Editorial

Para não mais esquecer! Apresentação do número especial “A questão racial no mundo empresarial”

 

Lest we forget! Presentation of the special issue “racial dimensions in the corporate world”

 

Pedro Jaime

Professor do Programa de Pós-graduação em Administração do Centro Universitário Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (FEI), Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de São Paulo (USP). E-mail: pedrojaime@fei.edu.br

Paula Barreto

Professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA), Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de São Paulo (USP). E-mail: paulacbarr@uol.com.br.

Cloves Oliveira

Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA), Doutor Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. E-mail: cloves.luiz@uol.com.br

 

 

Pode-se afirmar com segurança que a questão racial possui mais de um século de tradição de pesquisas nas ciências sociais no Brasil, se tomarmos como marco de referência a obra de Nina Rodrigues, que remonta ao final do século XIX (Corrêa, 1998; Gonçalves da Silva, 2002; Munanga, 2009). Ademais, esse tema conquistou uma posição de destaque em cursos de graduação, de pós-graduação e nos periódicos da área neste país, seja com o rótulo de sociologia das relações raciais, de antropologia das populações afro-brasileiras, ou de estudos étnico-raciais.

Todavia, tal temática tem sido largamente esquecida no campo científico da administração na sociedade brasileira. Alguns autores já sinalizaram para esse esquecimento. Costa e Ferreira (2006), por exemplo, argumentaram que a dimensão racial representa uma das grandes lacunas dos estudos sobre diversidade realizados pelos pesquisadores brasileiros de administração, ao passo que Barbosa (2009) denunciou a negação da raça nos estudos organizacionais em nosso país. Escrevendo alguns anos mais tarde, Rosa (2014) confirmou a existência desse vazio. Ademais, enfatizou que os pesquisadores brasileiros em gestão da diversidade ainda tratam da questão racial dialogando quase que exclusivamente com estudiosos estadounidenses, ignorando a produção teórica nacional em sociologia e em antropologia sobre a questão racial, o que considerou um grande equívoco a ser reparado pela área de estudos organizacionais. É verdade, no entanto, que a emergência do tema da gestão da diversidade despertou a produção acadêmica em administração no Brasil para a questão racial (Fleury, 2000; Alves e Galeão Silva, 2004).

 

Da parte das ciências sociais, por sua vez, o mundo empresarial não tem sido o locus empírico privilegiado nas pesquisas brasileiras sobre a questão racial. Ou ao menos a presença de negros nos espaços de maior poder, prestígio e remuneração dentro desse universo não foi objeto prioritário de investigação. As religiões; as manifestações culturais e artísticas, tais como a capoeira e o hip hop; as resistências identitárias; os movimentos sociais negros; as desigualdades raciais em sentido amplo; e mais recentemente as políticas de ação afirmativas para a inclusão racial no ensino superior preencheram a agenda de pesquisas desse campo disciplinar em nosso país. Consequentemente, a mecânica de produção do racismo no mundo empresarial no Brasil e as possibilidades relativas ao seu enfrentamento ficaram desconhecidas.

A rigor, a questão racial no mercado de trabalho já foi objeto da atenção de cientistas sociais brasileiros (Barreto, 1997; Castro e Barreto, 1998). Todavia, enfocou-se sobretudo a posição subalterna em que a população negra se encontra na estrutura ocupacional. O fenômeno de afrodescendentes posicionados em postos de maior status têm sido mais investigado no mundo da política, desde o clássico livro de Oracy Nogueira (1992), até publicações mais contemporâneas (Oliveira, 2008 e 2016), do que na área dos negócios.

Só mais recentemente, trabalhos situados na fronteira entre as ciências sociais e a ciência da administração no Brasil têm discutido a ascensão social de negros no mundo empresarial, público ou privado. Este é o caso de estudos como o de Ladeia (2006) sobre a mobilidade social de afrodescendentes em empresas paulistas; de Santana (2009) sobre negros que ocuparam postos de alto escalão no serviço público em Salvador; de Figueiredo (2012) sobre empresários negros também na capital baiana; de Souza (2015) sobre ascensão profissional de negros em cargos de comando em Belo Horizonte; e de Jaime (2016) sobre trajetórias sociais e percursos profissionais de duas gerações de executivos negros no mundo corporativo em São Paulo.

