Entre
o concebido e o vivido, o praticado: o entrecruzamento dos espaços na feira de
artes e artesanato da Praça dos Namorados em Vitória/ES
Fabiana Florio Domingues
Doutoranda
em Administração no Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração da
Universidade Federal de Minas Gerais (CEPEAD/UFMG). Bolsista CNPq. Mestre em
Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAdm/UFES).
E-mail: fabianafd@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4791-7070
Letícia Dias Fantinel
Professora
do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAdm/UFES). Doutora em Administração pela Universidade
Federal da Bahia (NPGA/UFBA). E-mail: leticiafantinel@gmail.com
ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-4589-6352
Marina Dantas de Figueiredo
Professora
Associada do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de
Fortaleza (PPGA/UNIFOR). Doutora em Administração pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (PPGA/EA/UFRGS). E-mail: marina.dantas@gmail.com
ORCID:
http://orcid.org/0000-0003-3273-8176
DATA DE SUBMISSÃO: 13/09/2016
DATA DE APROVAÇÃO: 24/08/2017
Agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do
Espírito Santo – FAPES (edital FAPES nº 006/2014 – Universal – Projeto
individual de pesquisa) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPq (processo nº 446524/2014-0) pelo apoio financeiro concedido.
Resumo
Este
artigo tem por objetivo compreender a forma como o espaço organizacional de uma
feira – Feira de Artesanato e Artes da Praça dos Namorados, em Vitória,
Espírito Santo – se constitui nos entrecruzamentos dos usos que diferentes
sujeitos elaboram para o espaço urbano. Para isso, utilizou-se o método
etnográfico, com produção dos dados a partir de observação sistemática e
participante ocorrida entre os meses de maio e outubro de 2015. Os dados foram
examinados à luz de categorias que articulam proposições teóricas dos autores Henri
Lefebvre e Michel de Certeau. Os resultados apontam para
a compreensão do organizar da feira como composto por práticas provisórias, cuja
existência é permeada por manifestações de poder, resistência e conflito
emersas no cotidiano dos sujeitos. Ao
revelar forças que atuam formando harmonias efêmeras, evidenciamos os
entrecruzamentos do espaço concebido e vivido da feira. A feira, enquanto forma
organizativa, emerge da justaposição de usos e apropriações de seus espaços, em
uma dinâmica que privilegia ora concepções de espaço elaboradas determinados
sujeitos, ora por outros.
Palavras-chaves: simbolismo
organizacional; espaço; etnografia; feira.
This article aims to understand how the organizational
space of a fair - Feira de Artesanato e Artes da Praça dos Namorados, em Vitória, Espírito Santo -
constitutes itself in the intertwining of the uses that different subjects
elaborate for the urban space. For this, we used the ethnographic method, with systematic
and participant observation engaged between May and October 2015. We examined the
data based on categories articulating theoretical pro positions of the authors
Henri Lefebvre and Michel De Certeau. Results show the
organizing of the fair as formed by provisional practices, in which manifestations
of power, resistance and conflict emerged in the daily life of the subjects permeate
whose existence. By revealing forces that act in ephemeral harmonies, we show
the intersections of space conceived and lived. The fair, as an organizational
form, emerges from the juxtaposition of uses and appropriations of its spaces,
in a dynamic that privileges space concepts elaborated by certain subjects,
sometimes by others.
Keywords: organizational symbolism; space; ethnography; fair.
1.
Introdução
O
espaço urbano compõe-se do conjunto de diferentes usos que os grupos sociais fazem
da cidade. Sua complexidade impõe desafios à pesquisa, visto que a compreensão da
dinâmica urbana passa por identificar e captar as integrações de interesses
políticos e sociais comumente tensionados. Apesar de tradicionalmente estudada
sob a ótica funcionalista (VIEGAS; SARAIVA, 2015), a cidade é repleta de
simbolismos, que perpassam sua configuração física e social. As diversas apropriações
que os grupos sociais fazem dos espaços das cidades revelam muitas formas de
perceber e criar o mundo (DAMASCENO, 2007). Compreender a cidade enquanto
fenômeno criado e recriado pelos sujeitos que participam do espaço urbano requer
pensar em seus habitantes, percebê-los em suas variadas formas de existência e
incluí-los na construção material e simbólica da cidade.
