A invisibilização
do negro no trabalho escravo contemporâneo: evidências a partir das condições
de vulnerabilidade social.
The invisibility of the black population in modern
slavery: evidence based on conditions of social vulnerability
Rodrigo Martins Baptista
Professor do Centro Universitário Senac e da
Universidade Anhembi Morumbi. Postdoctoral fellow da University of Kassel, Kassel, Germany, e Doutor em Administração pelo Centro
Universitário Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia
de Medeiros (FEI). E-mail: rodrigo2w2@gmail.com. ORCID: 0000-0003-0157-1510
Mariana Lima Bandeira
Professora Titular da Universidad
Andina Simón Bolívar (Equador), e Professora
Convidada da Universidad Estatal de Milagro (Equador) e do Programa de Pós-graduação em
Administração do Centro Universitário Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros (FEI). E-mail:
limabandeira.mariana@gmail.com. ORCID: 0000-0003-2277-9847
Maria Tereza Saraiva de Souza
Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação do
Centro Universitário Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia
de Medeiros (FEI). Doutora em Administração de Empresas pela Escola de
Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV).
E-mail: mtereza@fei.edu.br. E-mail: mtereza@fei.edu.br. ORCID:
0000-0003-4514-2021
Resumo:
Este artigo objetiva identificar as associações entre as condições sociais de
vulnerabilidade e o perfil racial da escravidão contemporânea. Ele é fruto de um recorte de uma pesquisa
qualitativa desenvolvida entre 2011 e 2016 sobre os mecanismos institucionais e
organizacionais responsáveis pelo sustento da escravidão contemporânea no
Brasil, fundamentado na estrutura teórica de Crane
(2013), Bales (2004) e Datta e Bales (2013; 2014). Do
ponto de vista metodológico, este estudo faz uso dos indicadores
socioeconômicos, geográficos, socioculturais e de vulnerabilidade social
produzidos principalmente pelos relatórios publicados pelos membros do
Instituto do Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo – InPacto e do poder público. A contribuição do artigo diz
respeito à a incorporação da variável preditora raça e cor, indicando sua
relação com a escravidão moderna, além de o trabalho escravo contemporâneo coexistir
com as cadeias produtivas economicamente representativas no Brasil, sendo
algumas delas, inclusive, membros do InPacto.
Palavras-chave:
Escravidão contemporânea, vulnerabilidade, raça,
cor.
Abstract: The aim of this article was
to identify the associations between the social conditions of vulnerability and
the racial profile of modern slavery. It presents findings from a qualitative
research developed between 2011 and 2016 on the institutional and
organizational mechanisms responsible for the maintenance of modern slavery in
Brazil, based on the theoretical framework of Crane (2013), Bales (2004) and
Datta and Bales (2013, 2014). From a methodological point of view, this study
makes use of socioeconomic, geographic, sociocultural and social vulnerability
indicators produced mainly by the reports published by members of the Institute
of the National Pact for Eradicating Slave Labor (InPACTO)
and the public sector. The article’s contribution centers on the incorporation
of the variable race and color, indicating its relation to modern slavery, in
addition to showing how contemporary slave labor coexists with the economically
representative productive chains in Brazil, some of which are members of InPACTO.
Key words: Contemporary slavery,
vulnerability, race, skin color.
1. INTRODUÇÃO
A escravidão contemporânea existe e atinge
a aproximadamente 160.600 trabalhadores por ano no Brasil e 45,8 milhões no
mundo, manifestando-se por relações degradantes e insustentáveis de trabalho em
que estão presentes elementos como a falta de liberdade, a jornada exaustiva e
a violência física, moral e psicológica que anulam os direitos fundamentais dos
trabalhadores (REPÓRTER BRASIL, 2011; CAZETTA, 2007; CRANE, 2013; THE GLOBAL
SLAVERY INDEX, 2014; DATTA e BALES, 2015).
A escravidão moderna[1] é um fenômeno global
presente em vários países. O fenômeno pode estar relacionado à exploração
econômica ou sexual, pode ser resultado da baixa escolaridade e da explosão
populacional no mundo, se correlacionando ao reduzido custo da mão de obra. Intencionalmente,
transforma seres humanos em peças verdadeiramente descartáveis, chamados assim
pelo fato de uma grande quantidade de trabalhadores serem facilmente
substituídos (BALES, 2002; BALES, 2011[2]; DATTA e BALES, 2017;
CRANE, 2013; OIT, 2004). Em princípio, o fenômeno do trabalho escravo moderno
costuma ser considerado um problema periférico para boa parte dos envolvidos, mesmo
que governos e organizações não governamentais (ONGs) estejam engajados no
combate dessa problemática (BALES, 2004). Outro dilema do trabalho escravo
contemporâneo refere-se ao baixo volume das discussões reconhecidas no contexto
das ciências sociais, haja vista sua publicação incipiente e se constata que o
tema praticamente não aparece no campo dos estudos organizacionais (BALES,
2004; BALES, 2011[3];
COOKE, 2002; CRANE, 2013; BALES, TRODD e
WILLIAMSON, 2009).
Para Crane (2013) e Bales (2004; 2001),
condições de vulnerabilidade, socioeconômicas, socioculturais, geográficas e a
ineficiência do Estado formam uma inércia estrutural, pois são utilizadas por redes
de trabalho informais e criminosas para sustentar práticas escravistas nos dias
atuais, por meio dos chamados “mecanismos ocultos”. Bourdieu
(1989, p. 8) pode fornecer elementos para entender a “invisibilidade” desses “mecanismos
ocultos”, quando atribui sua efetividade à cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Bourdieu (1989) se refere
ao poder simbólico, indicando que é uma forma de estabelecer uma ordem lógica
que de alguma forma regula uma realidade social. No contexto deste artigo, o
campo que Bourdieu (1989) define é entendido como o espaço social compartilhado
pelos diferentes atores da escravidão contemporânea, que possui uma estrutura
própria (habitus),
e é relativamente autônomo em relação aos outros espaços sociais e com
objetivos específicos que garantem uma lógica particular de funcionamento e de
estruturação. Bourdieu (1989, p. 10) também afirma que “os instrumentos
estruturados e estruturantes” do sistema simbólico atuam como meios de
comunicação e produtores de conhecimento, mas também cumprem “função política
de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar o domínio de uma
classe sobre a outra (Violência Simbólica)”. Por ora, é mister enfatizar que
não se trata de fazer uma análise das relações de força do campo de poder da
escravidão contemporânea, mas estabelecer uma relação entre as variáveis do
fenômeno com o perfil racial, a partir da identificação dos elementos da
estrutura do campo.
Este artigo se
apresenta como um recorte de uma pesquisa desenvolvida entre 2011 e 2016 sobre
os mecanismos institucionais e organizacionais responsáveis pelo sustento da
escravidão contemporânea no Brasil. O objetivo do artigo é
identificar as associações entre as condições sociais de vulnerabilidade e o
perfil racial da escravidão contemporânea. Os
dados oficiais não contemplavam a questão racial como um dos elementos que
favorece a escravidão contemporânea até há pouco tempo no Brasil.
Do ponto de vista metodológico, este
estudo faz uso dos indicadores socioeconômicos, geográficos, socioculturais e de
vulnerabilidade social produzidos principalmente pelos relatórios publicados
pelos membros do Instituto do Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho
Escravo – InPacto[4] e do poder público.
Apresentam-se também resultados da observação dos eventos promovidos pelo InPacto e entrevistas semiestruturadas realizadas durante
os anos de 2011 a 2016. O objeto do estudo foi o InPacto
em si, que estabelece regras comerciais entre os signatários associados que se
responsabilizam voluntariamente a cumprirem os acordos e cláusulas contratuais
junto a seus fornecedores ao longo da cadeia produtiva.
O texto se estrutura em seis seções, além
dessa introdução. A segunda se dedica a uma síntese da escravidão
contemporânea, descrevendo suas características principais e antecedentes
conceituais. Nessa descrição são apresentados os principais estudos realizados
sobre o tema, bem como um conjunto de dados e suposições que tem o objetivo de
mostrar a configuração da escravidão contemporânea no Brasil. A terceira seção descreve
o percurso metodológico da pesquisa, indicando as fontes de dados e a forma
utilizada para sua análise. A quarta seção apresenta e discute os resultados da
pesquisa, evidenciando a relação entre as variáveis preditoras da escravidão contemporânea
e os principais dados sociodemográficos. A quinta seção levanta proposições que
organizam os dados em torno aos argumentos teóricos construídos. A última seção
traça algumas reflexões finais sobre a problemática apresentada, indicando os
desafios e propostas para futuras pesquisas.
2.
ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA – CONCEITOS E CONFIGURAÇÃO
A partir da década de 1990, Bales (2004)
inicia o seu estudo sobre a configuração da ‘nova escravidão’ em cinco países,
usando como metodologia o estudo de múltiplos casos: Brasil, Mauritânia, Índia,
Tailândia e Paquistão. Kevin Bales é considerado um dos autores de referência
sobre o tema no mundo (OIT, 2009). Sua pesquisa foi fundamentada nas Convenções
da Organização Internacional do Trabalho – OIT 29 e 105, com objetivo de
discutir possíveis regulamentações por meio de leis nos diversos países
envolvidos com o problema. Foram entrevistadas diversas vítimas, recrutadores
de escravos, donos de empreendimentos, ONGs, governos e
comunidades locais. Os pesquisadores ocultavam o objetivo da pesquisa
para alguns entrevistados, uma vez que o tema trabalho escravo não podia ser
debatido abertamente por parte das empresas, dos pequenos empreendimentos e dos
recrutadores.
Os padrões encontrados no Brasil, na
Mauritânia, na Índia, na Tailândia e no Paquistão foram marcantes para
identificar três fatores-chave da nova escravidão: o exacerbado aumento
populacional; a globalização e modernização da agricultura mundial; e a facilidade
da quebra das regras sociais.