Avançar no preenchimento dessa lacuna simultaneamente teórica e empírica é fundamental para o desenvolvimento da produção científica nacional, tendo em vista a centralidade que as organizações empresariais possuem para a integração do negro na sociedade de classes (Fernandes, 2008). Pensando nisso, e levando em consideração a importância da interdisciplinaridade para o amadurecimento da pesquisa no âmbito da administração, a revista Organizações & Sociedade generosamente nos abriu espaço na sua pauta para a publicação do Número Especial “A questão racial no mundo empresarial”.

A Chamada de Artigos convidava professores-pesquisadores dos campos da administração, das ciências sociais e humanas e de áreas afins a submeterem artigos. Ela apontava a intenção de acolher textos que empreendessem discussões teóricas sobre conceitos-chave da temática, a exemplo de racismo, antirracismo, desigualdades raciais, inclusão racial, diversidade racial em suas conexões com o mundo empresarial. Indicava também que seriam bem-vindas contribuições que resultassem de pesquisas empíricas sobre temas como:

a)     contextos sociopolíticos globais, nacionais e subnacionais que geram demandas por iniciativas de diversidade racial por parte das empresas, a exemplo das mobilizações das redes transnacionais de advocacy antirracista, das políticas públicas federais, estaduais ou municipais de promoção da igualdade racial, e da atuação das organizações internacionais na agenda voltada para os direitos dos afrodescendentes.

b)     traduções para diferentes localidades dos discursos e práticas relativos à diversidade racial promovidos pelas corporações multinacionais, em razão dos contextos socioculturais e dos quadros institucionais distintos daqueles encontrados nos seus países de origem.

c)     tensões, conflitos, negociações e acordos entre diferentes atores (governamentais, privados e não governamentais) envolvidos nos debates políticos e nas iniciativas públicas e empresariais voltadas para a inclusão de afrodescendentes nas empresas.

d)     trajetórias sociais e percursos profissionais de negros e negras nas empresas (inclusive dos novos imigrantes e/ou refugiados africanos e haitianos), problematizados a partir dos debates contemporâneos sobre a raça, tratada ou não em suas intersecções com classe, gênero, sexualidade e nacionalidade; e/ou pensadas por meio das experiências de inclusão/exclusão no ambiente de trabalho.

e)     produção, circulação e recepção de discursos sobre a questão racial produzidos pelas empresas na gestão dos processos mercadológicos e comunicacionais com seus diversos públicos, incluindo as representações do negro/a nesses discursos e/ou veiculadas em diferentes mídias.

 

Em termos epistemológicos e teórico-metodológicos, pretendia-se incorporar tanto análises que se concentrassem no nível macrossocial, isto é, no contexto societal; quanto aquelas que privilegiassem o nível microssocial, relativo às vidas dos sujeitos, mas sempre num diálogo com o nível meso, das dinâmicas organizacionais e das práticas de gestão. Seriam valorizados igualmente textos resultados de investigações empreendidas a partir de estratégias metodológicas quantitativas, qualitativas ou multimétodo. Finalmente esperava-se poder contar com análises sobre a questão racial no mundo empresarial lastreadas em diferentes lentes teóricas, bem como com exercícios de reflexividade, isto é, com contribuições que abordassem o lugar de fala da/do pesquisadora/pesquisador em um mundo acadêmico, como o brasileiro, que Carvalho (2006) já denunciou como estando marcado por um confinamento racial; e que acrescentaríamos como sendo atravessado por gênero.

