pelos membros do Instituto do
Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto)
e do poder público, os autores identificaram uma associação entre a
variável raça/cor e o trabalho escravo contemporâneo. E mais ainda, recorrendo a Pierre Bourdieu, eles denunciam que a
maior vulnerabilidade que pretos e pardos possuem no que se refere ao
desempenho de trabalhos exercidos em condições análogas à escravidão é
naturalizada pela ideologia dominante que inferioriza este contingente
populacional dado às suas características fenotípicas e a origem colonial-escravista
da sociedade brasileira.
E é incômodo notar que uma parcela dos
negros/as que conseguem superar todas essas barreiras internaliza essa
ideologia dominante. É sobre isso que nos convoca a refletir o artigo de Andrea
Alcione Souza e Rafaela Cyrino Peralva Dias “Merit is not for everyone: the perception of black managers on their career
development process”. A partir de uma pesquisa com 25 gerentes
negros, as autoras problematizaram os pressupostos, as funcionalidades e o
caráter produtivo que a ideia de mérito pessoal assume no discurso destes gerentes.
Os resultados obtidos apontam para uma percepção destes sujeitos acerca do seu processo
de ascensão profissional com fortes componentes meritocráticos. Percepção esta
que ignora ou minimiza as pré-condições sociais, emocionais, morais e
econômicas que interferem no desempenho diferencial obtido pelos indivíduos. As
autoras acrescentam que esta percepção implica em uma desqualificação de
qualquer argumentação que reforce a presença de barreiras raciais nos percursos
de mobilidade social ascendente, o que contribui para ocultar a dimensão
política, econômica e social do racismo no país.
Todavia, se a superação das desigualdades
raciais não é algo evidente, posto que a ideia de um paraíso da convivência
inter-racial marca os processos de imaginação da nação brasileira, a
perpetuação do racismo tampouco é um destino inexorável em nosso país. Os
esforços dirigidos à transformação dessa realidade sempre pontuaram nossa
história e continuam sendo produzidos. Quanto a isso, no artigo “The Black entrepreneuship
and ethnic beauty salons: possibilities and resistances in the social (re)construction of the black
identity”, Ana Flávia Rezende, Flávia Luciana
Naves Mafra, Jussara Jessica Pereira abordam as experiências de cinco
empresários negros que possuem empreendimentos voltados para um público que há
anos tem a sua estética e traços fenotípicos negados. Tratam-se dos chamados
salões étnicos, que têm como finalidade cuidar do cabelo crespo e/ou cacheado
de mulheres e homens negros. As autoras interrogam as motivações que dão
suporte a esses empreendimentos que enfrentam
uma lógica de colonialidade nas relações sociais,
mediante criação de negócios que partem da valorização e da identidade das/os
negras/os. O artigo presta uma contribuição à discussão sobre a categoria
cabelo como elemento constitutivo da identidade racial negra e a oportunidade
de uma inserção mais autônoma destes sujeitos no mercado de trabalho.
Tais empreendimentos são tanto mais
importantes se levarmos em conta a existência de um racismo velado operando nas
estratégias mercadológicas das empresas. É o que aponta o artigo “Demarketing Seletivo e ‘Velado’ na Visão de Consumidoras
Negras”. Nele, Ana Raquel Coelho Rocha e Leticia Moreira Casotti apoiam-se na literatura sobre demarketing
para analisar a visão que a consumidora negra possui sobre ações de marketing envolvendo
a questão racial implementadas por companhias que atuam
no Brasil. O contexto empírico investigado também diz respeito ao mercado de
tratamento e beleza dos cabelos. Recorrendo a dados originários de diferentes
manifestações midiáticas e de entrevistas, as autoras apontam para a existência
de um padrão estrutural dominante, que perpetua a condição marginal dos traços
naturais dessas mulheres. Elas sinalizam ainda que movimentos rumo à
visibilidade dessa consumidora se chocam com o fato de que elas, mesmo se
mostrando ávidas por consumir produtos que valorizem sua estética, se sentem
desencorajadas em sua demanda.
Mesmo reconhecendo a importância das
atividades econômicas capitaneadas por empreendedores/as negros/as, acredita-se
que a superação do racismo no Brasil passa pelos debates travados na esfera
pública e capazes de influenciar o Estado e as políticas governamentais. E
nesses debates o movimento negro desempenha um papel central. Esse aspecto é
abordado no artigo que encerra esse Número Especial: “World Models as Organizational Models: Global Framing and Transnational Activism in the Brazilian Black Movement”. Nele, Alexandre Reis Rosa explora a apropriação que
o movimento negro brasileiro faz dos conteúdos diaspóricos.
O autor parte da constatação de que, ao longo da história a diáspora negra
produziu diferentes significados do que é ser negro, do que é o racismo e de
como combatê-lo. Discute então como uma dessas visões, a do Atlântico Negro,
entendida como uma macroestrutura capaz de influenciar a formação de diversos frames ao redor do mundo, está na base
do alinhamento que o ativismo antirracista brasileiro vem operando com relação
a um framing
global. Nesse jogo, a circulação transnacional se articula com os processos de
adaptação local, num processo que leva a transformações nos discursos deste
ativismo e nas demandas que ele endereça ao sistema político.