O primeiro fator, o exacerbado aumento da
população mundial, fica evidente quando constatamos que nos últimos 50 anos
houve uma explosão populacional, de 2 bilhões de pessoas para 7 bilhões de
pessoas. Este fato impulsionou a redução do valor da mão de obra no mercado
mundial, orientado à geração de valor e otimização de custos em cadeias
produtivas, principalmente nas atividades de extração da matéria prima (BALLOU,
2007; BALES; ROBBINS, 2001; GOLD, TRAUTRIMS; TRODD, 2015; SAKAMOTO, 2008). O
segundo fator-chave, a globalização e a modernização da agricultura mundial, acabou
por pressionar os pequenos agricultores, sem recursos de capital, a buscar
meios de sobrevivência (MARTINS, 2008; LUXEMBERGO, 1984). Camponeses e pequenos
produtores adaptaram tarefas e rotinas para atender demandas de grandes
produtores rurais e, em situações em que não havia condições de se sustentar, pôde
associar a uma forte tendência de migração para as cidades (MARTINS, 2008;
LUXEMBERGO, 1984; BALES, 2004)[5].
Finalmente, o terceiro fator-chave se fundamenta na quebra de regras sociais e
relações tradicionais de trabalho legal devido à ganância, corrupção e
violência, principalmente em países em desenvolvimento (BALES, 2004).
Mais tarde, Datta
e Bales (2013) estimaram a incidência do trabalho escravo por meio dos
resultados de um survey
e de dados secundários da pesquisa pioneira de Pennington
et al. (2009). Foram usados dados como: populações nacionais, o tamanho médio
da família, a estimativa do número de famílias no país, e o número de famílias
de relatórios de seres humanos traficados e escravizados. O tráfico de pessoas
foi utilizado por ser a primeira etapa antes de uma condição de escravo moderno
(CRANE, 2013). Para Datta e Bales (2013), a partir do
número estimado de vítimas de tráfico/pessoas escravizadas por país, pode-se
calcular a proporção de vítimas escravizadas. De acordo com a Global Slavery Index (2013), o número de trabalhadores em
condições análogas à de escravo no Brasil foi de 209.622 em 2015. No mundo, a
escravidão moderna chega à marca de 45,8 milhões de pessoas, tanto para fins
sexuais, quanto para fins econômicos.
As condições de aumento populacional,
globalização e modernização da agricultura, associadas à oportunidade de
explorar trabalhadores, resultou no que se denominou como ‘mecanismo oculto’
(BALES, 2004; CRANE, 2013; AGUINIS e GLAVAS, 2012)[6].
Mecanismos ocultos são resultados de articulações institucionais e
organizacionais que mantém e sustentam a escravidão (BALES, 2004; CRANE, 2013).
Nessa mesma linha de argumentação, Linstead, Maréchal e Griffin (2014) haviam chamado de ‘conformidade
disfuncional’ a uma prática comumente encontrada de gestão, cuja lógica é
buscar sempre a mão de obra mais barata, reduzir ao mínimo os recursos para
diminuir o custo de sua produção unitária.
Apenas em 2013, Andrew Crane
apresenta o modelo teórico de escravidão contemporânea como prática de gestão.
A estrutura teórica desse modelo foi elaborada com os seguintes elementos: tráfico
de pessoas, economia do crime, empreendimentos informais e crime organizado
(BECKER, 1968; DICK, 1995; UNITED NATIONS, 2001, WEBB et al., 2009; SALT e
STEIN, 1997; BALES, 2004). Crane (2013) dividiu o
modelo em três partes: condições para ocorrer a escravidão, capacidades das
organizações de explorar essas condições e, por último, a sustentação e
adequação de redes criminosas que mantém e se auto protegem de punições das
práticas criminosas frente às múltiplas pressões externas. O autor questiona sobre
as condições da escravidão em um contexto industrial, socioeconômico,
geográfico, cultural e regulatório. Crane (2013)
discute sobre a capacidade dos empreendimentos de explorar as condições e, ao
mesmo tempo, de anular as visões críticas das vítimas da escravidão moderna. Elas
geralmente não reconhecem que estão sendo submetidas a práticas escravistas. Por
fim, o autor fala da reprodução dessas práticas e da adequação das respostas de
redes criminosas às pressões institucionais. Esta dinâmica é muito semelhante
ao que Bourdieu (1990) identifica como mecanismos que
ocultam a dominação e a tornam aceitável e até mesmo desejável inclusive para
suas maiores vítimas.
Crane
(2013) revela que empresas multinacionais e empreendimentos de pequeno porte
exploram nichos institucionais ao mesmo tempo que desenvolvem capacidades de
isolar, sustentar e moldar rotinas e tarefas escravistas para alcançar
vantagens competitivas. Com isso, ocupam uma dupla posição no campo: legítima e
ilegítima simultaneamente, já que precisam de um posicionamento cuidadoso para
tirar proveito dos espaços institucionais e que podem ser estrategicamente
explorados para sustentar práticas ilegítimas (LINDSAY, 2010; CRANE, 2013).
Crane
(2013) afirma que certas características e contextos institucionais e
organizacionais podem contribuir para o êxito dessas práticas organizacionais
informais ou ilegais. Ocorre que o ambiente institucional nem sempre consegue
atingir a forma ideal para garantir o cumprimento das
regras e normas de conduta. Neste caso, há uma adequação insuficiente às
normas, há uma deformidade institucional, uma vez que a institucionalidade da
norma não é eficiente e, portanto, não cumpre sua função (DIMAGGIO; POWELL,
1983; SCOTT, 1995).
Com base no levantamento bibliográfico
realizado nesta pesquisa, consideramos que a premissa básica da escravidão
moderna não está relacionada apenas à condição social psicológica, mas,
principalmente à relação do poder econômico-político (BALES; ROBBINS, 2001; BALES, 2004; DATTA e BALES, 2014; GOLD, TRAUTRAMS
e TRODD, 2015; CRANE, 2013). Esta talvez consiste em um dos repertórios de
significados que foram reelaborados em função do contexto contemporâneo e
capitalista, em um cenário globalizado e competitivo em diversas cadeias
produtitvas (GOLD, TRAUTRAMS e TRODD, 2015). Nesse sentido, o conjunto de
variáveis que constituem o panorama econômico-político da escravidão moderna, a
que chamaremos de variáveis preditoras, foi usado na análise dos dados, como
mostra o Quadro 1.
Quadro 1 – Proposições
e Variáveis Preditoras da Escravidão Moderna
Autores
(Ano) |
Categoria
de análise |
Proposição |
Variáveis
preditoras da escravidão moderna |
Bales (2004) Datta e Bales (2013; 2014) Crane (2013) Bourdieu (1989,
1990) |
Contexto
socioeconômico |
A exploração
do trabalho escravo ocorre em contextos de alto desemprego, pobreza crônica e
baixa escolaridade; o que incentivará a adoção do trabalho escravo pelos
empreendimentos. |
Densidade
populacional, IDHM e Vulnerabilidade |
Contexto
geográfico |
O isolamento
geográfico do negócio, somado ao isolamento psicológico, político e físico
dos trabalhadores, incentivará a adoção do trabalho escravo pelos
empreendimentos. |
Isolamento
geográfico e Tráfico de pessoas |
|
Contexto
sociodemográfico |
A desigualdade
naturaliza relações de trabalho coercitivas, o que incentivará a adoção do
trabalho escravo pelos empreendimentos. |
Raça e
cor |
|
Contexto
regulatório |
A
inexistência de um contexto regulatório eficiente que imponha sanções à
exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão incentivará a
adoção do trabalho escravo pelos empreendimentos. |
Fiscalizações
e Corrupção |
Fonte: Elaboração
dos Autores
As variáveis preditoras
são assim chamadas neste artigo por contribuirem para explicar a probabilidade
da escravidão ocorrer. Fundamentamos as proposições que articulam essas
variáveis como preditoras com base nos estudos seminais de Pennington et al.
(2009), que mediram o número de escravos modernos na Europa a partir dos dados
do número do tráfico de pessoas e com base na pesquisa de Datta e Bales (2013; 2014).
O isolamento geográfico e falta de contato com a família foram fatores
psicológicos relevantes para o estudo, além da necessidade de emprego e de
renda. Da mesma forma estão: o desemprego, a pobreza, a educação e a
consciência limitada das vítimas escravizadas (CRANE, 2013; FIGUEIRA, 2008).
Estudos de Bales (2004) no Brasil, na
Mauritânia, na Índia, na Tailândia e no Paquistão indicaram a relação da
pobreza, do IDH, da vulnerabilidade, da corrupção e do isolamento de pessoas
escravizadas. Mais tarde, Datta e Bales (2013; 2014) utilizam critérios da
pesquisa de Pennington et al. (2009) para aplicar uma regressão múltipla e
sustentar que pobreza, insatisfação social, corrupção, densidade populacional e
percepção de oportunidade ou falta dessa percepção, podem ser consideradas
indutoras da escravidão moderna. Datta e Bales (2014) apresentaram o modelo
significante para o risco de estabilidade do estado, a liberdade de expressão,
o acesso a serviços financeiros, a geografia e a idade. As variáveis preditivas
indicaram um resultado significante para a variação transnacional da escravidão
em toda a Europa (DATTA e BALES 2014).
2.1 O conceito do
trabalho escravo no Brasil
O conceito de trabalho escravo contemporâneo
no Brasil avançou pelo combate às práticas escravistas depois da modificação da
Lei 10803/2003, por meio do Artigo 149 no Código Penal brasileiro. O Artigo 149
tipifica como crime a prática de reduzir alguém “à condição análoga à de
escravo” apresentando quatro capacidades que, em conjunto ou isoladas,
caracterizam o crime: a) de submeter o trabalhador a trabalho forçado; b)
jornada exaustiva; c) a condições degradantes de trabalho; d) de restringir sua
locomoção (MTE, 2016; 2009; 2012). O termo “análogo” é empregado na Lei devido ao
fato de o Estado Brasileiro não reconhecer um ser humano como um ente “escravo”
no contexto atual.
