Bernard Lonergan e Alberto Guerreiro Ramos: Diálogos entre o sujeito existencial e o homem parentético

 

Laís Silveira Santos

Doutoranda em Administração na Universidade do Estado de Santa Catarina (ESAG/UDESC). Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do NISP - Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP/UDESC). E-mail: lais.ssantos@yahoo.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4737-5470

 

Mauricio C. Serafim

Professor do Departamento de Administração Pública e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade do Estado de Santa Catarina (ESAG/UDESC). Doutor em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Pesquisador do NISP - Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP/UDESC). E-mail: serafim.esag@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4852-5119

 

Daniel Moraes Pinheiro

Professor do Departamento de Administração Pública da Universidade do Estado de Santa Catarina (ESAG/UDESC). Doutor em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do NISP - Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP/UDESC) e Pesquisador no Núcleo Organizações, Racionalidade e Desenvolvimento (ORD/UFSC). E-mail: daniel.m.pinheiro@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7731-8178

 

 

DATA DE SUBMISSÃO: 17/09/2016

DATA DE PUBLICAÇÃO: 03/11/2017

 

 

Resumo

Bernard Lonergan abordou, entre outros temas, a questão da ação humana e ética, considerando possível um caminho de autenticidade e realização moral que se dá num tipo de sujeito, que denominou de sujeito existencial. A partir dessa concepção, vimos uma possibilidade de diálogo com Alberto Guerreiro Ramos, que criou o conceito de homem parentético, definido como um ser racional por excelência, em sua dimensão substantiva. A concepção desse modelo de homem vai de encontro à visão das teorias administrativas que se baseiam na racionalidade instrumental. Embora Lonergan não tenha criado, explicitamente, uma teoria substantiva, sua concepção de ética e bem humano destaca aspectos que remetem à razão substantiva. Assim, este ensaio teórico objetivou identificar as possibilidades de aproximação entre o homem parentético e o sujeito existencial, a partir das perspectivas da ação humana e ética. Identificamos que os autores possuem uma compreensão semelhante de mundo e dos relacionamentos humanos, destacando-se a questão da consciência crítica do homem parentético e a consciência da responsabilidade do sujeito existencial.

 

Palavras-chave: Bernard Lonergan, Guerreiro Ramos, ética, sujeito existencial, homem parentético.

 

Abstract

Bernard Lonergan has addressed, among other topics, the issue of human and ethical action, considering the possibility of a path of authenticity and moral achievement that occurs in a specific type of subject, whom he has called the existential subject. Based on this concept, we considered the possibility of a dialogue with Alberto Guerreiro Ramos, who has created the concept of parenthetical man, defined as a being that is rational for excellence, in his substantive dimension. The conception of this model of man goes in an opposite direction of the management theories based on the instrumental rationality. Although Lonergan has not created, explicitly, a substantive theory, his concept of ethics and human highlights aspects that relates to the substantive rationale. Thus, this theoretical essay aimed to identify the possibility of approach between the parenthetical man and the existential subject, through the perspectives of human action and ethics. We identified that the authors have a similar comprehension of the world and of the human relations, especially when it refers to the matter of critical awareness of the parenthetical man and the responsibility awareness of the existential subject.

 

Key-words: Bernard Lonergan, Guerreiro Ramos, ethic, existential subject, parenthetical man.

 

1.  Introdução

 

Os sonhadores organizacionais imaginam sistemas tão [funcionalmente] perfeitos que o ser humano não precisa mais ser [eticamente] bom. T. S. Eliot (inclusão dos colchetes por G. F. Heidemann)

 

O filósofo, teólogo e economista canadense Bernard Lonergan (1904-1983), embora pouco conhecido no Brasil[1], é considerado um dos mais importantes filósofos do século XX (HENRIQUES, 2010). Sua vida foi praticamente toda destinada a estudos de disciplinas como ética, economia, epistemologia e teologia. Nessas áreas teve profunda dedicação a autores relacionados à teoria do conhecimento, aos textos clássicos de filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles, pensadores medievais como Santo Agostinho e Tomás de Aquino, e um conhecimento erudito da filosofia moderna e contemporânea.

Ao tomarmos conhecimento sobre as obras de Lonergan e suas linhas de atuação, principalmente sua teoria do conhecimento - que aborda entre outros temas, a ação humana e ética -, percebemos na grandeza e profundidade de seu trabalho uma possibilidade de fazer o diálogo com outro autor, agora brasileiro, mas ainda não devidamente reconhecido e valorizado em seu país de origem: Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), sociólogo que dedicou parte de seus estudos para o entendimento da razão e de uma ciência que fundamente e compreenda adequadamente as ações humanas e o planejamento de sistemas sociais. Constatamos que Guerreiro Ramos, durante seu período de estudos e escrita da sua última obra “A Nova Ciência das Organizações”, teve contato com os trabalhos de Lonergan, como consta no capítulo segundo d’A Nova Ciência, e utilizou-os como uma das referências para elaborar uma crítica ao modelo contemporâneo de ciência social, tendo em vista sua teoria substantiva da vida humana associada.

Ambos os autores adotam bases ontológicas, epistemológicas, antropológicas e teológicas próximas de uma mesma cosmovisão[2] de mundo, embora, talvez, com propósitos distintos, mas com fundamentos semelhantes e alguns compartilhados. Um exemplo é a utilização da metafísica clássica como fundamentação de seus trabalhos. Esse entendimento fez com que nos despertasse a curiosidade de realizar um estudo de modo a aproximá-los teoricamente. Dada à complexidade, profundidade e grandeza intelectual de ambos os autores, buscamos focar nos pontos nos quais eles parecem convergir: a discussão sobre o agir humano e seus aspectos éticos, a partir de uma abordagem substantiva. Neste contexto, Guerreiro Ramos criou o conceito de “homem parentético”, definido como um ser racional por excelência, sendo a razão entendida em sua dimensão substantiva, noética (GUERREIRO RAMOS, 2001; AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006).