As comunidades científicas dos campos da administração, das ciências sociais e humanas e de áreas afins responderam positivamente ao nosso convite. Afirmamos isso em razão da quantidade de artigos que foram encaminhados: 46 submissões! Isto tornou a seleção das contribuições que vieram a compor esse Número Especial um empreendimento complexo e extenuante. Ele foi levado a bom termo graças ao apoio da editora, professora Ariádne Rigo; da secretária da revista, Tamires Lordelo; e dos/das colegas responsáveis pelos pareceres. Acreditamos que após uma apreciação em desk review de todos os textos e a avaliação dupla cega daqueles que foram pré-selecionados, conseguimos garantir a diversidade das contribuições, como pretendíamos. Dentre os artigos que compõem o Número encontram-se estudos resultantes de pesquisas que adotaram abordagens metodológicas quantitativas ou qualitativas, que privilegiaram distintos níveis de análise (micro, meso ou macro) e que se orientaram por diferentes lentes teóricas ou fundamentações epistemológicas. Além disso, é possível perceber que os artigos se distribuem em pelo menos três subáreas da administração: Estudos Organizacionais, Gestão de Pessoas e Marketing, com interfaces entre elas e em alguns casos também com aquela de Administração Pública e Governo.

Os artigos veiculados nesse Número Especial abarcam um espectro relativamente amplo de reflexões sobre a questão racial no mundo empresarial. Alguns cobrem discussões classicamente tratadas no âmbito das ciências sociais, mesmo se trazem uma atualização ou alguma novidade. Outros abrem novas avenidas para o estudo dessa temática. No entanto, é forçoso reconhecer que ficou nítido para nós Editores Convidados, especialmente para aqueles que tiveram toda a sua formação, desde a graduação, marcada pelos estudos étnico-raciais, e que pesquisam esse tema há muitos anos (Cloves Oliveira e Paula Barreto), a heterogeneidade no domínio da literatura sobre as relações raciais no Brasil entre os/as autores/as dos oito artigos que compõem o Número. Isto é algo compreensível, uma vez que, como já sinalizado na abertura dessa apresentação, essa literatura remonta ao final do século XIX. Portanto, o seu domínio não é algo que se conquista da noite para o dia. Com essa observação queremos, entretanto, destacar que se a interdisciplinaridade é fundamental ao avanço do conhecimento científico e deve ser estimulada, ela não pode prescindir de um esforço para se levar em conta a complexidade das discussões travadas no interior de cada uma das disciplinas que se encontram.

No artigo “Diferenças salariais devido à Raça entre 2002 e 2014 no Brasil: evidências de uma decomposição quantílica, Gustavo Saraiva Frio e Luiz Felipe Campos Fontes, recorrendo aos microdados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) e aplicando o método da decomposição contrafactual Oaxaca-Blinder conjugado com o Recentered Influence Function Regression (RIF-Regression), demonstram que a desigualdade racial no mercado de trabalho persistiu, mesmo num período em que o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico importante. Os dados analisados evidenciaram que o diferencial salarial entre brancos e não brancos diminuiu muito pouco no horizonte temporal analisado. Todavia, eles revelaram também que a queda do gap salarial ocorreu com maior magnitude nos quantis mais elevados da distribuição, ou seja, nos postos de trabalho pagadores de maiores salários. Algo que esteve associado ao avanço dos anos de escolaridade da população negra. Segundo os autores, isso remete a possibilidades de superação das barreiras postas à mobilidade social deste segmento populacional, especialmente pela via da implementação das cotas para inclusão de afrodescendentes no ensino superior.

No entanto, o acesso a níveis mais elevados de escolaridade não necessariamente garante uma inserção mais qualificada de negros/as no mercado de trabalho. Outros fatores podem bloquear a ascensão de afrodescendentes às posições de maior poder, prestígio e remuneração no mundo empresarial. É isso o que revela o artigo “The judging of good looking in personal selection, de autoria de Altair Santos Paim e Marcos Emanuel Pereira. Eles analisaram os efeitos do racismo no julgamento da boa aparência em seleção de pessoal. Os autores utilizaram uma amostra não aleatória, composta por setenta e quatro (74) participantes, sendo quarenta e dois profissionais (57%). Os instrumentos utilizados foram uma avaliação de currículos, um conjunto de escalas de preconceitos, um inventário sobre racismo no mercado de trabalho, um indicador de boa aparência e um questionário sociodemográfico. Três hipóteses foram testadas, sendo que duas delas se confirmaram: a que postulava a preferência por candidatos brancos e a que sugeria uma maior tendência em escolher candidatos de cor mais clara. Advoga-se então que os processos seletivos devem se fundamentar no acolhimento da diversidade racial, elemento fundamental para o desenvolvimento criativo e inovador das organizações.