O parágrafo primeiro do Artigo 149 ainda detalha
que o trabalho escravo se caracteriza também por: cercear o uso de qualquer
meio de transporte por parte do trabalhador, ou manter vigilância ostensiva no
local de trabalho ou apoderar-se dos documentos e/ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. A pena do crime é a
reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência
aplicada. Pode inclusive ocorrer o aumento da pena, caso o crime for cometido
contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, de cor, de
etnia, de religião ou de origem.
Há diferenças conceituais sobre a
escravidão moderna no Brasil e no restante do mundo tanto no termo utilizado
para defini-la, quanto nos elementos contidos nos termos, ou seja, suas
características. A forma como se delimita o conceito vai influenciar
diretamente seu processo e dinâmica regulatória. O quadro a seguir mostra as
diferenças de como se trata o tema no marco normativo:
Quadro 2 -
Comparativo da escravidão contemporânea do Brasil e OIT.
Brasil |
OIT |
Termo |
|
Trabalho análogo à de escravo |
Trabalho forçado ou obrigatório |
Aspecto Normativo |
|
Artigo
149, 197, 203 e 207 |
Convenção
n. 29 – 1930 e n. 105 – 1957 |
Elementos da escravidão |
|
Falta
de liberdade, jornada exaustiva e condições degradantes |
Coerção,
castigo, punição, ameaça, imposição do trabalho |
Argumento de deslegitimação do conceito brasileiro Interpretação
abusiva na tipificação de condições degradantes de trabalho |
Fonte: OIT, 2009; MELO, 2007. “Adaptado de” OIT
(2009; 2014).
Os elementos como falta de liberdade,
jornada exaustiva e condições degradantes contribuem para o combate ao trabalho
escravo no Brasil. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ realizou em fevereiro
de 2017, a premiação da juíza Jaiza Maria Pinto Fraxe da 3ª Vara Federal de Manaus-AM pela atuação com foco
no combate ao trabalho escravo, como forma de estimular outros juízes para o
zelo da interpretação aos direitos humanos por meio da função social do
trabalho (CNJ, 2017)[7].
Mesmo assim, ainda falta um longo caminho.
A edição do artigo 149 do Código Penal Brasileiro sobre o trabalho escravo, em
2003, apresenta um texto com certa elasticidade conceitual. Parlamentares,
políticos e alguns setores empresariais alegam não ser possível referir-se à escravidão,
porque a propriedade legal de outrem não é permitida (CAZETTA, 2007; MTE, MPT
2015). Baseados nesse argumento, Auditores e Procuradores do MTE e do MPT (MTE 2011;
2009) afirmam que o termo “trabalho escravo” refere-se ao “trabalho em
condições análogas à escravidão”. A expressão trabalho escravo remete o
intérprete à possibilidade de associar o termo “escravidão” à forma colonial.
Essa elasticidade do conceito gera
reclamações junto ao governo brasileiro e às ONGs. Existem debates sobre o tema
afirmando que o Brasil se afastou do conceito internacional que a OIT adota.
Para a OIT (2004, p. 11), “toda forma de trabalho escravo é trabalho
degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um
conceito do outro é a liberdade”. De fato, a Convenção n. 29 da OIT estabelece
a ilegalidade do trabalho forçado, definido como “todo trabalho exigido de uma
pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido
espontaneamente” (OIT, 2004, p. 27). Contudo, a fronteira entre exploração
coerciva e não coerciva é sutil. A própria OIT (2004) chama atenção ao ato
involuntário do trabalhador que se vê frente à necessidade de se empregar. Por
exemplo, a consciência involuntária pode estar associada a falta de
oportunidades de emprego junto com uma situação extrema de pobreza e um baixo
grau de instrução. Portanto, não há outra alternativa a não ser aceitar
péssimas condições de trabalho.
Para Bales, Trodd
e Williamson (2009) seria ideal contar com uma definição de escravidão moderna
que englobasse todos seus elementos. Esta poderia ser uma solução ideal para as
tentativas de deslegitimação de organizações empresariais contra as
fiscalizações em cadeias produtivas. Enquanto isso, essas brechas permitem que
outras normas ou leis possam ser utilizadas para redefinir práticas escravistas
como aceitáveis e menos comprometedoras, o que de alguma forma contribui também
para invisibilizar o fenômeno.
3.
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
Por meio de uma abordagem qualitativa, a pesquisa triangulou e analisou dados
primários e secundários de 2011 até 2016. Optou-se por utilizar os depoimentos
dos casos reais de trabalhadores em condição análoga a de escravos na base de
dados de MTE. Cada caso real foi transcrito, pois retratava a trajetória desde
o recrutamento até as práticas expressas no Artigo 149 do CP brasileiro. Além
dos casos reais dos trabalhadores, esta pesquisa levantou dados secundários e
bibliografia sobre o tema. Houve a participação em três seminários sobre o
tema, em São Paulo e em Brasília, totalizando 26 palestras registradas, além de
12 entrevistas com acadêmicos, profissionais de ONGs, funcionários públicos e
representantes de empresas. Todas as entrevistas, as palestras e os seminários
foram gravados e transcritos, utilizando o software NVivo
para gerenciar os dados. Foram reunidos dados primários, como o diário de
observações, entrevistas semiestruturadas, registros em foto e vídeo, e dados
secundários como diversos documentos e relatórios dos membros que coordenam o InPacto.
O InPacto foi
escolhido como objeto de pesquisa devido as ações de combate ao trabalho
escravo reconhecidos internacionalmente e as articulações entre os signatários
(OIT, 2009; INPACTO, 2015). Há cerca de 380 empresas e instituições signatárias
do InPacto e juntas, os signatários representam mais
de 22% de toda riqueza empresarial produtiva em território brasileiro (REPÓRTER
BRASIL, 2011; OIT, 2004). Os membros do InPacto vão
desde as instituições da sociedade civil, as ONGs, e, principalmente, as
empresas dos setores como agricultura, pecuária e têxtil, além de bancos
privados e um escritório de advocacia. No âmbito do InPacto
são discutidos temas acerca das medidas institucionais,
algumas sob o discurso de responsabilidade social com objetivo de evitar e
erradicar o trabalho escravo em cadeias produtivas.
Em 2004, a Secretaria Especial de Direitos
Humanos - SEDH solicitou à OIT Brasil que financiasse um estudo de cadeias
produtivas para identificar setores econômicos afetados pelo trabalho escravo.
A OIT, o Instituto Ethos, a Organização não governamental – ONG Repórter Brasil
e o Instituto Observatório Social – IOS revelaram por meio desse estudo, uma
rede de empresas nacionais e multinacionais que reduziam trabalhadores à
condição análoga a de um escravo. Em outras palavras, o resultado revelou uma
rede de 200 empresas nacionais e internacionais que comercializavam produtos e
serviços oriundos de empregadores escravistas (INPACTO, 2015). Com essa
informação em mãos, a OIT apoiou o Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social na condução de reuniões com as empresas identificadas
no estudo. O diálogo levou ao lançamento do Pacto Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo, no dia 19 maio de 2005 (INPACTO, 2015). O Pacto tornou
público o compromisso do setor empresarial em combater o problema, por meio da
adoção de medidas envolvendo a restrição comercial de fornecedores que
utilizaram mão de obra escrava. Em 2014, com o avanço institucional do pacto,
há a criação do InPacto – Instituto do Pacto para
Erradicação do Trabalho Escravo. O Instituto tem como objetivo fortalecer e
ampliar as ações realizadas pelo Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho
Escravo, criado em 2005. Implementa-se uma governança compartilhada por 380
signatários coordenados pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, o
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, o Instituto Observatório
Social – IOS e a ONG Repórter Brasil, com a colaboração e apoio financeiro das
empresas Cargill, Carrefour, C&A, Eletrobrás Eletronorte, Grupo André Maggi
e Wal-Mart Brasil. O modelo de gestão do InPacto
reúne interesses de empresas, organizações da sociedade civil e organizações
representativas dos trabalhadores com foco em promover ações de
responsabilidade social (INPACTO, 2015).
O software NVivo
auxiliou na seleção e contagem dos trechos diante de cada categoria teórica e
na construção da matriz de correlação para examinar a consistência das
respostas entre pares com objetivo de verificar a saturação dos respondentes
As
categorias teóricas são o conjunto de variáveis preditoras apresentado no
referencial teórico deste artigo: o contexto socioeconômico, contexto
geográfico, contexto sociodemográficos e contexto regulatório. Considerando esse antecedente, no
levantamento realizado pela pesquisa se incluem como subcategorias dos
contextos: a) socioeconômicos - densidade populacional, Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) e vulnerabilidade; b) geográfico - isolamento geográfico e tráfico de pessoas; c)
sociodemográficos: raça ou cor; e d) regulatório: a corrupção e fiscalização.
No entanto, dados sobre raça e cor transitam entre as dimensões
socioeconomicas e sociodemográficas.
Ao longo do levantamento e análise dos
dados, optou-se por entender a relação dos padrões raciais, sociais e culturais
com as vítimas do trabalho análogo a de escravo moderno no Brasil. Dessa forma,
nas subcategorias teóricas os dados relacionados a raça e cor foram explorados
com maior profundidade. Em termos de procedimentos de pesquisa adotou-se
abordagem multicêntrica face ao número de atores diante do enfrentamento do
problema e o fato destes atores articularem certas ações por meio de rede
(SECCHI, 2010). Nesse sentido, os atores institucionais identificados neste
estudo, que se encontram ligados em torno dessa problemática são: (i) o poder
público; (ii) a sociedade civil organizada; (iii) a iniciativa privada.
4.