A concepção desse modelo de homem vai de encontro à visão das teorias administrativas que se baseiam na racionalidade instrumental e que ignoram as implicações psicológicas e a natureza do homem. Guerreiro Ramos entendia que a teoria administrativa não poderia continuar a legitimar a racionalidade funcional da organização e, assim, acreditava que o modelo de homem parentético poderia fornecer a ela “a sofisticação conceitual que se faz necessária para enfrentar as questões e os problemas que causam tensões entre a racionalidade noética e a racionalidade funcional” (GUERREIRO RAMOS, 2001, p. 6). Dessa forma, o autor buscou por uma nova ciência das organizações concebida a partir da razão substantiva.

Embora Lonergan não tenha criado, explicitamente, uma teoria substantiva como fez Guerreiro Ramos, sua concepção de ética e bem humano se aproxima de uma abordagem que destaca aspectos que parecem remeter à razão substantiva, fundamentada em noções transcendentais do ser e do valor (COVARRUBIAS, 2016). Para Lonergan, ao colocar juízos de valor no processo de decisão, é possível um caminho de autenticidade e realização moral que se dá num tipo de sujeito ao qual denominou de sujeito existencial ou responsável (NEIRA, 2008). Tal sujeito é aquele que sabe o que agir significa e que o faz conscientemente (WEBB, 2013).

Assim, a partir da indicação de Guerreiro Ramos sobre a possibilidade do homem parentético se constituir em um caminho para o avanço da teoria administrativa e do reconhecimento da abordagem de Lonergan como complementar à compreensão de Guerreiro Ramos, buscamos realizar um ensaio que tem como objetivo identificar as possibilidades de aproximação teórica entre o homem parentético e o sujeito existencial, a partir das perspectivas da ação humana e da ética. Sustentamos que é na complementariedade das categorias (racionalidade, nível de consciência e conduta) que está a possibilidade para que o modelo de homem parentético contribua, segundo Guerreiro Ramos (2001, p. 6), para a “[...] sofisticação conceitual que se faz necessária para enfrentar as questões e os problemas que causam tensões entre a racionalidade noética e a racionalidade funcional”. Além disso, defendemos que há elementos no conceito de sujeito existencial de Lonergan que remetem à razão substantiva e que inserem juízos de valor no processo de decisão, colaborando ao entendimento dos indivíduos nas organizações que não mais se condicionam a se comportar de modo operacional e reativo, mas que buscam exercer sua capacidade crítica e de reflexão ética.

 

2.  O modelo de homem parentético de Guerreiro Ramos

No campo de estudos organizacionais há trabalhos inspirados na obra de Guerreiro Ramos, sejam aqueles dedicados a compreendê-los, sejam aqueles que a criticam ou a questionam. Como destacam Begazo e Agurto (2003), há os que o consideram apenas um teórico, distante da realidade, e há inúmeros outros que o consideram um inovador, principalmente por se lançar a repensar o papel do homem[3] no mundo organizacional.

A obra de Guerreiro Ramos é notadamente marcada por uma preocupação com a condição do homem contemporâneo. Para Azevedo (2007), é uma sociologia antropocêntrica, caracterizada por um “humanismo integral”[4], na qual o trabalho intelectual denota a centralidade de compreensão de um ser humano em todas as suas dimensões. Está presente a percepção dos conflitos entre o homem e os sistemas sociais, a necessidade de compreensão ampliada da razão humana, e inúmeros traços de uma sociologia que busca considerar o indivíduo em sua essência.

Essa “antropoteoria” – ou seja, a teoria dos modelos de homem (VAZ, 2004, p. 4) – de Guerreiro Ramos (AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006, p. 5) pode ser observada nos diferentes momentos de sua trajetória, formação acadêmica e política, bem como em sua formação cristã-católica. Guerreiro Ramos tratou da condição humana tendo como base o pensamento de intelectuais cristãos; discussões de problemas sociais e raciais no qual se identificava fortemente com a cultura negra; pensamento crítico como militante; e a condição humana na sociedade centrada no mercado, na qual se insere a ciência social e, mais especificamente, a teoria das organizações e a teoria administrativa (SOARES, 1995; AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006). O compromisso ético com a vida social (ARTEAGA, 2009), o engajamento (BOAVA; MACEDO; ICHIKAWA, 2010) está claro em seu trabalho, em sua percepção de homem, crítico e consciente da realidade. Destaca-se ainda em sua obra uma busca por uma explicação dos problemas nacionais a partir de uma base nacional, tendo como cerne a realidade social e histórica local (DE OLIVEIRA, 2012; FLORES, 2015).

Ao longo dos anos, Guerreiro Ramos é contundente em denunciar o fato da condição humana – em sua dimensão pública/política ou privada – ser prioritariamente marcada por uma racionalidade funcional que passa a orientar a vida humana e suas ações. É uma característica que se sobressalta em seu tempo, mas que permanece em pauta até hoje nos trabalhos em Administração.

Sua obra ressoa no campo da Administração, principalmente nas questões de autonomia e busca de sentido do homem frente aos problemas da sociedade contemporânea. Discutir elementos da razão é parte de seu argumento, assim como é fundamental para a compreensão de sua obra, para que seja possível, assim, discutir o homem e seu papel social.

Guerreiro Ramos destaca em seus estudos – e irá inspirar diversos trabalhos posteriores, como apresentam Serva et al. (2015) – a categoria de razão substantiva (ou noética). Ao explicar a racionalidade substantiva ele irá destacar a centralidade do juízo ético. Exatamente por esse motivo parece ser inspirador para pesquisadores da Administração, que buscarão em seu trabalho uma racionalidade que se contraponha àquela comumente observada nas organizações tradicionais – a racionalidade funcional – ou que procurem destacar o papel do homem na sociedade e no mundo das organizações que, “[...] por meio da racionalidade substantiva [...] tem maior consciência de seu papel no mundo, arguindo-se sobre a verdadeira lógica da ação social, quando esse indivíduo reconhece que o sistema predominante reduz sua capacidade de análise” (MUZZIO, 2014, p. 710).

Considerando as concepções de racionalidade, Guerreiro Ramos irá descrever três modelos de homem (antropoteoria), conforme apresentado em seu artigo “Modelos de Homem e Teoria Administrativa”. Guerreiro Ramos (2001) reconhece a existência do homem operacional, homem reativo e, a partir do estado crítico da arte e da teoria da Administração, propõe um novo modelo: o homem parentético.