Ainda
que os espaços urbanos se produzam e reproduzam conforme as características
geográficas, políticas e culturais das cidades, é comum que certas formas
organizativas – formais ou informais, simbólicas ou construídas – estejam
presentes em quase todas elas. Essas organizações constituem o espaço público e
desempenham funções diversas na oferta de serviços para as populações urbanas. Entre
essas funções está o comércio enquanto atividade social e econômica que produz
rebatimentos no espaço físico e simbólico das cidades.
Para
os fins deste trabalho, destacamos as feiras como objeto privilegiado para a
investigação da dinâmica do espaço urbano. Enquanto formas organizativas
ancestrais, presentes em diversas sociedades humanas, as feiras podem ser
consideradas emblemáticas não apenas pela atividade comercial, mas também pela
relação da cidade com sua diversidade cultural e social (FERRETTI, 2000;
FILGUEIRAS, 2006; SOUSA, 2000). Nas cidades brasileiras, as feiras são fruto da
tradição ibérica, mescladas posteriormente com práticas africanas e indígenas
de trocas e comércio, resultado de um longo processo de modificação dos
mercados a céu aberto (MOTT, 1976; 2000). As sobreposições de função do espaço
urbano ficam evidenciadas na feira, que pode ser tomada também como foco para
compreender como os entrecruzamentos de usos e apropriações físicas e
simbólicas da cidade por parte dos grupos sociais constituem os espaços
organizacionais.
No
campo dos Estudos Organizacionais (EOs), as feiras
são ainda pouco exploradas enquanto objeto empírico. Alguns estudos já no
contexto brasileiro já abordam diferentes feiras urbanas nas perspectivas de
identidade (CARRIERI; SOUZA;
LENGLER, 2011; PIMENTEL; CARRIERI; LEITE-DA-SILVA, 2007), práticas
organizativas e estratégia (CARRIERI et al, 2008; DE SOUZA et al, 2014;
PIMENTEL et al, 2011) ou ainda como espaços de vitalidade (FILGUEIRAS, 2006). Paralelamente a essas
contribuições, ressaltamos a originalidade de investigar a relação entre a
feira enquanto organização e a dinâmica da cidade. Entendemos que compreender a
feira como organização, em suas características complexas e multifacetadas
(HERNES, 2004) permite desvendar estruturas econômicas, sociais e simbólicas
que estão imbricadas em dinâmicas urbanas (FERRETI, 2000).
Em vista disso, buscamos estudar a constituição do
espaço organizacional, em relação à dinâmica do espaço urbano. Nosso objetivo é
compreender a forma como o espaço
organizacional de uma feira – a Feira de Artesanato e Artes da Praça dos
Namorados, em Vitória, Espírito Santo – se constitui nos entrecruzamentos dos
usos que diferentes sujeitos elaboram para o espaço urbano.
Adotamos
uma abordagem simbólica (HATCH; CUNLIFFE, 2013), de acordo com a qual a
organização pode ser vista como a confluência de símbolos, narrativas e
construções de sentido elaboradas subjetivamente. Congruente com essa definição
para o fenômeno organizacional está o método etnográfico (CAVEDON, 2008;
CHIESA; FANTINEL, 2014), adotado para investigar aspectos simbólicos e
representações manifestadas acerca da apropriação do espaço público pelos
diferentes sujeitos que experimentam a feira cotidianamente. Na perspectiva
etnográfica que adotamos, buscamos abordar a feira e seus espaços como
experiência (TAYLOR; SPICER, 2007; TOMKINS; EATHOUGH, 2013), posicionando este estudo
sob uma ótica compreensiva, na qual o papel da pesquisa é interpretar os
significados, percepções e experiências circulantes e engendradas no universo organizacional,
agregando perspectivas simbólicas e materiais.
Entendemos
que a presente pesquisa apresenta relevante contribuição na medida em que se
propõe à investigação de uma feira já tradicional no contexto da capital
capixaba, que integra, em seus diferentes espaços, habitantes da cidade e
proximidades, turistas, representantes do poder público, artesãos e
comerciantes. Tal multiplicidade de sujeitos, ao experienciarem os espaços da feira,
o fazem construindo-a e reconstruindo-a simbolicamente, em contextos de
diferentes concepções, vivências e práticas, o que compreendemos ser os
entrecruzamentos de espaços. Assim, as realidades espaciais, construídas
socialmente, desvendam significados, práticas e interesses distintos que, por
vezes, se aproximam, formando um complexo caleidoscópio de consciências
intersubjetivas, que ora tendem ao conflito, ora combinam-se em harmonizações,
de forma heterogênea, fluida e fragmentada.