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Esta seção apresenta uma sistematização
dos principais dados sociodemográficos da escravidão moderna no Brasil,
partindo de um suposto que funcionam como variáveis preditoras desse fenômeno (BALES,
2004; DATTA e BALES, 2013; 2014; CRANE, 2013). Sendo assim, ante a existência
dessas variáveis preditoras atuando concomitantemente como um conjunto
normativo simbólico (habitus),
o ciclo da escravidão moderna não pode ser modificado. A noção de habitus pode ser
entendida a partir dos escritos de Bourdieu (1989, 1990), quando define um campo
social. Para o autor, os espaços sociais só podem ser entendidos a partir da
relação dual de interiorização da exterioridade e de exteriorização da
interioridade. O primeiro elemento – interiorização da exterioridade - remete à
noção de habitus,
em que os indivíduos, na produção e reprodução cotidiana de suas práticas,
incorporam regras, símbolos, conceitos da realidade social a que pertencem e que
o constituem. Nessa dinâmica, a estrutura de relações sociais e suas condutas
se articulam num processo de mistura das dimensões subjetiva e objetiva. Num
segundo momento, essas mesmas práticas são resultado da evolução histórica do
grupo e orientam a prática social – exteriorização da interioridade. Uma vez
incorporados os esquemas de pensamento, percepção e ação, é possível assegurar
conformidade às práticas e regras, controle e padrão em função de experiências
passadas. Há um componente inconsciente e cognitivo, mas não fica restrito a
esse eixo, assumindo uma pluralidade de significações.
Considerando esses conceitos, no âmbito da
escravidão contemporânea o habitus se manifesta também pela inércia estrutural
utilizada para benefícios de “gatos”, os recrutadores de trabalhadores que
prometem emprego e renda e não cumprem (MTE, 2016; OIT, 2009, INPACTO, 2015). Cabe
lembrar Bourdieu (1990) que define que os campos possuem leis gerais de
funcionamento, a saber: todos os campos possuem suas regras, cada ator ocupa
uma posição consolidada e possui interesses específicos de acordo com essa
posição e, nesse sentido, organizam um jogo que possui traços políticos por
essência.
Bales (2004, 2006) e Crane
(2013) associam a escravidão moderna ao poder econômico-político, sob a forma de mecanismos ocultos. A Tabela 1 evidencia essa relação da
escravidão contemporânea no Brasil, por meio da análise de dados dos estados
brasileiros de maior incidência dos trabalhadores libertados de 1995 a 2015.
Esses dados foram avaliados junto com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) e o número/percentual de trabalhadores de
cada estado que declarou sua raça ou cor - branca negra, parda, indígena e
amarela. O IDHM mede: a educação - alfabetização e taxa
de matrícula; a longevidade e a expectativa de vida ao nascer; e a renda per capita em relação ao PIB. O uso do IDHM
busca dar maior precisão e força aos dados localizados de cada estado. O IDHM é
considerado elevado a partir de 0,700 e baixo entre a faixa de 0,500 a 0,599.
Tabela
1 – Operações do GEFM do MTE, IDHM e Dados de Raça ou Cor
Estados |
IDHM Geral |
IDHM Renda |
IDHM Educação |
Percentual e Número de
indivíduos por raça ou cor |
Nº de opera-ções |
Trabalhado-res libertados 1999 a 2015 |
||||
Branco |
Negro |
Pardo |
Índio |
Amarelo |
||||||
Média Brasil |
0,727 |
0,739 |
0,637 |
45% |
9% |
45% |
0,0001% |
0,01% |
1798 |
50660 |
MA |
0.639 |
0.612 |
0.562 |
1064371 |
241966 |
3862395 |
2394 |
7187 |
145 |
3227 |
PA |
0.646 |
0.646 |
0.528 |
1558645 |
616683 |
5915825 |
87548 |
14269 |
399 |
12523 |
BA |
0.660 |
0.663 |
0.555 |
3004647 |
3043122 |
9059812 |
91482 |
21272 |
82 |
3105 |
AC |
0.663 |
0.671 |
0.559 |
172219 |
62190 |
537108 |
32938 |
1927 |
24 |
196 |
PE |
0.673 |
0.673 |
0.574 |
3044387 |
766157 |
5488300 |
39138 |
21512 |
22 |
726 |
AM |
0.674 |
0.677 |
0.561 |
785697 |
165994 |
2896635 |
96326 |
7808 |
29 |
439 |
CE |
0.682 |
0.651 |
0.615 |
2530016 |
364692 |
5979370 |
29576 |
19870 |
19 |
535 |
RO |
0.690 |
0.712 |
0.577 |
557390 |
143189 |
1061556 |
7293 |
3513 |
49 |
896 |
TO |
0.699 |
0.690 |
0.624 |
353312 |
142596 |
1018409 |
761 |
4307 |
120 |
2938 |
MT |
0.725 |
0.732 |
0.635 |
1086843 |
269300 |
1898680 |
7882 |
11384 |
232 |
5533 |
MS |
0.729 |
0.740 |
0.629 |
1203191 |
135645 |
1286687 |
12371 |
21208 |
70 |
2578 |
MG |
0.731 |
0.730 |
0.638 |
8825684 |
2217569 |
9787525 |
47955 |
21157 |
173 |
4558 |
GO |
0.735 |
0.742 |
0.646 |
2593851 |
518128 |
3470649 |
8589 |
39334 |
132 |
3790 |
RS |
0.746 |
0.769 |
0.642 |
9021918 |
626170 |
1553608 |
48850 |
14142 |
23 |
302 |
PR |
0.749 |
0.757 |
0.668 |
7613046 |
380200 |
3049544 |
15361 |
128361 |
73 |
1123 |
RJ |
0.761 |
0.782 |
0.675 |
7541131 |
2525723 |
6435387 |
28020 |
47488 |
39 |
1143 |
SC |
0.774 |
0.773 |
0.697 |
5830697 |
139727 |
845523 |
10750 |
12181 |
64 |
856 |
SP |
0.783 |
0.789 |
0.719 |
27399505 |
3122843 |
13329148 |
103058 |
540755 |
83 |
1529 |
PI |
0,646 |
0,635 |
0,547 |
692896 |
329844 |
2180547 |
3378 |
- |
41 |
863 |
AL |
0,631 |
0,641 |
0,520 |
901696 |
296366 |
2131168 |
9439 |
6292 |
8 |
799 |
Fonte:
Autor, elaborado com base em MTE (2016a) e Atlas do Desenvolvimento Humano
(2016)
Três
questionamentos emergem a partir dos dados apresentados. O primeiro diz
respeito à declaração de raça e cor de cada estado com relação ao número de resgatados
nas operações realizadas pelo MTE. No Pará, cerca de 80% da população não se
declara branca, e este estado apresentou o maior número de trabalhadores libertados
entre 1999 e 2015 (12.523). Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás, Maranhão, Bahia,
Tocantins e Mato Grosso do Sul também têm a maioria da população que não se
declara branca. Dados indicam uma relação entre essa variável e a prática da
escravidão moderna.
Em
segundo lugar, corroborando os dados de Bales (2004, 2002),
parece haver uma afinidade entre baixos índices de IDHM Geral, IDHM Renda e
IDHM Educação (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2016) com o número de
trabalhadores libertados de 1999 a 2015 (MPT, 2017). Isso porque os dados
mostram uma relação coerente com os resultados do número de trabalhadores
libertados. Os estados com menor IDHM Geral, de Renda e de Educação - Maranhão,
Pará, Bahia, Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO
HUMANO, 2016) - são os mesmos onde há um número elevado de resgates (MPT,
2017).
O
terceiro questionamento diz respeito a uma situação inversa observada na
literatura (BALES, 2004). Os estados de Minas Gerais, Goiás, Paraná, Rio de
Janeiro e São Paulo apresentam os maiores níveis de IDHM Geral e IDHM Renda do
país, mas o número de trabalhadores libertados pelo GEFM do MTE foi alto. Os altos
índices de IDHM, representando condições socioeconômicas favoráveis, deveriam reduzir
a incidência de trabalhadores escravos, porém não foi o indicado pelos dados.
Apenas o IDHM Educação desses estados é que apresentam índices educacionais
abaixo da média nacional. Há três possíveis explicações para essa suposta
contradição: a primeira está em que a informação levantada do número de
resgatados não é completa, uma vez que o sistema de informação ainda não
conseguiu alcançar sua efetividade plena. Assim, poderia haver menos denúncia
nos estados com um sistema mais precário de informação, do que nos estados de
MG, GO, PR, RJ e SP. Outra explicação deve-se à dificuldade de fiscalizações em
comparação ao número de denúncias, o que reflete a inconsistência dos números
levantados sobre a mão de obra análoga à de escravo em regiões carentes de
infraestrutura, como é o caso do Norte e Nordeste brasileiro. Uma terceira
possibilidade de explicação poderia estar no índice de Gini,
que mostra as condições de desigualdade desses estados e conjuga na análise a
condição de vulnerabilidade a que os aliciados estão sujeitos. Enfim, supõe-se
aqui que a relação entre o IDHM e a escravidão moderna existe, sempre quando é
possível ter dados mais fidedignos. É preciso reconhecer que essa é uma relação
mais complexa do que parece e carece de estudos quantitativos e qualitativos
para explorar com maior rigor (DATTA e BALES, 2014; CRANE, 2013).
Quando
se observam dados sobre a naturalidade e o estado de residência dos
trabalhadores escravizados, essa configuração se confirma. A Figura 1 mostra,
da esquerda para a direita, os municípios de resgate, naturalidade e residência
dos resgatados.
Figura 1: intensidade de cores e medidas sobre
municípios de resgate, naturalidade e residência dos trabalhadores escravos
Fonte:
Observatório digital do trabalho escravo no Brasil
– smartlab de trabalho decente MPT (2017).
O mapa de calor exibido representa
dinamicamente, conforme suas cores, as medidas da intensidade da ocorrência do trabalho
análogo ao de escravo no Brasil (OBSERVATÓRIO
DIGITAL DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL – SMARTLAB DE TRABALHO DECENTE MPT, 2017).