Para o primeiro, o homem operacional, Guerreiro Ramos (2001) afirma ser equivalente ao homo economicus, da economia clássica. É considerado um recurso dentro do contexto organizacional que deve ser maximizado em termos de produto físico. Nesse sentido, o trabalhador é visto como um ser passivo, programável e ajustável aos imperativos da maximização da produção. Sua motivação é calculada e movida por recompensas materiais e econômicas e sua liberdade pessoal é algo estranho ao modelo organizacional.

Posteriormente, a escola das relações humanas desenvolve o que Guerreiro Ramos (2001) denomina de modelo de “homem reativo”, para o qual a Administração tem como objetivo reforçar os comportamentos da racionalidade organizacional específica. Ele alerta que, apesar da preocupação dos humanistas com os trabalhadores, os objetivos buscados não foram alterados e tal modelo de homem ainda reflete um trabalhador ajustado ao contexto do trabalho e não ao seu crescimento individual ou autorrealização. Tal situação dá origem ao ‘homem organizacional’ e a integração indivíduo-organização em detrimento da consciência individual.

Tal integração é entendida por Guerreiro Ramos (2001) como um problema, uma vez que não é distinguido o que corresponderia ao espaço individual-privado do ser humano e o espaço organizacional. Consequentemente, na integração entre indivíduo-organização se ignora também o ‘caráter duplo da racionalidade’. Com isso, Guerreiro Ramos chama a atenção para a dimensão substantiva ou noética, que não corresponde aos padrões do comportamento administrativo, tal como delineado no homem organizacional. Em suas palavras, “um comportamento humano que ocorra sob a égide da racionalidade noética pode ser administrativo apenas por acaso, não necessariamente” (GUERREIRO RAMOS, 2001, p. 6). O indivíduo, quando inserido no contexto organizacional, ao se ver impossibilitado de realizar julgamentos éticos – como julgar a organização, seus líderes e comportamentos – pode-se encontrar diante de dilemas morais derivados da tensão entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade (SANTOS, 2012).

Em seu livro Administração e Contexto Brasileiro, o autor dedica um capítulo para explorar o tema ‘tensões éticas nas organizações’. Nesse texto, Guerreiro Ramos (1983) utiliza os termos ética da convicção e ética da responsabilidade, na qual a primeira – também chamada de ética do valor absoluto – encontra-se implícita nas ações referentes a valores, enquanto que a segunda está contida nas ações referidas a fins. Assim, elas estão estreitamente relacionadas à racionalidade que orienta a ação dos indivíduos, entretanto, não necessariamente de maneira antagônica. Na sua visão, “pode-se admitir congruência entre as duas éticas, na proporção em que as qualificações e a natureza do trabalho se coadunem com os valores do indivíduo. Consequentemente, a não ser em casos extraordinários, nenhum indivíduo organiza sua conduta sob a espécie exclusiva de nenhuma das duas éticas” (GUERREIRO RAMOS, 1983, p. 43).

Quando o ser humano encontrar substantivamente legitimidade do seu agir, sem a imposição de regras e sob o domínio da razão substantiva, ele age sob o imperativo da ética da convicção. Quando há a imposição de regras e a legitimidade do agir é um atributo previamente definido pelo grupo ao qual ele pertence, o ser humano age ou se comporta sob o imperativo da ética da responsabilidade, vinculada à razão instrumental. Em síntese, tem-se:

 

Tabela 1 - Síntese das principais categorias weberianas

AÇÃO SOCIAL

CRITÉRIO

PROCESSO

ÉTICA

Ação racional referida a fins

Racionalidade funcional

Adaptação meios/fins

Ética da responsabilidade

Ação racional referida a valores

Racionalidade substantiva

Orientação valorativa

Ética da convicção ou do valor absoluto

Fonte: Serafim (2001)

 

Guerreiro Ramos (1989) ao demonstrar a perda da capacidade da razão do indivíduo em normatizar sua própria conduta, discorre acerca do que ele denomina de síndrome comportamental, caracterizada pela perda da capacidade e da condução de ações pautadas pela ética. Neste sentido, o autor faz uma distinção entre comportamento e ação, sintetizada na Tabela 2 a seguir:

 

Tabela 2 - Distinção entre comportamento e ação

CONDUTA

COMPORTAMENTO

AÇÃO

Forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional ou na estimativa utilitária de consequências (o ser humano tem em comum com outros animais)

Própria de um agente que delibera sobre coisas porque está consciente de suas finalidades intrínsecas

Categoria mais importante: conveniência

Categoria mais importante: padrão substantivo de conduta

Desprovido de conteúdo ético de validade geral

Constitui uma forma ética de conduta (universalizável)

Ditada por imperativos exteriores (conduta mecanomórfica)

Reconhece o valor intrínseco das finalidades

Pode ser avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo determinado por causas eficientes

Ser humano age, toma decisões e faz escolhas porque causas finais – e não somente causas eficientes – influem no mundo em geral

Fonte: Serafim (2001)

 

Nessa linha, a síndrome comportamental é uma deturpação da noção substantiva de conduta humana, tornando-se característica básica das sociedades contemporâneas, que são a “culminação de uma experiência histórica, a esta altura já velha de três séculos, que tenta criar um tipo nunca visto de vida humana associada, ordenada e sancionada pelos processos auto reguladores de mercado” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 52). A incompatibilidade dos valores do indivíduo – que em sua complexidade vão muito além das razões puramente econômicas – com os da organização, requer dos sujeitos o que Guerreiro Ramos (1983) e Mannheim (1962) denominam de “autorracionalização da conduta”, que pode ser percebida nas características do homem parentético. Esse tipo de homem, ainda sendo um participante da organização, possui a capacidade psicológica de resistir às mazelas que as organizações podem acarretar ao seu comportamento (AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006). A consciência crítica dessa atitude teria reflexos na esfera de consciência e conduta humana, permitindo a humanidade uma nova fase no seu processo de vida humana associada. Cabe um esclarecimento sobre esse termo:

 

A consciência crítica surge quando um ser humano ou um grupo social reflete sobre tais determinantes [sociais e exteriores] e se conduz diante deles como sujeito. Distingue-se da consciência ingênua que é puro objeto de determinações exteriores. A emergência da consciência crítica num ser humano ou num grupo social assinala necessariamente a elevação de um ou de outro à compreensão de seus condicionamentos. Comparada à consciência ingênua, a consciência crítica é um modo radicalmente distinto de apreender os fatos, do qual resulta não apenas uma conduta humana desperta e vigilante, mas também uma atitude de domínio de si mesma e do exterior (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 48).