Um elemento estrutural do processo de construção das imagens da nação na sociedade brasileira talvez dificulte a superação do racismo nos processos de recrutamento e seleção de pessoal. Trata-se do mito da democracia racial. Ele é o objeto do artigo de Celso Machado Junior, Roberto Bazanini e Daielly Melina Nassif Mantovani Ribeiro. Em “The myth of racial democracy in the labor market: a critical analysis of the participation of afrodescendants in Brazilian companies, eles apresentam os resultados de uma investigação que visou analisar as oportunidades dos negros em termos de empregabilidade e ascensão profissional em nosso país. Para tanto, recorreram a uma pesquisa documental com 117 organizações que fazem parte do conjunto das 500 maiores empresas do Brasil. Os resultados apontam que a democracia racial constitui um mito em nossa sociedade, daí a necessidade de se avançar com as políticas sociais que minimizem as desigualdades entre brancos e negros, especialmente nos níveis hierárquicos mais elevados das organizações, associadas a práticas que estimulem a diversidade nas companhias.

Além de colocar entraves à ascensão de afrodescendentes às posições mais prestigiosas do mercado de trabalho, o mito da democracia racial se encontra presente no outro extremo da estrutura ocupacional. Esta é uma conclusão que emerge da leitura do artigo “A invisibilização do negro no trabalho escravo contemporâneo: evidências a partir das condições de vulnerabilidade social”, de autoria de Rodrigo Martins Baptista, Mariana Lima Bandeira e Maria Tereza Saraiva de Souza. Fazendo uso dos indicadores socioeconômicos, geográficos, socioculturais e de vulnerabilidade social produzidos pelos relatórios publicados pelos membros do Instituto do Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) e do poder público, os autores identificaram uma associação entre a variável raça/cor e o trabalho escravo contemporâneo. E mais ainda, recorrendo a Pierre Bourdieu, eles denunciam que a maior vulnerabilidade que pretos e pardos possuem no que se refere ao desempenho de trabalhos exercidos em condições análogas à escravidão é naturalizada pela ideologia dominante que inferioriza este contingente populacional dado às suas características fenotípicas e a origem colonial-escravista da sociedade brasileira.

E é incômodo notar que uma parcela dos negros/as que conseguem superar todas essas barreiras internaliza essa ideologia dominante. É sobre isso que nos convoca a refletir o artigo de Andrea Alcione Souza e Rafaela Cyrino Peralva Dias Merit is not for everyone: the perception of black managers on their career development process. A partir de uma pesquisa com 25 gerentes negros, as autoras problematizaram os pressupostos, as funcionalidades e o caráter produtivo que a ideia de mérito pessoal assume no discurso destes gerentes. Os resultados obtidos apontam para uma percepção destes sujeitos acerca do seu processo de ascensão profissional com fortes componentes meritocráticos. Percepção esta que ignora ou minimiza as pré-condições sociais, emocionais, morais e econômicas que interferem no desempenho diferencial obtido pelos indivíduos. As autoras acrescentam que esta percepção implica em uma desqualificação de qualquer argumentação que reforce a presença de barreiras raciais nos percursos de mobilidade social ascendente, o que contribui para ocultar a dimensão política, econômica e social do racismo no país.  

Todavia, se a superação das desigualdades raciais não é algo evidente, posto que a ideia de um paraíso da convivência inter-racial marca os processos de imaginação da nação brasileira, a perpetuação do racismo tampouco é um destino inexorável em nosso país. Os esforços dirigidos à transformação dessa realidade sempre pontuaram nossa história e continuam sendo produzidos. Quanto a isso, no artigo “The Black entrepreneuship and ethnic beauty salons: possibilities and resistances in the social (re)construction of the black identity, Ana Flávia Rezende, Flávia Luciana Naves Mafra, Jussara Jessica Pereira abordam as experiências de cinco empresários negros que possuem empreendimentos voltados para um público que há anos tem a sua estética e traços fenotípicos negados. Tratam-se dos chamados salões étnicos, que têm como finalidade cuidar do cabelo crespo e/ou cacheado de mulheres e homens negros. As autoras interrogam as motivações que dão suporte a esses empreendimentos que enfrentam uma lógica de colonialidade nas relações sociais, mediante criação de negócios que partem da valorização e da identidade das/os negras/os. O artigo presta uma contribuição à discussão sobre a categoria cabelo como elemento constitutivo da identidade racial negra e a oportunidade de uma inserção mais autônoma destes sujeitos no mercado de trabalho.