A variação de cores frias para cores quentes mostra locais de maior intensidade
dos municípios de resgates, da naturalidade e das residências declaradas. Da esquerda para direita, a Figura 1
mostra a maior concentração dos resgates de trabalhadores nas regiões Norte,
seguido das regiões Nordeste e Centro Oeste. Há um volume menor nas regiões Sul
e Sudeste se comparado às regiões Norte e Centro Oeste. Já quanto à
naturalidade, as cores quentes têm maior prevalência em boa parte das regiões,
com menor intensidade no Sul, Sudeste e Centro Oeste. Quanto às residências
declaradas pelos trabalhadores resgatados pelo GEFM-MTE, a cor quente ocorre
mais na região Norte, seguida da região Nordeste, Centro Oeste, Sudeste e Sul.
Como a atividade de maior incidência do trabalho escravo é a pecuária e a
agricultura, parece que a região da franja amazônica é fértil no aliciamento e na
reincidência da prática. Com relação à vulnerabilidade,
ela se caracteriza pela distância entre a disponibilidade dos recursos
materiais comparada ao acesso à estrutura de oportunidades sociais (ABRAMOVAY,
2002; MOSER, 1998). Essa diferença pode resultar em desvantagens tanto para o
desempenho do trabalhador, quanto para o risco de sua mobilidade social[8] (VIGNOLI, 2001).
No caso da escravidão moderna, se observa
que a (in)mobilidade social passa a ser um resultado direto das condições
sociais de vulnerabilidade a que estão sujeitos os possíveis aliciados e,
consequentemente, poderia ser um preditor também da reincidência na dinâmica do
jogo da escravidão. O panorama sobre a vulnerabilidade é mostrado na Figura 2,
a partir de três gráficos feitos com dados do Atlas do Desenvolvimento Humano
(2016). O primeiro gráfico ilustra o IDHM Geral, o segundo
mostra as diferenças da expectativa de vida e o terceiro indica o índice
de Gini para cada estado.
Os estados
com o maior índice de vulnerabilidade são Maranhão, Alagoas, Piauí, Acre,
Paraíba, Pará, Tocantins, Ceará, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Esses
estados são os que possuem as piores condições de saúde, de acesso à educação,
mortalidade infantil e estrutura familiar (IDHM Geral), as menores expectativas
de vida ao nascer e elevados níveis de desigualdade social (ATLAS DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2016). É importante lembrar que o coeficiente de Gini marca as diferenças entre
as classes sociais, sendo que esses estados quase apresentam o mesmo valor. Os
maiores índices de vulnerabilidade também coincidem com os baixos índices de
desenvolvimento humano municipal mostrados na Tabela 1.
Figura 2: panorama da vulnerabilidade no Brasil nas
regiões com maior incidência de escravidão moderna
Fonte: Autores, adaptado de: Atlas do
Desenvolvimento Humano (2016)
Ainda com
relação ao contexto sociodemográfico, é importante evidenciar que a
vulnerabilidade também pode estar caracterizada por indicadores de raça e cor,
gênero e escolaridade. Essas características poderiam, a partir de construções
simbólicas culturais (BOURDIEU, 1990), ser referentes e constituir um conjunto
de crenças historicamente construídas que estabelecem um status consagrado nas relações de dependência e de trabalho. Os dados sobre os trabalhadores
libertados entre 2003 e 2017, não estavam disponíveis na base de dados anterior
que mostra as operações de 1999 a 2015. No entanto, a nova base de dados
confirma que o trabalho escravo no Brasil tem uma identidade definida de
raça/cor, conforme pode ser visto na Figura 3. Os dados também indicam 48% dos
indivíduos libertados da escravidão se declararam mulato, caboclo, cafuzo,
mameluco ou mestiço de preto com pessoa de outra cor ou raça; 13,62%
declarou-se preto. Apenas 32% declarou-se branco (MPT, 2017).Os dados demográficos do último Censo do IBGE de 2016
revelam que 54,9% dos brasileiros se declaram como pretos ou pardos, sendo
46,7% como pardos e 8,2% como pretos; e 44,2% se declaram brancos. Comparado
com último Censo de 2010, houve um aumento de indivíduos declarantes da cor
preta e da cor parda. A hipótese desse aumento pode estar associada a
fecundidade entre pessoas pretas e pardas ou o aumento do auto reconhecimento
dos indivíduos. Os indivíduos brancos regatados são apenas 32%, enquanto os
dados são piores para os pretos 14% de resgatados. Para pessoas de cor parda
temos 46,7% na população para 48% dos resgatados, uma equivalência maior do que
no caso dos pretos, contingente que representa 8,2% da população e 13,62% dos
resgatados.
No entanto, a nova base de dados
confirma que o trabalho escravo no Brasil tem uma identidade definida de
raça/cor, conforme pode ser visto na Figura 3.
Figura 3 - Perfil de trabalhadores resgatados do
trabalho escravo entre 2003 e 2017 por raça, gênero e grau de escolaridade.
Fonte:
Observatório digital do trabalho escravo no
brasil – smartlab de trabalho decente MPT (2017).
Quanto
ao grau de instrução dos trabalhadores libertados, 40,29% são analfabetos e 32,27%
possuem até o 5º ano do ensino fundamental incompleto. Os dados apontam uma
forte indicação da inércia estrutural reproduzindo indivíduos com pouquíssimos
anos de estudos. A soma de trabalhadores analfabetos com aqueles que possuem
até o 5º ano do ensino fundamental totaliza 72,56%, que representam 24.835
indivíduos libertados do trabalho escravo no Brasil entre 2003 e 2017. Neste
caso, a Figura 3 media a interação entre raça, cor, gênero e escolaridade, na
relação como variáveis preditoras do trabalho escravo. A soma de trabalhadores
analfabetos junto com o 5º ano do ensino fundamental é de 72,56%, que
representam 24.835 indivíduos libertados do trabalho escravo no Brasil entre
2003 e 2017. Quanto ao gênero, cerca de 94% são homens e 5,11% são mulheres. Esses
dados reunidos e combinados, com os índices apresentados anteriormente, mostram
que a prática no Brasil tem uma identidade do escravo definida a partir dessas
variáveis. É importante comentar que o gênero masculino se associa aos
trabalhos rurais e o gênero feminino se associa mais as atividades com fins
sexuais. Vale destacar, nesse panorama, que como “regra geral”, o escravo
apresenta um perfil de vulnerabilidade associado à sua condição socioeconômica
e, em consequência de um habitus
consagrado pelos campos, essa situação não se modifica enquanto não houver
mudanças nesse perfil. Nesse sentido, a caminhada tem sido lenta, apesar de
todos os esforços dos atores nesse campo. A questão da raça/cor não aparece
isolada, pois historicamente no Brasil se vincula essa variável à condição
sociocultural (MARTINS, 2008; FIGUEIRA, 2008).
Bourdieu (1990, p. 136) afirma que “a estrutura do campo é um estado da relação
de forças entre os agentes ou as instituições que intervêm na luta”. Na
configuração da escravidão moderna, essa estrutura se compõe também desse
perfil que se perpetua na sociedade brasileira como um elemento das
“estratégias” subjacentes à dinâmica do campo de poder. Um exemplo disso pode
ser o caso da manutenção do estado e da posição dos atores: a posição
consolidada do escravo.
Num
levantamento feito pela a OIT em 2011, em conjunto com GEFM do MTE, são
sistematizadas as entrevistas feitas com 121 trabalhares resgatados[9].
No resultado, subjaz a questão da (in)mobilidade social no comparativo de
escolaridade de trabalhadores libertados em relação à escolaridade de pai e mãe.
Apesar de 63% dos trabalhadores resgatados serem analfabetos ou analfabetos
funcionais, o percentual de seus progenitores nesta mesma situação era maior.
Parece que os dados indicam uma melhora no acesso à educação formal, indicados
na diminuição dos analfabetos e analfabetos funcionais para 18% e 45%
respectivamente. Porém, mesmo com uma melhora na escolaridade, não ocorreu a
mobilidade social para esses trabalhadores, mostrando que a escravidão
contemporânea pode estar sendo sustentada por essa estrutura social (FIGUEIRA, 2008). Em síntese, ao que tudo
indica, o trabalho escravo em sua forma moderna apresenta uma estrutura
caracterizada para aliciar preferencialmente indivíduos negros/pardos, com
baixo grau de escolaridade, convivendo em regiões e estados com baixos índices
de desenvolvimento na saúde, educação e na renda. O índice de vulnerabilidade
pode explicar a probabilidade maior de seres humanos vivendo a eminência de
serem alvos de aliciadores do trabalho degradante que escraviza.
O
estudo da OIT (2011) apresenta um dado importante que não tem sido considerado
nas bases de levantamento do MTE, que é a reincidência. O resultado mostra que
dos 121 entrevistados, 59% já foi vítima da escravidão antes. Isto corrobora a
reduzida mobilidade social de indivíduos com baixo grau de educação, renda, principalmente
para os declarados negros ou pardos.
Por
outro lado, as empresas ou as organizações que promovem as atividades também
constituem o campo e evidenciam um "capital específico que se acumulou
durante lutas anteriores", nas palavras de Bourdieu (1990 p. 136). O MTE e
MPT (2016, 2017) organizaram em um ranking
as atividades econômicas que mais reduzem trabalhadores à condição semelhante à
de escravos modernos. As atividades representadas como campeãs no ranking de utilização de trabalho
escravo rural são a criação de bovinos para corte, cultivo de arroz, fabricação
de álcool, cultivo de cana de açúcar, fabricação de açúcar em bruto e extração
de madeira em florestas nativas. Juntas, essas atividades respondem por 75% da
mão de obra explorada a condição de escravos modernos
As
propinas, as trocas de influências para beneficiar terceiros, as fraudes
cometidas, podem anteceder as práticas do trabalho escravo. Em entrevista, o
Auditor do GEFM do MTE (2011)[10]
de Campinas diz: [...] “durante a inspeção do alojamento constatou-se que os
trabalhadores foram aliciados em sua cidade de origem, que é lá no Piauí, eles
foram transportados em veículo coletivo de passageiro clandestino, por 220
reais cada”. O “gato”, aquele que realiza o recrutamento e alicia os
trabalhadores, organiza e contrata o transporte clandestino, geralmente evita
estradas federais e tenta “comprar” a fiscalização para evitar a apreensão do
veículo sem condições de segurança. No caso citado, não havia o documento
exigido pelo MTE para o transporte dos trabalhadores, chamado de certidão
declaratória de transporte de trabalhadores.