 

Portanto, é com um desenho inspirado na racionalidade noética de Eric Voegelin (CAPELARI; AFONSO; GONÇALVES, 2014), nos filósofos gregos clássicos (Platão e Aristóteles), na filosofia personalista (principalmente de Jacques Maritain) e na fenomenologia de Husserl e Heidegger, que Guerreiro Ramos irá compor um modelo de homem mais abrangente do que àquele que responde a um alto grau de racionalidade funcional. Dessa forma, o homem parentético surge com “novas prioridades” (BULGACOV; CASTIGLIA, 2003), buscando superar os dilemas organizacionais de modo esclarecido, engajado, crítico e com capacidade de ação e reflexão, sendo capaz de perceber e identificar os fatores pessoais e sociais que o condicionam, atuando a partir das reflexões acerca de seus próprios valores, examinando seu contexto, mas também observando suas próprias necessidades, com autodomínio e capaz de dar sentido ao seu trabalho (MOZZATO; GRZYBOVSKI, 2013; FLORES, 2015; BONDARIK; PILATTI, 2007; DURANTE; TEIXEIRA, 2008; SANTOS; SANTOS; BRAGA, 2015).

Assim, “o homem parentético está eticamente comprometido com valores que conduzem o primado da razão (no sentido noético) na vida social e particular” (GUERREIRO RAMOS, 2001, p. 8-9). Adicionalmente, possui a autonomia necessária e consciência crítica desenvolvida a partir de premissas de valor que não o deixam ser enquadrado psicologicamente como os modelos reativo e operacional. Sua habilidade para “colocar o ambiente entre parênteses” possibilita o exame e avaliação das situações como um espectador, num primeiro momento, para ser possível se tornar sujeito, resultado de uma atitude autodeterminativa precedida da compreensão dos condicionamentos ambientais e sociais que o afetam. Em outras palavras, o homem parentético é aquele que aprendeu certas habilidades culturais que o possibilitam a “[...] transcender, no limite do possível, os condicionamentos circunstanciais que conspiram contra a sua expressão livre a autônoma” (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 11).

Importante destacar que essa antropoteoria faz parte de um projeto que Guerreiro Ramos procurou executar durante sua vida. Como ele salienta no prefácio da segunda edição de sua obra “A redução sociológica” (GUERREIRO RAMOS, 1996), a “atitude parentética” é um dos três sentidos básicos do que ele denomina “redução”. Tal atitude foi esboçada pela primeira vez no capítulo Homem Organização e Homem Parentético, da obra “Mito e verdade da revolução brasileira” (GUERREIRO RAMOS, 1963). Os outros dois sentidos são (a) redução como método de assimilação crítica da produção sociológica estrangeira, abordado no livro “A redução sociológica” (GUERREIRO RAMOS, 1996); (b) redução como superação da sociologia nos termos institucionais e universitários atuais, tema contido na obra “A nova ciência das organizações” (GUERREIRO RAMOS, 1989).

 

3.              A ética e ação humana sob a perspectiva de Bernard Lonergan: o sujeito existencial

Bernard Lonergan foi um filósofo, teólogo e economista canadense que viveu entre os anos de 1904 e 1983. É considerado por alguns estudiosos como o mais importante filósofo do século XX (HENRIQUES, 2010). Durante seu período de formação, Lonergan estudou autores relacionados à teoria do conhecimento, textos clássicos de filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles, pensadores medievais como Santo Agostinho e Tomás de Aquino, e um conhecimento erudito da filosofia moderna e contemporânea. Em sua carreira profissional, atuou como professor, pesquisador e autor de trabalhos vinculados a temas de ética, epistemologia, teologia e economia.

Tendo em vista seus trabalhos e ideias, Lonergan passou a ter muitos admiradores em diversos países, como Portugal, Espanha, Canadá, Estados Unidos e Colômbia. Atualmente existem mais de dez centros de pesquisa dedicados à sua obra, que produzem trabalhos de mestrado, doutorado e colóquios para discutir seus pensamentos e repercussões (HENRIQUES, 2010). Apesar disso, são poucos os trabalhos e pesquisadores no Brasil que conhecem e citam as obras de Bernard Lonergan.

Em uma busca realizada na Scientific Periodicals Electronic Library (Spell) em março de 2016, com o critério “autor citado”, não foi encontrado qualquer trabalho. Durante o mesmo período, no Portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – que reúne trabalhos defendidas em todo o País e por brasileiros no exterior, – a busca pelo termo “Lonergan” em todos os campos retornou apenas uma dissertação de mestrado em Direito de 1997. Por outro lado, ao realizar a busca de “Bernard Lonergan” em qualquer parte do texto, no Portal EBSCO, foram encontrados 1.952 resultados, mas nenhum de autores brasileiros. Essas informações podem indicar um possível desconhecimento de pesquisadores nacionais sobre o autor, mas que possui uma relativa relevância em obras estrangeiras. Sendo assim, consideramos importante realizar um breve resgate sobre Lonergan antes de tratarmos do enfoque de nossa atenção: sua concepção de ética e ação humana na qual desenvolve o conceito de sujeito existencial.

O livro “Insight – um estudo do conhecimento humano” – escrito entre 1949 e 1953 e publicado em 1957 – é considerado a principal obra do autor. Sua leitura é trabalhosa, com bastante influência do latim, língua que dominava. Lonergan a chamou de “um ensaio de auto-apropriação” por levar a pessoa a se conhecer, buscar respostas no seu interior e prestar atenção ao seu próprio conhecimento, sendo, portanto, um convite à prática (HENRIQUES, 2010). Outra obra de destaque em sua trajetória é o livro “Método em Teologia” de 1964, no qual se dedica a uma metodologia do conhecimento humano e vislumbra o alcance ético e religioso que integra a estrutura de todo conhecimento. Vale destacar também outro trabalho, CollectionCollected Works of Bernard Lonergan, menos conhecido, mas de importante menção para nosso ensaio por ter sido utilizado por Alberto Guerreiro Ramos ao escrever o capítulo segundo de sua obra “A Nova Ciência das Organizações”. Essa coleção contém textos mais curtos que abrangem o trabalho de Lonergan no período de 1943 a 1965 e tratam da discussão de temas como: a fundação adequada da metafísica, a forma de inferência, a natureza do amor e do casamento e o papel da universidade no mundo moderno, entre outros.