Tais empreendimentos são tanto mais importantes se levarmos em conta a existência de um racismo velado operando nas estratégias mercadológicas das empresas. É o que aponta o artigo “Demarketing Seletivo e ‘Velado’ na Visão de Consumidoras Negras”. Nele, Ana Raquel Coelho Rocha e Leticia Moreira Casotti apoiam-se na literatura sobre demarketing para analisar a visão que a consumidora negra possui sobre ações de marketing envolvendo a questão racial implementadas por companhias que atuam no Brasil. O contexto empírico investigado também diz respeito ao mercado de tratamento e beleza dos cabelos. Recorrendo a dados originários de diferentes manifestações midiáticas e de entrevistas, as autoras apontam para a existência de um padrão estrutural dominante, que perpetua a condição marginal dos traços naturais dessas mulheres. Elas sinalizam ainda que movimentos rumo à visibilidade dessa consumidora se chocam com o fato de que elas, mesmo se mostrando ávidas por consumir produtos que valorizem sua estética, se sentem desencorajadas em sua demanda.

Mesmo reconhecendo a importância das atividades econômicas capitaneadas por empreendedores/as negros/as, acredita-se que a superação do racismo no Brasil passa pelos debates travados na esfera pública e capazes de influenciar o Estado e as políticas governamentais. E nesses debates o movimento negro desempenha um papel central. Esse aspecto é abordado no artigo que encerra esse Número Especial: “World Models as Organizational Models: Global Framing and Transnational Activism in the Brazilian Black Movement. Nele, Alexandre Reis Rosa explora a apropriação que o movimento negro brasileiro faz dos conteúdos diaspóricos. O autor parte da constatação de que, ao longo da história a diáspora negra produziu diferentes significados do que é ser negro, do que é o racismo e de como combatê-lo. Discute então como uma dessas visões, a do Atlântico Negro, entendida como uma macroestrutura capaz de influenciar a formação de diversos frames ao redor do mundo, está na base do alinhamento que o ativismo antirracista brasileiro vem operando com relação a um framing global. Nesse jogo, a circulação transnacional se articula com os processos de adaptação local, num processo que leva a transformações nos discursos deste ativismo e nas demandas que ele endereça ao sistema político.

Com esse conjunto de textos, esperamos ter correspondido à confiança que professora Ariádne nos depositou, não apenas acolhendo a nossa proposta quando a formulamos numa primeira conversa na Escola de Administração da UFBA em janeiro de 2017, mas nos honrando com a sua alocação em uma edição que comemora os 25 anos da revista. Ora viva, 25 anos é um marco de maturidade! Um convite para rever o passado e olhar para o futuro. Claro que este é um trabalho a ser encampado pela competente editora e pela equipe editorial do periódico. Mas gostaríamos de deixar aqui um depoimento que talvez ajude nesse processo.

Há 25 anos essa prestigiosa revista foi lançada. O lançamento se deu por ocasião de um dos encontros anuais da ANPAD. Na época, para o bem e/ou para o mal, a organização desses eventos não era tão profissional como veio a se tornar. Havia um coordenador local do congresso, um professor que não estava necessariamente ligado à direção da entidade. No encontro de 1993, realizado em Salvador, coube ao professor Maurício Serva, então docente da UFBA e atualmente nos quadros da UFSC, assumir esse papel. Aquele era um contexto bem distinto do que nos encontramos atualmente. A figura do cientista da administração não era tão disseminada como hoje. Grande parte dos professores da área se dedicava ao ensino de graduação e a atividades de consultoria, ou trabalhavam como gestores em organizações públicas ou privadas. Eram raros os que se dedicavam em tempo integral à pós-graduação e à pesquisa.