Dados
da ONG Transparency Internacional (2016) indicam que
o Brasil convive com uma percepção de corrupção alta, ocupando a posição 79 de
176 posições: dos pontos de 0 a 100, o país conquista apenas 40. De acordo com o Coordenador ONG Repórter Brasil, houve
tentativas de corromper os auditores do MTE – GEFM na obra da Camargo Correia
de Jirau em Rondônia.: “[...]mesmo que o auditor fiscal de Rondônia constate
que uma viga estiver na eminência de cair na cabeça dos cinco operários, ele
não consegue embargar a obra automaticamente. O auditor recebeu uma ligação do
gerente da Camargo Correa: “você já falou com a sua chefe que você vai embargar
aqui?” (relato do Coordenador ONG REPÓRTER BRASIL, 2013)[11].
Há
uma tentativa de impedir a autonomia do trabalho do GEFM do MTE por meio de uma
estrutura hierárquica, ligada a uma estrutura política, que tem conexões com
empresas, como a Camargo Correa e a Odebrecht. Justificou-se a tentativa de
impedimento do embargo de uma obra, devido ao atraso no cumprimento do
cronograma. O preço dessa interferência é o perigo de um acidente grave, que
pode tirar a vida de um trabalhador. Outra situação descrita: [...] “a gente ia
chamar o IBAMA para vir aqui, mas o IBAMA não dá para chamar aqui não, não é
bom, porque a operação vaza um dia antes” (COORDENADOR ONG REPÓRTER BRASIL,
2014)[12].
Nesse caso específico, havia uma estrutura que liga o IBAMA com a empresa alvo
de fiscalizações do MTE. A comunicação dessa estrutura é estabelecida antes da
fiscalização chegar à fazenda ou ao empreendimento. Essa estrutura pode ser
fruto de corrupção e tráfico de influência.
Assumir
a probabilidade da ocorrência da escravidão moderna com pobreza,
vulnerabilidade, raça/cor e baixíssimo grau de educação pode representar um ponto
de partida para aprofundamento da discussão. Os sistemas de gestão atuam como
promotores de uma dinâmica de escravidão moderna, a responsabilidade da iniciativa
privada, da sociedade civil e do poder público nesse contexto e a elaboração de
políticas públicas articuladas com a estrutura institucional.
5.
DISCUSSÃO DAS PROPOSIÇÕES TEÓRICAS
Os resultados qualitativos da pesquisa
combinados com o panorama apresentado e aprofundado no item anterior, nos
levaram a construir cinco proposições centrais que são discutidas aqui com o
apoio adicional de quatro casos reais coletados das bases de dados do
Ministério do Trabalho e Emprego – MTE em 2016. Essas proposições estão
fundamentadas nas categorias teóricas levantadas no estudo e apresentadas de
forma sintética no quadro abaixo.
Categorias de análise |
Resumo da pesquisa |
Preditoras da escravidão moderna |
Contexto
socio econômico |
A população mundial triplicou nos últimos 50
anos, graças ao movimento de migração rural para as cidades no Brasil e no
mundo, intensificando a oferta de pessoas à
procura
de trabalho e renda e reduziu salários no campo e em centros urbanos. A taxa
de urbanização na década de 1960 era de 57% na região Sudeste, chegando a
mais de 92% no ano de 2010. Estados do Maranhão, Piauí, Pará apresentam as
menores taxas de urbanização do país: 59%, 67% e 70%. |
Densidade populacional |
Cadeias produtivas buscam diminuir os custos de
produção por meio da redução de custos de mão de obra, sem investir em
condições dignas de trabalho. |
||
Formação e organização da captação de mão de obra
barata com mecanismos de substituição, custo de produção barato e preço de
venda barato – formou-se um sistema institucionalizado e com remuneração
baixa ao mesmo tempo: terceirização. Denúncia ao CADE por preço injusto na
cadeia da pecuária. |
||
Frequência escolar, falta de emprego e renda e
ausência de recursos para a saúde, estão relacionadas com a incidência de
trabalho escravo no Brasil. O berço de escravos brasileiros encontra-se em
estados com menor IDHM do país. |
IDHM |
|
O estado de pobreza coloca os indivíduos em linha
direta com os mecanismos aliciadores de “gatos”. Mendicância, fome,
subnutrição, terremotos e migração podem intensificar a vulnerabilidade de
trabalhadores brasileiros e estrangeiros. Certas regiões vulneráveis (NO e
NE) coincidem com o trabalho escravo. |
Vulnerabi-lidade |
|
Contexto
geográfico |
[...] “sou nordestino, nasci numa cidade bem
pequena. Lá é raro encontrar uma boa oportunidade de trabalho, por isso era
normal ver parentes e amigos partirem para outros estados em busca de oportunidade.
Em 2011, foi a minha vez de ir para sul. Um homem apareceu na minha cidade
para recrutar gente, era uma obra de uma importante
construtora, dizia, trabalho bom, salário bom, passagem, alojamento e
alimentação. Precisava e aceitei. Depois de dois dias dentro de um ônibus,
cheguei a São Paulo. E lá, a conversa mudou. [...] pensei em desistir e
voltar para casa, mas não tinha dinheiro para passagem e era obrigado a
ficar” (MTE, 2016b). [...] “o Pedro, de 13 anos de idade, perdeu a conta das
vezes em que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da
tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Antes
de amanhecer, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca,
abraçava a motosserra de 14 quilos e começava a transformar a floresta
amazônica em cerca...” (OIT, 2007 p. 28) |
Isolamento geográfico |
[...]
“não tive vida fácil. Aos 14 anos fugi de casa e da violência de meu
padrasto. Desde então, trabalhei duro, sempre queria melhorar. Por isso não
pensei duas vezes quando um brasileiro apareceu em La Paz. [...] eu tinha
duas opções, pagar os R$450,00 da viagem ou trabalhar para ele durante um ano
sem dinheiro. E sem opção, me submeti. Aprendi a costurar. Trabalhava todos
os dias, desde as 7 horas da manhã até às 11 horas da noite” (MTE, 2016c).
CASO D [...] a imigração está fortíssima. Não sabemos quantos paraguaios
bolivianos e peruanos já entraram. Até haitianos, pegaram 200 haitianos
tentando cruzar a fronteira para trabalhar nas obras das olimpíadas
(COORDENADOR DA OIT, 2011) informação verbal [...] estamos prestes a receber
dois grandes eventos no Brasil, que é a Copa do Mundo e uma Olimpíada, que já
está atraindo, inclusive, veio lá do Mato Grosso, e já tem informações de
pessoas chegando aqui no Brasil, de fora do país, e até migrando internamente
para trabalhar nestas construções (COORDENADOR DA OIT, 2013). |
Tráfico de pessoas |
|
Contexto
cultural |
[...]
há muita resistência no congresso brasileiro, há muita resistência em vários
setores da sociedade brasileira ao aprofundamento das políticas de ação
afirmativa, mas claramente, é procurar traçar uma linha divisória, entre
políticas públicas e ações de Estado e sociedade civil contra a escravidão. É
preciso entender que o escravo no Brasil é majoritariamente negro. Não
admitir é fugir à realidade (MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011).
Informação verbal [...] “olha a gente não pode aceitar que um monte de negros
e africanos, entre em um barco superlotado para tentar chegar a Sicília, e aí
eles afundam e morrem então isso são direitos humanos, o que a gente tem que
fazer para solucionar é fechar a fronteira. (COORDENADOR REPÓRTER BRASIL,
2014) |
Raça e cor |
Contexto
regulatório |
[...]
numa ação em Goiás, o GEFM libertou 128 trabalhadores em duas fazendas. O
coordenador conta que houve resistência à fiscalização, apesar da presença da
Polícia Federal. Os funcionários da fazenda não respondiam às perguntas,
ignoravam e dirigiam palavras agressivas. Ironizavam a fiscalização. Dois
policiais civis foram ao local e chegaram a interferir no trabalho de
fiscalização, até que foram afastados da equipe pela Polícia Federal. O grupo
móvel confirma que o “gato” tem dois irmãos na Polícia Civil (OIT, 2010 p.
132). |
Corrupção e fiscalização |
Fonte:
Elaboração dos autores.
Proposição
1 - Contexto socioeconômico: contextos de alta vulnerabilidade como desemprego,
pobreza crônica e baixa escolaridade incentivam a adoção do trabalho escravo
por alguns empreendimentos.
Para Crane
(2013), o mecanismo oculto se aproveita de nichos inertes vulneráveis que se
tornam férteis devido à articulação e ação dos empreendimentos informais. O
mecanismo oculto refere-se à lógica de atuação de nichos populacionais inertes
e vulneráveis que se tornam férteis devido à articulação e à ação dos
empreendimentos informais escravistas. Tais nichos caracterizam-se pelo estado
vulnerabilidade e têm cor e raça em diversas regiões do Brasil: são negros e
pardos. Os mecanismos ocultos também estão associados às práticas de gestão
insustentáveis, as quais redes escravistas reduzem seres humanos à condição de
escravos.