Em relação ao seu posicionamento epistemológico, Lonergan se considerava um realista crítico por buscar a compreensão sobre as condições que permitem o conhecimento e sobre como se dá o papel do homem na aquisição de um conhecimento consciente e preocupado com a realidade. Para isso, busca respostas na análise fenomenológica da subjetividade humana, do sujeito humano em toda a gama de sua vida consciente e intencional (WALCZAK, 2008). Duffy (1996) argumenta que o pensamento de Lonergan não representa uma mudança da filosofia crítica em relação ao existencialismo, tema por ele abordado, mas uma incorporação de muitas das preocupações de escritores existencialistas dentro de um realismo crítico.

De acordo com essa posição, Lonergan entende que o conhecimento é fundado por um julgamento que verifica como a compreensão explica ou interpreta os dados corretamente. No mesmo sentido, a consciência moral baseia o seu conhecimento concreto do bem humano e, a partir dessa concepção, o autor trabalha o tema da ação humana e ética, onde repousa nosso principal interesse: o sujeito existencial. Entretanto, conforme alerta Webb (2013), Lonergan não realizou uma análise tão profunda sobre o sujeito existencial como fez sobre o insight. Contudo, a sua concepção e entendimento de sujeito, ação humana e ética estão diretamente associados ao modo como o autor compreendia a possibilidade do conhecimento, sendo assim necessária uma breve descrição, que já sistematiza a formação do sujeito existencial.

A teoria do conhecimento de Lonergan é fundamentada no desejo de conhecer: um desejo irrestrito, imparcial e desinteressado de conhecer (HENRIQUES, 2010). Para o autor, conhecer é fácil; difícil é saber a origem do desejo de conhecer e o que se passa na consciência quando conhecemos. O conhecimento ocorre pela auto-apropriação do sujeito – tese defendida em sua obra Insight –, que ele define como um método transcendental, que vai além do que se sabe, e subjacente a todos os tipos de conhecimento (LONERGAN, 2010). O sujeito, nesse sentido e para o autor, “é ser alguém que desempenha operações intencionais” (WEBB, 2013, p. 113). Por meio dessa linha de argumentação da ação, ele constrói uma filosofia da consciência para entender como passamos à determinação das características da realidade, ou seja, aquilo que conhecemos por meio de um juízo verdadeiro.

Lonergan (2010) argumenta que o conhecimento ocorre por meio de intelecções, que não são métodos, mas sim algo que ocorre quando alguém compreende e responde a uma questão originada por uma experiência, libertando-nos da tensão da investigação. Esse seria o ‘insight’, ou seja, a captação do mundo concreto por meio dos sentidos, que pode ocorrer em todo tipo de conhecimento e ciências, bem como no senso comum. Henriques (2011) esclarece que foram buscadas diversas palavras que pudessem traduzir para o português o termo ‘insight’, tais como evidência, inteligência, descoberta, intuição. Contudo, foi o termo ‘intelecção’ que revelou o verdadeiro alcance noético do termo. Segundo o Institute of Noetic Sciences, o termo ‘noético’ vem do grego nous, que significa mente, sabedoria interior, conhecimento direto. Enquanto disciplina, trata-se de um campo multidisciplinar que traz ferramentas científicas para estudar toda a gama de experiências humanas, ou seja, fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida (INSTITUTE OF NOETIC SCIENCES, 2016).

As intelecções ocorrem espontaneamente e deve-se apurar se são corretas ou não. Por isso mesmo que para Lonerganconhecer é identificar realidades, por meio da experiência atenta, da captação inteligente e da afirmação razoável” (HENRIQUES, 2010, p. 21). Assim, temos três maneiras básicas de conhecer, que formam uma tríplice estrutura: a) a experiência nos dá peças soltas de informação – dados de experiência no nível de apresentações/experimentar; b) o entendimento capta uma unidade e explicações – nível de inteligência/compreender; c) o conhecimento apenas fica completo com o ato humano de juízo que capta uma realidade – nível de reflexão/julgar (WALCZAK, 2008). Dentro dessa possibilidade de conhecimento, a consciência atua como o elemento que nos faz ligar as coisas. Com essa argumentação, o autor defendeu que somente por meio do processo de juízos racionais e captação inteligente que conseguimos identificar realidades.

Em sua filosofia da consciência, Lonergan (2010, p. 317) entende a consciência como “apercepção imanente dos atos cognitivos” e defende que estar consciente significa realizar a atividade pensante. Para tanto, define quatro níveis de consciência que estão associados com as tarefas do método de conhecimento que propõe (DIMAS, 2014). Na consciência empírica, sentimos, percebemos, imaginamos, falamos, nos movemos; o homem vive, mas não se preocupa com o seu significado. No nível intelectual, entendemos, expressamos o sentido, decidimos pressuposições e implicações de nossa experiência: pergunta-se ‘o que’ e ‘por que’. No nível de consciência racional, realizamos o juízo sobre o verdadeiro e o falso; certeza ou probabilidade de uma proposição. O último nível de consciência é aquele de responsabilidade e liberdade no qual assumimos nossas operações, avaliamos seu valor, deliberamos sobre o caminho da ação, decidimos e atuamos (DIMAS, 2014; LONERGAN, 2010; NEIRA, 2008).

A partir desses níveis de consciência se associa diferentes tipos de sujeitos. No primeiro nível (consciência empírica), o indivíduo apenas experimenta de forma imediata, existindo somente como sujeito experiencial ou empírico. Quando passa a buscar também o significado e consegue chegar a uma intelecção de forma inteligível, compreende os fragmentos de um todo de forma coerente e estruturada, torna-se um sujeito mais que experiencial, um sujeito entendedor (nível intelectual). A partir da reflexão crítica sobre a adequação de seu entendimento, além de sujeito empírico e intelectual, ele se torna um sujeito racional (nível racional). Por fim, quando o indivíduo sabe e compreende o significado de sua ação e a faz conscientemente no nível de consciência de responsabilidade, surge o sujeito existencial (DIMAS, 2014; WEBB, 2013).