Naquele cenário, o jovem professor Maurício, ainda um doutorando, decidiu criar uma revista na sua Escola. Captou recursos em órgãos públicos e em empresas privadas, estabeleceu parcerias e conseguiu levar a cabo o seu sonho de lançar a Organizações & Sociedade. Um de nós Editores Convidados (Pedro Jaime), trabalhando como assistente na pesquisa de doutorado do seu professor e tendo estabelecido com ele vínculos de amizade, lembra com nitidez desse momento. Recorda até mesmo da reunião que o professor lhe convidou para participar com Pedro Belmonte, profissional que fez o projeto gráfico original da revista. Em tempos de “presentismo”, nos quais somos avaliados apenas pelo que fazemos, e especialmente pelo que publicamos, nos últimos três anos, compartilhar essas memórias para não deixar se perder essa história é um ato de resistência.

E outro evento tocou acontecer nessa mesma época. Igualmente há 25 anos era lançado em português o primeiro volume do livro O indivíduo na organização: dimensões esquecidas (Chanlat, 1993). Como se sabe, a obra traz contribuições de autores francófonos a um campo da administração que àquela época, como ainda hoje, é dominado pela perspectiva anglofônica e notadamente estadounidense. A sua versão original fora editada poucos anos antes (Chanlat, 1990). No terceiro volume da edição brasileira, publicada alguns anos mais tarde (Chanlat, 1996) havia um artigo que tratava do racismo nas organizações (Vincent, 1996). Ou seja, essa coletânea, que teve grande repercussão entre nós, influenciando toda uma geração de docentes de administração brasileiros, já chamava a atenção para a questão racial.

Por que razão, então, foi necessário que tanto tempo se passasse até que esta dimensão começasse, ainda que timidamente, a ser lembrada nas publicações do campo da administração em nosso país? Essa indagação é tanto mais intrigante se atentarmos para o fato de que, como sinalizamos mais de uma vez nesse texto de apresentação, a questão racial já se fazia presente há um século nos domínios da sociologia e da antropologia, desde a fundação dessas áreas de estudos em nosso país. Insistimos então em nossa perplexidade: porque as portas para a reflexão sobre este tema no campo da administração estiveram por longos anos cuidadosamente trancadas, como poeticamente expressa a fotografia do querido Marcelo Reis, a quem agradecemos por nos ter gentilmente emprestado o seu talento para valorizar esse projeto? É verdade que esse fechamento não foi absoluto. Na mesma Escola de Administração da UFBA e nessa mesma época a antropóloga e intelectual negra Maria de Lourdes Siqueira pesquisava as dimensões organizativas dos terreiros de candomblé (Siqueira, 1994), participando e influenciando um programa de pesquisas sobre organizações afro-baianas que a professora Tânia Fischer coordenava na instituição (Fischer et al., 1993). Tratava-se de um programa de grande importância, voltado para as especificidades da realidade local. Mas não eram as grandes empresas e nem a posição dos negros/as nas posições superiores da sua estrutura organizacional que estavam em foco.   

Evidentemente, nos limites desse texto não temos pretensões de responder a essas complexas interrogações. Gostaríamos apenas de concluir sublinhando que, com a organização desse Número Especial queremos homenagear pioneiros como o professor Maurício Serva e a professora Maria de Lourdes Siqueira, e nos juntar ao esforço que vem sendo desenvolvido por pesquisadoras e pesquisadores negras/os e brancos/as que, mesmo encontrando resistências, têm tecido alianças e procurado colocar a questão racial na agenda do campo científico da administração. Assim, saudamos o empenho desses/as colegas, pessoas como Alexandre Reis Rosa, Eliane Barbosa, Eloisio Moulin de Souza, Josiane Silva de Oliveira, Juliana Teixeira, Luiz Alex Saraiva e outros/as. Celebramos o trabalho conjunto, a produção coletiva, o trânsito interdisciplinar, o diálogo entre a administração e as ciências sociais. E convidamos a todas e todos para uma reflexão permanente sobre presença da questão racial não apenas em nossos estudos e pesquisas, mas na organização mesma da nossa comunidade científica. Para não mais esquecer!

 

REFERÊNCIAS

 

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