Com esse conjunto de textos, esperamos ter
correspondido à confiança que professora Ariádne nos
depositou, não apenas acolhendo a nossa proposta quando a formulamos numa
primeira conversa na Escola de Administração da UFBA em janeiro de 2017, mas
nos honrando com a sua alocação em uma edição que comemora os 25 anos da
revista. Ora viva, 25 anos é um marco de maturidade! Um convite para rever o
passado e olhar para o futuro. Claro que este é um trabalho a ser encampado
pela competente editora e pela equipe editorial do periódico. Mas gostaríamos
de deixar aqui um depoimento que talvez ajude nesse processo.
Há 25 anos essa prestigiosa revista foi
lançada. O lançamento se deu por ocasião de um dos encontros anuais da ANPAD. Na
época, para o bem e/ou para o mal, a organização desses eventos não era tão
profissional como veio a se tornar. Havia um coordenador local do congresso, um
professor que não estava necessariamente ligado à direção da entidade. No encontro
de 1993, realizado em Salvador, coube ao professor Maurício Serva, então
docente da UFBA e atualmente nos quadros da UFSC, assumir esse papel. Aquele
era um contexto bem distinto do que nos encontramos atualmente. A figura do
cientista da administração não era tão disseminada como hoje. Grande parte dos
professores da área se dedicava ao ensino de graduação e a atividades de
consultoria, ou trabalhavam como gestores em organizações públicas ou privadas.
Eram raros os que se dedicavam em tempo integral à pós-graduação e à pesquisa.
Naquele cenário, o jovem professor
Maurício, ainda um doutorando, decidiu criar uma revista na sua Escola. Captou
recursos em órgãos públicos e em empresas privadas, estabeleceu parcerias e
conseguiu levar a cabo o seu sonho de lançar a Organizações & Sociedade. Um
de nós Editores Convidados (Pedro Jaime), trabalhando como assistente na
pesquisa de doutorado do seu professor e tendo estabelecido com ele vínculos de
amizade, lembra com nitidez desse momento. Recorda até mesmo da reunião que o
professor lhe convidou para participar com Pedro Belmonte, profissional que fez
o projeto gráfico original da revista. Em tempos de “presentismo”,
nos quais somos avaliados apenas pelo que fazemos, e especialmente pelo que
publicamos, nos últimos três anos, compartilhar essas memórias para não deixar
se perder essa história é um ato de resistência.
E outro evento tocou acontecer nessa mesma
época. Igualmente há 25 anos era lançado em português o primeiro volume do
livro O indivíduo na organização:
dimensões esquecidas (Chanlat, 1993). Como se
sabe, a obra traz contribuições de autores francófonos a um campo da
administração que àquela época, como ainda hoje, é dominado pela perspectiva anglofônica e notadamente estadounidense.
A sua versão original fora editada poucos anos antes (Chanlat,
1990). No terceiro volume da edição brasileira, publicada alguns anos mais
tarde (Chanlat, 1996) havia um artigo que tratava do
racismo nas organizações (Vincent, 1996). Ou seja, essa coletânea, que teve
grande repercussão entre nós, influenciando toda uma geração de docentes de
administração brasileiros, já chamava a atenção para a questão racial.
Por que razão, então, foi necessário que tanto
tempo se passasse até que esta dimensão começasse, ainda que timidamente, a ser
lembrada nas publicações do campo da administração em nosso país? Essa
indagação é tanto mais intrigante se atentarmos para o fato de que, como
sinalizamos mais de uma vez nesse texto de apresentação, a questão racial já se
fazia presente há um século nos domínios da sociologia e da antropologia, desde
a fundação dessas áreas de estudos em nosso país. Insistimos então em nossa
perplexidade: porque as portas para a reflexão sobre este tema no campo da
administração estiveram por longos anos cuidadosamente trancadas, como
poeticamente expressa a fotografia do querido Marcelo Reis, a quem agradecemos
por nos ter gentilmente emprestado o seu talento para valorizar esse projeto? É
verdade que esse fechamento não foi absoluto. Na mesma Escola de Administração
da UFBA e nessa mesma época a antropóloga e intelectual negra Maria de Lourdes
Siqueira pesquisava as dimensões organizativas dos terreiros de candomblé
(Siqueira, 1994), participando e influenciando um programa de pesquisas sobre
organizações afro-baianas que a professora Tânia Fischer coordenava na
instituição (Fischer et al., 1993). Tratava-se de um programa de grande
importância, voltado para as especificidades da realidade local. Mas não eram
as grandes empresas e nem a posição dos negros/as nas posições superiores da
sua estrutura organizacional que estavam em foco.
Evidentemente, nos limites desse texto não
temos pretensões de responder a essas complexas interrogações. Gostaríamos
apenas de concluir sublinhando que, com a organização desse Número Especial
queremos homenagear pioneiros como o professor Maurício Serva e a professora
Maria de Lourdes Siqueira, e nos juntar ao esforço que vem sendo desenvolvido
por pesquisadoras e pesquisadores negras/os e brancos/as que, mesmo encontrando
resistências, têm tecido alianças e procurado colocar a questão racial na
agenda do campo científico da administração. Assim, saudamos o empenho desses/as
colegas, pessoas como Alexandre Reis Rosa, Eliane Barbosa, Eloisio
Moulin de Souza, Josiane Silva de Oliveira, Juliana
Teixeira, Luiz Alex Saraiva e outros/as. Celebramos o trabalho conjunto, a
produção coletiva, o trânsito interdisciplinar, o diálogo entre a administração
e as ciências sociais. E convidamos a todas e todos para uma reflexão
permanente sobre presença da questão racial não apenas em nossos estudos e
pesquisas, mas na organização mesma da nossa comunidade científica. Para não
mais esquecer!
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