O sujeito existencial é comprometido, mas compreensão e julgamento não ocorrem em um vácuo. Suas ações são contextualizadas para a busca da compreensão e da verdade e, com maior ou menor sucesso, é fiel ao seu compromisso ético (LONERGAN, 2012). A partir dessa compreensão, Lonergan acredita que o objeto do conhecimento é o mundo tal como ele é, no qual o homem realiza escolhas para que o possível se torne mais provável. Para isso, opera com juízos de valor, deliberações e escolhas. Neste sentido e com essa argumentação, Lonergan convida o sujeito a ser um agente, um sujeito que escolhe, e desloca a sua teoria da intelecção – um exercício da consciência intencional – para o exercício existencial e para a vida prática do sujeito em sociedade (HENRIQUES, 2010).

Assim, tendo em vista sua rede de compreensão para o estudo do conhecer e baseado nela, Lonergan apresenta o papel da ética no âmbito do agir e introduz a possibilidade da ética como orientação para a vida, fundamentado no conceito de bens (HENRIQUES, 2011). O insight próprio da ética, “que nos impele e nos obriga a ação, integra o bem e os bens, a liberdade e a libertação” (HENRIQUES, 2010, p. 70). Esse Bem, para Lonergan, baseia-se no sentido aristotélico e refere-se à realidade procurada e ao nosso desenvolvimento como sujeitos que selecionamos ‘o mundo’ em que vivemos. Dessa forma, a consciência intencional, que apresentou em sua teoria do conhecimento, é trazida para a discussão ética, mas realizando a devida distinção e aproximando-a da práxis aristotélica, para a qual a ética não se pratica apenas com a aquisição de regras, mas nos desenvolvendo como seres morais e enfrentando os domínios do senso comum (HENRIQUES, 2010). A virtude ética, em Aristóteles, é aquela que atua na parte prática, no comportamento prático e no modo de ser na busca do Bem (REALE; ANTISERE, 2005).

No desenvolvimento dos trabalhos de Lonergan há uma mudança na ênfase sobre a ‘autenticidade’ e uma distinta ‘noção de Bem’ (DUFFY, 1996). Há um requinte e uma expressão mais adequada em escritos posteriores do que o que é apresentado em Insight. No Insight, o Bem era o inteligente e razoável. Na obra Método em Teologia, o Bem se destina às questões de deliberação: É isto que vale a pena? É verdadeiramente ou só aparentemente bom? Tem-se uma resposta intencional baseada em valores e em juízos de valor feitos por uma pessoa virtuosa ou autêntica com uma boa consciência. Metaforicamente, a intenção do Bem é a “cola” da consciência humana (DUFFY, 1996).

Para alcançar o Bem devemos buscar a libertação de bloqueios e distorções, num processo que tem avanços e retrocessos, localizando-se no nível da consciência do sujeito existencial. Assim, do mesmo modo que há uma sequência cognitiva de conhecimento ‘experiência, intelecção e juízo’, para a ética há ‘bens, liberdade e libertação’: “Desejamos e experimentamos bens. Refletimos e compreendemos a liberdade. Tentamos e realizamos atos de libertação” (HENRIQUES, 2010, p. 71). Para esse tipo de intelecção ética, devemos enfrentar os domínios do senso comum que se apresenta interessado em soluções práticas (sujeito experiencial), oferecendo uma dedução inarticulada e um conjunto incompleto de intelecções. Para enfrentar esses domínios, fazemos perguntas sobre o que vale a pena e que nos levam a compromissos e responsabilidades (sujeito racional e sujeito existencial), tais como: isto que estou fazendo, vale a pena? É algo realmente bom e valioso ou somente é bom em aparência? (NEIRA, 2008). Estamos tratando, neste ponto, do campo das decisões e dos juízos de valor.

Esse tipo de pergunta está vinculado à autotranscendência moral, ou seja, aquilo que dá orientação à vida pessoal e das pessoas que a rodeiam, bem como a realização daquilo que é considerado pelo agente como verdadeiro, essencial, valioso. A autotranscendência é possível na medida em que não nos encontramos egocentrados. Buscamos ir mais, através e além, como nas perguntas citadas anteriormente (NEIRA, 2008). Essa explicação é apresentada por Lonergan quando diferencia os termos em inglês ‘self-trascendence’ (autotranscendência) e ‘self-regarding’ (autocentramento).

A autotranscendência como processo operativo para o campo das decisões e deliberações está associada aos juízos de valores e ao âmbito existencial, no qual um indivíduo ou uma comunidade tem que decidir o que querem fazer com seu próprio destino e vida, ou seja, buscando a liberdade humana. A partir dos juízos de valor se constituem os processos de discernimento e chega-se as decisões (NEIRA, 2008).

 

4.              A possibilidade de complementariedade: as contribuições de Lonergan ao modelo de homem parentético

Apresentados brevemente alguns dos fundamentos encontrados nas obras de Bernard Lonergan, podemos retomar o modelo de homem parentético de Guerreiro Ramos e buscar elementos que possibilitem uma aproximação entre as visões de ambos autores e seus modelos de homens/sujeitos. Antes, contudo, sintetizamos na Tabela 3 as principais categorias de análise que nos permitiram aproximar, de forma complementar, os dois tipos de homem/sujeito tratados nesse ensaio.

Tabela 3 – Quadro-síntese com as principais categorias de análise compartilhadas entre o homem parentético e o sujeito existencial

 

HOMEM PARENTÉTICO

SUJEITO EXISTENCIAL

Conceito

Ser racional por excelência que busca superar os dilemas e atuar de modo esclarecido, engajado, crítico e com capacidade de ação e reflexão (MOZZATO; GRZYBOVSKI, 2013; FLORES, 2015; BONDARIK; PILATTI, 2007; DURANTE; TEIXEIRA, 2008; SANTOS; SANTOS; BRAGA, 2015).

Sujeito ‘fazedor’ capaz de compreender o significado de sua ação e agir de forma conscientemente responsável, a partir de juízos de valores, liberdade e responsabilidade (DIMAS, 2014; MORELLI; MORELLI, 1997; WEBB, 2013).