O
caminho para a construção de tais interpretações evidencia outra contribuição deste
artigo, na medida em que articula perspectivas emergentes na análise do espaço
organizacional (WATKINS, 2005). Evidenciamos o potencial das teorias de Henri
Lefebvre e Michel de Certeau, para a compreensão das
dimensões material e simbólica do espaço urbano, produzido pela experiência dos
seus habitantes. Partimos da tríade espacial elaborada pelo primeiro autor para
a compreensão integrada dos domínios do espaço tal como planejado, concebido, e
do espaço enquanto vivido cotidianamente. Contudo, a articulação entre as
esferas conceituais de Lefebvre é feita a partir do diálogo com o pensamento de
Michel de Certeau acerca das práticas espaciais. A
análise foi construída, portanto, ligando as práticas aos espaços e aos
simbolismos produzidos, que nos possibilitou compreender o processo de
organizar como composto por práticas provisórias, nas quais emergem
manifestações de poder, resistência e conflito, constantemente ressignificadas
pelos sujeitos para que a organização feira aconteça.
Convidamos
o leitor, portanto, a percorrer o caminho que seguimos na feira, cuja narrativa
organizamos nas seguintes seções: após esta introdução, apresentamos o
referencial teórico, seguido da metodologia, da apresentação do campo, tendo,
por fim, as considerações finais.
2.
O espaço como experiência: situando a perspectiva nos EOs
No
campo dos EOs, aspectos relacionados a espaços e
espacialidades nas organizações vêm sendo foco de investigação de diferentes
pesquisadores (DOVEY, 1999; KORNBERGER; CLEGG, 2006; CLEGG; KORNBERGER, 2006;
VAUJANY; MITEV, 2013). Em 2010, Van Marrewijk e Yanow (2010) chegaram a falar em uma “virada espacial” (spatial turn) na
área, destacando os encaminhamentos de análises sobre o espaço organizacional e
o espaço do trabalho que datavam de pelo menos 30 anos antes.
O
espaço foi recorrentemente abordado pelas teorias sobre gestão, visto ser o
cenário da ação nas organizações (CHANLAT, 2006). Contudo, foi a partir da
temática da cultura organizacional, nos anos 1980 e 1990, que os aspectos
espaciais e materiais da vida organizacional entraram em foco. Essa “virada
espacial” acompanhava o movimento que ocorria em paralelo em outras ciências
sociais, como a filosofia a antropologia. Ao redescobrir o espaço e a
espacialidade, esse novo foco passou a aproximar os EOs
a uma longa tradição de estudos sobre o espaço nos campos da geografia humana e
social, estudos sobre as cidades e o planejamento urbano e a sociologia.
Taylor
e Spicer (2007) classificam as pesquisas sobre
espaços organizacionais em três abordagens básicas: espaço como distância,
espaço como materialização de relações de poder, e espaço como experiência. A
primeira categoria corresponde a uma perspectiva estritamente física do espaço,
considerado como a distância (possível de ser mensurada e representada
objetivamente) entre dois ou mais pontos. Essa abordagem, que pode ser tomada
como o entendimento mais usual do espaço nas organizações, está presente em um
amplo conjunto de trabalhos baseados em perspectivas funcionalistas sobre o
fenômeno organizacional. Apenas para mencionar um exemplo, esses trabalhos desenvolvem
temas como a relação da estratégia com o espaço de atuação da organização (GIBLER;
BLACK; MOON, 2002; DAMERON; LÊ; LEBARON, 2015).
A
categoria do espaço como materialização de relações de poder aborda a questão
do controle, da vigilância e da disciplina em meio organizacional e para fora dele,
como na discussão sobre os espaços urbanos (TAYLOR; SPICER, 2007). Nesta
perspectiva, o espaço disponibiliza posições fixas ou permite a circulação,
marca lugares, define ações, garante a obediência em arranjos que refletem e
reproduzem hierarquias e relações de poder. Particularmente relevantes para a
abordagem agrupada nessa categoria são os estudos que buscam compreender os
lugares de poder nas organizações (FLEMING; SPICER, 2014), que são simbólicos,
em relação ao espaço físico. As implicações mútuas entre espaço arquitetônico e
a gestão são objeto de reflexão para a vertente dos EOs
(KORNBERGER; CLEGG, 2006; KERR; ROBINSON; ELLIOT, 2016; VALAND, 2011; VAUJANY;
MITEV, 2013). Nessa abordagem, percebe-se a influência teórica do conceito de
poder disciplinar de Michel Foucault (CAIRNS; MCINNES; ROBERTS, 2003) e uma
orientação empírica voltada para a observação e interpretação do espaço e da
cultura material em relação às interações e compreensão dos comportamentos dos
sujeitos in situ (O’TOOLE; WERE, 2008).