As características do trabalho escravo se
revelam nas condições degradantes de trabalho, como a falta de banheiro, a
alimentação inadequada, as jornadas exaustivas e o trabalho sem proteção. O
corte de cana é conhecido como um trabalho duro e que gera vários efeitos na
saúde. A violência física e psicológica extrema, e o fenômeno da pobreza,
precisam ser entendidos com maior profundidade. Foi o que Crane
(2013) levantou em seu estudo sobre as variáveis independentes - pobreza,
vulnerabilidade e educação, pois elas precisam passar por um rigoroso teste
estatístico para entendermos com profundidade sua correlação. O Índice de
Desenvolvimento Humano do Município – IDHM apresenta um nível médio nos estados
do Maranhão, Tocantins, Pará e Bahia, e alto nos estados de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. Contudo, os dados mostram que estados como Minas Gerais, São
Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná, apresentaram um número mais
alto de trabalhadores libertados de 1995 até 2016, comparado, por exemplo, com
o estado do Piauí (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2016). Teoricamente esses
estados deveriam apresentar um número menor de trabalhadores escravos por seu
nível maior de IDHM. Por exemplo, os estados do Piauí e de Alagoas apresentam
um IDHM abaixo do que esses estados geradores de mais riqueza, porém apresentaram
um número menor de trabalhadores libertados. A incidência de Piauí e de Alagoas
é maior referente aos trabalhadores nascidos e resgatados do trabalho escravo nesses
estados. Dados revelam que o número de operações de 1995 até 2016 foi maior no
Pará, no Mato Grosso e em Minas Gerais. Parece que IDHM pode ser outra condição
para o trabalho escravo, mas observa-se um efeito duplo semelhante com o efeito
da pobreza (TONNEAU, AQUINO, TEIXEIRA, 2005). Contudo, dados geográficos de Tonneau, Aquino e Teixeira (2005) mostram que onde há
pobreza, há escravos e há pessoas nascidas em estado de vulnerabilidade, e
estas deslocam-se geograficamente para um trabalho análogo ao de escravo.
Proposição
2 - Contexto geográfico: O
isolamento geográfico do negócio, somado ao isolamento psicológico, político e
físico dos trabalhadores, incentiva a adoção do trabalho escravo por alguns
empreendimentos.
A incidência de trabalhadores libertados e
cidades de nascimento de trabalhadores resgatados é alta nos estados do
Maranhão, Tocantins, Pará e Bahia, bem como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, onde
o percentual médio de pretos libertados é de 8,3% e de pardos é de 60,9% (MTE,
2016; ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2016). Em relação ao isolamento, dados
do IBGE (2016) revelam que os estados do Maranhão, Piauí e Pará apresentam as
menores taxas de urbanização do país: 59%, 67% e 70%, respectivamente, onde a
população de pretos e pardos é a que apresenta maiores movimentos migratórios
em busca de sustento, em busca de emprego em cidades grandes. O trabalho
escravo se deslocou do campo para a cidade devido à explosão populacional
brasileira e a mecanização da agricultura: [...] “o número de fiscalizações do trabalho escravo em ações urbanas vem
crescendo em grandes obras de engenharia e oficina de costura” (COORDENADOR ONG REPÓRTER BRASIL,
2014).
As regiões brasileiras com maior
incidência de vulneráveis são as regiões de fronteira – norte e nordeste. O
Brasil recebe pessoas em situação de vulnerabilidade de países vizinhos da
região norte como Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia,
Equador, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. (ABRAMOVAY, 2002; MOSER,
1998; VIGNOLI, 2001). O Haiti não faz fronteira com o Brasil, mas o ingresso de
haitianos em território brasileiro explica-se pelo terremoto ocorrido em 2010,
pela pobreza da população e a pela relação amistosa entre os países. A oferta
de imigrantes vulneráveis pode estar a serviço do tráfico de pessoas que alicia
seres humanos para exploração econômica ou sexual. Por exemplo, o resgate de
trabalhadores haitianos em um canteiro de obra em Minas Gerais e em outro
canteiro de obras do programa Minha Casa Minha vida em Mato Grosso. O estado de
vulnerabilidade ajuda também a compreender a dificuldade de alguns agricultores
em obter crédito agrícola (IBGE, 2016). Dificilmente, famílias vivendo os
desdobramentos da vulnerabilidade poderá comprovar renda e capacidade de
pagamento para obter o crédito agrícola. O ato voluntário de aceitar um emprego
perigoso e indigno ocorre em diversos testemunhos de trabalhadores resgatados
e, ao que parece, pode estar associado ao estado vulnerável do indivíduo (LE BRETON,
2002; MTE, 2016).
Proposição
3 - Contexto sociocultural – e sociodemográfico: A desigualdade naturaliza relações de
trabalho coercitivas, o que incentiva a
adoção do trabalho escravo por alguns empreendimentos.
Dados mostram que a cultura brasileira de
aceitação se liga ao repertório de tradições coronelistas que implantam rotinas
duras e opressoras de trabalho ao longo de tempos (LE BRETON, 2002). A
interação desse repertório com o espírito de honra de certos trabalhadores
mostra que a escravidão moderna pode ser explicada pelo compromisso de pagar
dívidas ilegais por trabalhadores escravos, mas não desonestos: “[...] eu sou
nordestino e cresci ouvindo meu pai, que me ensinou a ter honra a pagar minhas
dívidas e eu vou pagar essa dívida de qualquer jeito”. O habitus é consolidado a partir
das condições socioculturais e socioeconômicas permanentes e contínuas que
mantêm a escravidão contemporânea como uma prática “aceita” na sociedade
brasileira. Essas condições são reproduzidas com o acordo tácito de todos os
atores que possuem suas posições consolidadas: empresas, comunidade local,
poder público, instituições e os próprios trabalhadores. A cultura opressora
apresenta fortes características raciais, uma vez que oprime preferencialmente
pretos e pardos que, estando mais vulneráveis, tendem a assimilar como natural o
padrão opressor no local de trabalho.
O espaço social é produto da evolução
histórica do grupo e orienta a prática social. As condições socioculturais não
podem ser vistas apenas como uma característica estática de um grupo social
vulnerável de pretos e pardos. Elas são resultado de ações permanentes de um
contexto regulatório que promove políticas públicas ainda deficientes para
reduzir as condições de vulnerabilidade desse grupo. Também se articulam com a
ação das empresas e grupos econômicos com seus interesses. E da mesma forma, a
um conjunto de crenças, símbolos e significados que a comunidade local
compartilha. O fato de a cor/raça e de o gênero estar associados ao perfil do
trabalhador escravizado é considerado um elemento correlato, já que os
estereótipos são construídos socialmente, mesmo que sobre a base de
características biológicas. Nesse sentido, o habitus no campo simbólico da
escravidão no Brasil, articula a característica biológica de negro/pardo a uma
condição social de vulnerabilidade. Em consequência, este contingente
populacional é propulsor da escravidão moderna.
Proposição
4 – Contexto Regulatório: A ineficiência do contexto
regulatório não impõe sanções à exploração de mão de obra em condições
análogas à escravidão, o que incentiva a adoção do trabalho escravo por alguns
empreendimentos.
Em processos condenatórios, o MTE, o MPT e
a Justiça defendem a tese que empresas de maior poder econômico, mesmo que realizando
um contrato com seus fornecedores referente a “não responsabilidade” dos
trabalhadores sob sua tutela, elas poderão ser responsabilizadas solidariamente
caso ocorra o trabalho escravo. O TST do estado de São Paulo tem aplicado o que
se chama de responsabilidade subsidiária. O argumento da tese mostra que os
grandes varejistas ou lojas implantam a peça modelo desenhada por uma estilista
profissional, e na ponta da cadeia produtiva, as oficinas terceirizadas ou quarteirizadas são obrigadas a costurar igualmente a peça
modelo. Foi o que ocorreu com a empresa Riachuelo: “[...] a meta, por hora, era
colocar elástico em 500 calças ou costurar 300 bolsos. [...] evitava beber água
para diminuir as idas ao banheiro. Tudo era controlado pelo encarregado mediante
o uso de fichas. A ex-funcionária desenvolveu Síndrome do Túnel do Carpo, que
provoca dores e inchaços nos braços” (CAMPOS, ARANHA, 2016, p. 2). As condições
degradantes caracterizam-se no esforço físico de costurar sem parar para
descansar uma vez que as metas eram desumanas junto com uma alimentação
realizada em um tempo muito rápido. A violência física caracterizada pelo trabalho
em excesso ocasionou a síndrome do túnel do carpo. A ficha de controle pode ser
considerada um mecanismo oculto de trabalho degradante que institucionaliza o
controle e cerceia a liberdade do trabalhador que precisa cumprir metas sobre
humanas. De acordo com Campos e Aranha (2016), a ação jurídica contra a
Guararapes Confecções – indústria de roupas do grupo Riachuelo – resultou em
uma obrigação trabalhista de pagar uma pensão vitalícia à costureira lesionada
devido às atividades exercidas na empresa. A empresa decidiu utilizar uma
estratégia de redução de custo via terceirização a partir de 2013 e, por conta
da ineficiência regulatória do poder público para fiscalização das
terceirizações, a empresa não aplicou regras básicas da Consolidação das Leis
do Trabalho – CLT. Segundo Campos e Aranha (2016), por conta de um acordo com
40 cláusulas que a empresa assinou com o Ministério do Trabalho e Emprego, a
fábrica pagou multas e teve dificuldade de manter sua competitividade em razão
da reformulação de seus custos.
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do artigo foi identificar as
associações entre as condições sociais de vulnerabilidade e o perfil racial da
escravidão contemporânea. Com base nos resultados levantados na pesquisa, a
proposta deste estudo foi incorporar a variável raça e cor na concepção do
modelo teórico de Bales (2002; 2009), de Crane (2013)
e de Datta e Bales (2013; 2014) para aplicação no
Brasil, propondo os dados secundários e primários indicadores sociodemográficos
e de vulnerabilidade como preditores da escravidão moderna no contexto
brasileiro (MT).
Os dados sociodemográficos se redefinem
como dados socioculturais quando se tornam componentes da vulnerabilidade
social. A declaração de raça/cor e o gênero são considerados elementos
socioculturais de vulnerabilidade pela sua construção histórica. Nesse sentido,
a raça/cor e gênero podem ser fortes condições da reprodução cíclica e
permanente da escravidão moderna, pela representação social que possuem no
contexto. O modelo explicativo de escravidão contemporânea poderia se tornar
mais robusto com a incorporação desses elementos como componentes de
vulnerabilidade sociocultural.