Racionalidade

Baseiam-se na razão própria e atributo inerente do indivíduo enquanto criatura de razão: racionalidade noética ou substantiva, de caráter verdadeiro e auto-evidente, que possibilita a busca pela liberdade, autonomia e autorrealização (DENNIS, 2009, GUERREIRO RAMOS, 2001)

Nível de consciência

Ambos os tipos de homem/sujeito estão em uma transição entre nível de consciência racional e o responsável, cujo o conhecimento, a experiência e a ação somente ficam completos com o ato humano de juízo e reflexão. Nesse nível de consciência mais avançado (da responsabilidade e liberdade) são capazes de deliberar eticamente e racionalmente sobre os caminhos de ação e decisão (WALCZAK, 2008; DIMAS, 2014; LONERGAN, 2010; NEIRA, 2008).

Conduta

A conduta própria desses tipos de homem/sujeito é aquela que não se orienta por modelos e condutas ditadas por imperativos exteriores, como estruturas políticas ou sociais. Dessa forma, eles não “se comportam” mas “agem” de modo consciente sobre as finalidades intrínsecas das ações (GUERREIRO RAMOS, 2001; SERAFIM, 2001, WEBB, 2013).

Fonte: Elaborados pelos autores

 

Foi com base nesses ‘encontros de sentido’ entre as categorias de análise da Tabela 3 que pudemos sustentar o pressuposto de que ambos os autores pertencem a uma cosmovisão semelhante, ou seja, uma maneira semelhante de entender/ver o mundo e as relações humanas. A partir da análise de suas obras, acreditamos que possuem pontos em comum que podem corresponder a uma forma muito próxima de se pensar a condição humana, sendo sua principal similaridade a questão da consciência crítica do homem parentético e a consciência da responsabilidade de Lonergan. Ambas refletem uma consciência profundamente desenvolvida sobre premissas de valor do sujeito em ação que busca se libertar de uma ‘ingenuidade social’, por meio da possibilidade de transcendência ao mundo em que estava posto e agir de modo a orientar a sua vida e das pessoas que rodeiam ao que considera essencial e verdadeiro, buscando sua liberdade, autonomia e autorrealização (AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006; NEIRA, 2008; GUERREIRO RAMOS, 2001).

A aproximação de ambos também se dá por alguns dos autores que ambos utilizam, sendo o principal deles o filósofo Aristóteles. Na obra “A Nova Ciência das Organizações”, Guerreiro Ramos (1989) destaca que o homem, para os teóricos clássicos, diferencia-se dos outros animais por ser um ser político/civil (zoon politikon), dotado de razão e de imperativos éticos. O autor recorre a Aristóteles para explicar que, enquanto ser social, o homem também calcula, como um agente econômico, mas no seu espaço privado (família); enquanto ser político, o homem busca expandir o bom caráter do conjunto (interesses sociais).

Também a partir de Aristóteles e de sua orientação metafísica, segundo a qual “todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer” (ARISTÓTELES, 1984, Livro I (A), p. 11), o filósofo e teólogo Lonergan elabora sua teoria do conhecimento que tem como pressuposto que o ‘conhecimento’ e o ‘desejo’ são duas instâncias inseparáveis. Assim, o que Lonergan chamou de insight ou intelecção – aquilo que é realizado enquanto o sujeito está compreendendo – equivale à ‘forma’ em Aristóteles (OLIVEIRA, 2011).

Além de Aristóteles, vale também destacar o filósofo, historiador e cientista político Eric Voegelin. Embora existam pontos de discórdia entre Lonergan e Voegelin, ambos são vistos por Eugene Webb (2013) como ‘filósofos da consciência’. Guerreiro Ramos também poderia ser incluído nessa classificação devido às suas reflexões da condição humana. Além disso, Guerreiro Ramos, Lonergan e Voegelin também possuem em comum a inclusão, em suas obras, de conversações filosóficas e autores do período clássico e medieval, retomando-os para a reflexão sobre a condição humana e a ação virtuosa na contemporaneidade, conforme pontuou também Azevedo e Grave (2014) sobre a abordagem de Guerreiro Ramos. Inclusive, Voegelin, segundo Guerreiro Ramos (1989), realizou uma crítica árdua ao esquecimento do conteúdo de textos clássicos como os de Platão e Aristóteles.

Ao pensar em termos de possibilidade de complementariedade ou de agregação do legado de Lonergan ao entendimento das obras de Guerreiro Ramos, em especial aquilo que tangencia a noção de homem parentético, vemos em Lonergan uma possibilidade de ‘método’ ao que foi construído por Guerreiro Ramos, principalmente, no âmbito teórico. Em outras palavras, a forma como se dá o conhecimento e os níveis de consciência definidos por Lonergan são, como ele mesmo frisou, um convite e um exercício à prática para que a pessoa possa se conhecer e buscar respostas no seu interior (HENRIQUES, 2010). Guerreiro Ramos, ao traçar os modelos de homem e apontar o homem parentético como uma “capacidade psicológica que habilitaria as pessoas a resistir às mazelas que as organizações podem acarretar ao comportamento e à psicologia humana” (AZEVEDO; ALBERNAZ, 2006, p. 5), não apresenta de forma clara ou, por que não, metodológica, como isso se daria. No livro “A Nova Ciência das organizações”, que é posterior à escrita do texto sobre os modelos de homem, Guerreiro Ramos (1989, p. XVII) salienta que sua obra é fruto de mais de 30 anos de pesquisa e reflexão. Contudo, também deixa claro que se trata apenas de um começo, pois “não articula tudo aquilo que a nova ciência consiste”. Assim, trata-se de uma proposta de trabalho teórico e operacional que pretendia dar continuidade durante o restante de sua vida.