De acordo com os dados apresentados a
escravidão moderna no Brasil tem uma cor. Há uma relação do contingente
populacional de pretos e pardos com práticas escravistas. A triangulação dos dados do
Censo do IBGE de 2016 com dados de trabalhadores libertados da escravidão no
Brasil pelo MPT e MTE indica um aumento de indivíduos pretos ou pardos resgatados
em cadeias produtivas no Brasil. Os pardos apresentam maior percentual de
resgate do trabalho análogo ao de escravo, quando comparados aos pretos. De
acordo com o último Censo de 2010, houve um aumento de indivíduos declarantes
da cor preta e da cor parda. A hipótese desse aumento pode estar associada ao
aumento da taxa de fecundidade entre pessoas pretas e pardas ou o aumento do
auto reconhecimento dos indivíduos.
Parece que a raça e cor podem ser
variáveis preditoras para a probabilidade de a escravidão ocorrer no Brasil, em
função de um contexto historicamente construído e socialmente reproduzido. A
variável raça e cor não pode ser considerada como um fator determinante para a existência
da escravidão moderna, mas sem dúvida é uma forte condição. O número de
trabalhadores pretos e pardos resgatados em diversas regiões do Brasil indica
uma preponderância da população negra entre os trabalhadores reduzidos à
condição de escravos. Apesar de apresentarem fortes indícios, são necessárias
pesquisas quantitativas futuras e testes estatísticos rigorosos das variáveis
raça, pobreza, IDHM, vulnerabilidade e grau de escolaridade, para compreender
melhor, por exemplo, o efeito moderador dessas condições e a persistência do
trabalho escravo.
Ademais, em relação aos resultados
empíricos, outras implicações e achados importantes foram sistematizados. Em primeiro lugar, foi possível constatar que o
trabalho escravo contemporâneo coexiste com as cadeias produtivas
economicamente representativas no Brasil e, inclusive, com as empresas
signatárias do InPacto. A coexistência consolida-se
em uma organização relativamente invisível formada por “gatos” ou empreiteiros,
que em alguns casos são “ex-escravos”. Essa
organização pouco perceptível surge no ambiente rural do agronegócio e no
ambiente urbano, particularmente na construção civil e na indústria têxtil
(OIT, 2010; MTE, 2012, MTE, 2016). Esses arranjos institucionais são possíveis
graças a um contexto que de alguma forma possibilita essa articulação. Por
exemplo, a pesquisa revelou que se desenvolvem rotinas e delimitam-se funções
por meio de atores e seus elos de relacionamentos, onde cada ator ocupa uma
posição consolidada, reúne interesses, recursos e estratégias para manter a
estrutura (habitus)
e o jogo. Além dos atores diretos (‘gato’, dono da fazenda, cozinheiro, dona do
hotel, trabalhadores), os atores indiretos também sustentam essa dinâmica. A
relação de dependência entre trabalhador e organizações escravistas completa o
quadro, já que ela é fortemente influenciada por mecanismos ocultos
relacionados à violência extrema e assassinatos entre patrão, gato, trabalhador
e demais fornecedores, aproveitando-se das condições socioculturais e
econômico-políticas da inércia estrutural (CRANE, 2013; DATTA; BALES, 2014).
Do levantamento realizado, também se
constatou que existe uma lacuna importante do marco normativo brasileiro, a
partir de uma delimitação do conceito que não reconhece expressamente o trabalho
forçado ou obrigatório como trabalho escravo moderno. Essa lacuna em um
ambiente com alta possibilidade de ocorrer corrupção, constitui um elemento
propício para que se desenvolva uma luta política ambígua, em que algumas
instituições podem usar os mesmos marcos normativos e regulatórios para
promover a prática da escravidão. Isso se observa na definição, na tipificação
do crime e nos arranjos institucionais existentes. Essa configuração aponta para
uma implicação do estudo que desvelou as articulações de certas empresas ou
fazendeiros diante da fiscalização do GEFM por meio de advogados cientes do
impacto da “lista suja” e, muitas vezes, com o pedido liminar pronto para
ingressar na Justiça. Desenvolve-se um mecanismo de defesa para fugir da
punição da restrição do crédito voltado para o agronegócio.
No contexto brasileiro, as práticas
escravistas em cadeias da pecuária, da agricultura, da construção civil e da
têxtil persistem, concomitantemente, com as “respostas” face às pressões
regulatórias institucionais, monitoradas pelo InPacto
ou a “Lista Suja”, e aos preços de um mercado competitivo. Essa resposta exige
de certos elos da cadeia uma adequação para atenderem ao mercado e ao ambiente
regulatório. Outra implicação do estudo mostrou que os atores participantes da
cadeia produtiva não desenvolvem a comunicação entre todos os elos da cadeia, não
detectam e não remediam as possíveis práticas da escravidão (GOLD, TRAUTRIMS,
TRODD, 2015). Há uma necessidade de que empresas assumam o papel de gerir toda
a cadeia produtiva, por exemplo, implantando tecnologia e gestão de pessoas de
forma participativa, não somente com auditorias ou certificações. Essa
atividade participativa pode desenvolver-se com a cooperação de ONGs e
Instituições interessadas como o InPacto,
principalmente, nos primeiros elos da cadeia, para promover a erradicação do
trabalho escravo contemporâneo.
As limitações do estudo associam-se à
pouca atenção de algumas empresas referente ao tema trabalho escravo em cadeias
produtivas. Neste sentido, ao longo do estudo percebeu-se um forte sentimento
de desconfiança e respostas autoprotetoras, que
dificultou a realização de um número maior de entrevistas, principalmente com as
empresas. Contudo, a participação de seminários e de palestras do InPacto em São Paulo e em Brasília, junto com a visita ao
escritório da OIT em Brasília, foi a estratégia utilizada para coletar os dados
primários e triangular com os dados secundários.
O caminho para pesquisas futuras
apresenta-se na melhor compreensão de “se” e “como” a deformidade
institucional pode atrapalhar os instrumentos de combate ao trabalho escravo no
Brasil. Dessa forma, propõe-se uma agenda de pesquisa que enfatize a
insustentabilidade de aspectos da globalização da produção e do consumo. Uma
agenda de pesquisa que priorize o trabalho escravo moderno enquanto problema
central e não periférico, investigando empiricamente o papel do MTE, do MPT e
da AGU junto com ONGs e a OIT. É necessário investigar com rigor as variáveis
independentes como a pobreza, a vulnerabilidade e a raça/cor associadas a
incidência do trabalho escravo em certas regiões. Além disso, abre-se uma
oportunidade para compreender melhor como a criação de instituições pode
contribuir para discutir alternativas e propor soluções para os problemas.
Os resultados apontam à necessidade de
examinar com maior profundidade como empresas economicamente representativas podem
implantar auditorias e rotinas das práticas de certificações internacionais que
alcancem as organizações invisíveis, formadas e mantidas por “gatos” ou
empreiteiros. Outra oportunidade para futuras pesquisas está em entender como
as capacidades organizacionais se desenvolvem para atender às demandas
institucionais e, nessa mesma linha de argumentação, quais dessas demandas se
relacionam com a promoção de uma integração racial à gestão da diversidade. O
estudo também abre um leque de oportunidades na relação de ONGs, empresas e o
poder público na formulação de políticas públicas acerca do trabalho escravo –
articulações, interesses, mecanismos ocultos e interferências. Essas abordagens
deveriam problematizar a questão racial no trabalho escravo na composição
sociodemográfica e econômica no país, dado seu percurso historicamente
construído. Assim, reconhecer que a população brasileira tem uma herança
histórica ainda presente nas formas de tratamento do perfil racial nas
organizações e nas informações sobre trabalho escravo, seria uma iniciativa para
tornar mais efetivas as ações públicas e privadas capazes de alterar essa
realidade. Ignorar essa perspectiva é perpetuar certas condições de
vulnerabilidade e compactuar com a permanência de uma prática organizacional
desumana.
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DATA
DE SUBMISSÃO: 30/09/2017
DATA
DE APROVAÇÃO: 24/07/2018
[1] Os termos moderno e contemporâneo serão utilizados como sinônimos neste trabalho, já que não há na literatura o estabelecimento das diferenças no uso desses qualitativos quando se referem à nova configuração da escravidão.
[2] Informação verbal no IV Seminário Internacional do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo em Brasília-DF.
[3] Informação verbal no IV Seminário Internacional do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo em Brasília-DF.
[4] O InPacto foi citado como referência de boas práticas na Organização Internacional do Trabalho – OIT (OIT, 2009; INPACTO, 2015).
[5] Foi o que ocorreu no Brasil, em 1960: a população urbana era de 41 milhões e passou para mais de 170 milhões em 2015. Esse aumento populacional acabou gerando oportunidades para exploração de trabalhadores sem o mínimo de recurso e caracterizou-se um campo fértil para práticas escravistas tanto no ambiente rural quanto no ambiente urbano.
[6] O termo “mecanismo oculto” foi discutido por Aguinis e Glavas (2012, p. 953) na revisão teórica sobre a Responsabilidade Social Corporativa. O termo pode ser associado com o que Crane (2013) chama de deflexão institucional organizacional.
[7] Esta notícia foi
recuperada de: http://www.conjur.com.br/2017-fev-14/cnj-premia-juizes-decisoes-favor-mulheres-idosos-indios
[8] Refere-se à capacidade de mudança socioeconômica por meio do acesso aos recursos que, associado ao conhecimento.
[9] Os dados da OIT foram coletados por meio de entrevistas com os trabalhadores libertados no ano de 2011, via atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do MTE.
[10] Informação verbal concedida por Auditor do Ministério do Trabalho e Emprego, no dia 30 de junho de 2011 em entrevista.
[11] Informação verbal por Coordenador ONG Repórter Brasil, no dia 17 de agosto de 2013 na sede da OIT em Brasília
[12] Informação verbal por Coordenador ONG Repórter Brasil no dia 11 de agosto de 2014 na sede da ONG Repórter Brasil.