Tendo isso em mente, retomamos os estudos de Lonergan que oferece em suas obras um método de análise das operações humanas que nos permite uma melhor auto-apropriação e orientação das operações, de tal forma que nossa vida possa se mover na direção da autenticidade humana e do progresso. Vimos, com isso, uma possibilidade de associar o método de Lonergan como uma alternativa de ação e reflexão para o homem parentético. Lonergan identifica um sujeito racional, no seu nível de consciência racional; contudo, no nível de consciência responsável, admite um sujeito responsável ou sujeito existencial, que se assemelha ao modelo de homem parentético por ser um sujeito que, mais do que ser apenas um conhecedor, passa a ser um fazedor: delibera, avalia, escolhe e atua. Dessa forma, seu fazer é livre e responsável, mas o que dá sentido à ação é seu juízo de valores que guiam a conduta. Da mesma forma, o homem parentético tem sua conduta orientada pela dimensão lúcida da razão, ou seja, aquela que “possui uma consciência crítica altamente desenvolvida das premissas de valor presentes no dia-a-dia; está apto a compreender os ditames da razão substantiva, em contraposição às condicionantes do comportamento definidas a partir das imposições externas” (JACOMETTI et al., 2013, p. 99).

O sujeito existencial de Lonergan é aquele que “sabe o que agir significa e que o faz conscientemente” (WEBB, 2013, p. 114). Desta forma, sua conduta, assim como a do homem parentético, não se limita a simplesmente ‘comportar-se’, a partir de uma conduta ditada por imperativos exteriores e por conveniência. Diferentemente, sua conduta refere-se à ‘ação’, ou seja, aquela própria de um agente que delibera sobre as coisas, pois está consciente de suas finalidades intrínsecas (SERAFIM, 2001). Tanto o homem parentético como o sujeito existencial são passíveis de tensões existenciais; contudo, reconhecem, pelo juízo de valores associado ao predomínio de uma racionalidade substantiva, o valor intrínseco das finalidades.

A racionalidade do homem parentético é a própria razão em si, como definida em seu sentido substantivo e noético, conforme conceituada por Karl Mannheim e Eric Voegelin, respectivamente (GUERREIRO RAMOS, 2001). Assim, a racionalidade é entendida como,

 

[...] o processo de estudo ordenado e de identificação dos padrões de ordenamento da vida humana associada que são auto-evidentes ao indivíduo, independente das estruturas políticas e sociais específicas [...]. Esses padrões não derivam e não dependem da opinião da maioria ou do resultado da interação entre interesses divergentes. Eles são verdadeiros e auto-evidentes [...]. (DENNIS, 2009, p. 204)

 

Esse mesmo sentido noético de sabedoria interior e conhecimento direto é encontrado no conceito de insight, conforme utilizado por Lonergan, e traduzido para o português como intelecção (HENRIQUES, 2010, WEBB, 2013). Assim, o sujeito existencial, tal como o homem parentético, possui intelecções espontâneas – de forma transcendental –, que possibilitam o desempenho de operações intencionais para determinação das características da realidade por meio de um juízo verdadeiro. A racionalidade substantiva ou noética parece se revelar da mesma forma devido ao seu caráter auto-evidente e consciente de seus condicionamentos políticos e sociais, de modo a superar tais condicionamentos.

 

5.  Considerações Finais

As obras de Bernard Lonergan são de uma densidade e profundidade que exige um esforço incomum para entendê-la em sua completude. Da mesma forma ocorre com Alberto Guerreiro Ramos. Em ambos os autores se verificam novos elementos, novas perspectivas de estudo e compreensão a cada leitura que se faça, por vezes de um mesmo conteúdo. Ainda assim, foi possível neste ensaio exploratório e inédito realizar uma primeira aproximação entre os autores, por meio de dois conceitos trabalhados por eles e apresentados no objetivo definido no início deste trabalho.

Buscamos demonstrar que as visões de homem – existencial e parentético – dos autores são, ao mesmo tempo, singulares e complementares. Singulares, por tratarem de uma dimensão ética da ação humana com desenhos e proposições próprias e muito próximas entre si. Complementares, pois justamente sua proximidade ao desenhar os conceitos teóricos permite visualizar a operacionalização futura das categorias propostas neste ensaio: racionalidade, nível de consciência e conduta.

É justamente nessa complementariedade das categorias – racionalidade, nível de consciência e conduta – que encontramos a possibilidade que esse ensaio contribua para o apontamento de Guerreiro Ramos (2001, p. 6) de que “o modelo de homem parentético pode dar à teoria administrativa a sofisticação conceitual que se faz necessária para enfrentar as questões e os problemas que causam tensões entre a racionalidade noética e a racionalidade funcional”. Ao ver no sujeito existencial elementos que remetem à razão substantiva e que colocam juízos de valor no processo de decisão, acreditamos que ele contribui para o entendimento dos indivíduos inseridos nas organizações que não mais se condicionam a se comportar de modo operacional e reativo, mas que buscam exercer sua capacidade crítica e de reflexão ética. Aos pesquisadores de estudos organizacionais e gestores de organizações cabem aprender a identificar tal dimensão do sujeito e não a reprimir, considerando-a como uma possibilidade de criatividade e expressão em uma das dimensões que compõem a existência humana.

Acreditamos que, ao buscarmos identificar as possibilidades de aproximação entre o homem parentético e o sujeito existencial – a partir de sua perspectiva de ação humana e ética – encontramos mais do que uma associação entre as duas categorias de condição de ação humana: também uma possibilidade teórico-empírica de entendimento da ação humana baseada na razão substantiva e no seu caráter transcendental.

Esperamos ter atingido o objetivo proposto neste ensaio e temos, como próximo desafio, a inserção do legado de Lonergan sobre a teoria do conhecimento, a ação humana e a ética no contexto de trabalhos teórico-empíricos dos estudos organizacionais. Acreditamos que suas reflexões poderão contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre a racionalidade substantiva e racionalidade existencial, ética da convicção e ética responsabilidade, bem como a tensão existencial entre tais éticas.

 

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[1] Essa situação será explicitada ao longo do texto.

[2] A definição de “cosmovisão” que adotamos neste artigo é a seguinte: uma orientação fundamental, que pode ser expresso como uma história ou num conjunto de pressuposições que sustentamos (consciente ou inconscientemente), sobre a constituição básica da realidade e que fornece seus elementos fundantes, segundo os quais vivemos, agimos e existimos (SIRE, 2012).

[3] Temos ciência que, neste caso, a palavra “homem” está em desuso e não está de acordo com as normas vigentes do politicamente correto. Entretanto, decidimos mantê-la para sermos coerentes com o vocabulário de Ramos.

[4] Termo originalmente utilizado pelo filósofo e teólogo Jacques Maritain (1945), uma das influências de Guerreiro Ramos.