Por
fim, a categoria que aborda o espaço como experiência envolve menos a
preocupação com aspectos como distância e proximidade ou mesmo com as relações
de poder, focando especificamente na forma como espaços são produzidos nas
experiências daqueles que dele se apropriam e que nele habitam. Assim, o espaço
como experiência parte de uma ótica compreensiva, na qual o papel da pesquisa é
apreender e elaborar modos de comunicar os significados, percepções e
experiências circulantes e engendradas no universo simbólico organizacional.
A
abordagem do espaço como experiência se caracteriza pela adoção de uma ontologia
subjetivista (HATCH; CUNLIFFE, 2013), conforme a qual se entende que a
realidade é condicionada à experiência dos sujeitos e aos seus modos de elaborar
sentido para experiências. A partir de perspectivas interpretativas (PUTNAM;
BANGHART, 2017) e fenomenológicas (TOMKINS; ETHOUGH, 2013), as correntes dos EOs dedicados a essa compreensão sobre espaço e
espacialidade têm assumido que a realidade espacial das organizações é
construída socialmente, ou passa a ter sentido no contexto das experiências dos
sujeitos. Conforme essa abordagem entende-se que construções simbólicas sobre o
espaço organizacional tendem a se depositar sobre estruturas físicas
existentes, como prédios, salas e escritórios, que são propriamente os lugares
onde a organização se desenvolve.
Nessa
abordagem, tem-se o entendimento de que espaço organizacional surge como
produto da consciência intersubjetiva, a partir do contato experiencial com o
espaço. Dessa forma, a existência do espaço organizacional é elaborada a partir
de referências materiais concretas, que ganham significado por meio de
símbolos, representações e construções de sentido, principalmente por meio de
processos de comunicação (ROPO; HÖYKINPURO, 2017; VASQUES, 2016; WILHOIT,
2016), mas também pela via não-representacional da performance (BEYES; STEYAERT, 2011). Essa abordagem coloca desafios
à pesquisa organizacional e aponta para a adoção de ideias fenomenológicas
(TOMKINS; ETHOUGH, 2013), que elaboram o entendimento da experiência do espaço
no fluxo da vida.
3. A produção simbólica do espaço
urbano
A
emergência do espaço como experiência se deve em grande medida à obra de
Lefebvre (2006). Em A Produção do Espaço,
o autor adota uma epistemologia crítica para definir o espaço social como um conceito que não pode ser
isolado, nem permanecer estático, uma vez que surge de um conjunto de relações
dialéticas de produção/reprodução. Para elaborar esse conceito dinâmico de
espaço, o cotidiano aparece como uma força central, conforme ressaltam
comentadores da obra de Lefebvre (ELDEN, 2004; KIPFER et al, 2008). Na sua
compreensão sobre o espaço, Lefebvre (2006) enfatiza o potencial generativo das
interações cotidianas e seu método de trabalho pode ser descrito como uma
observação do cotidiano, em busca de experiências que produzem o espaço na
perspectiva dos sujeitos sociais (BEYES; STEYEART, 2011).
Segundo Lefebvre (2006), o espaço pode ser, ao mesmo tempo,
abstrato e real, concreto e instrumental, e igualmente transcender a própria
instrumentalidade. Para o autor, o espaço pode ser concebido para além de sua materialidade,
estando associado à realidade social, ou seja, produzido socialmente (LEFEBVRE,
2006). Assim, o ser humano, ao viver em sociedade, constrói e reconstrói seu
mundo físico, social e cultural.
A
experiência do espaço também é recurso para o pensamento de Michel de Certeau. Na obra A
invenção do cotidiano, o autor contribui à teoria da ação ao colocar o foco
de seus estudos na criatividade do sujeito, ao dedicar sua análise aos
interstícios por meio dos quais o indivíduo escapa daquilo que dele se espera
(COVA, 2014). Nesse trabalho, Certeau (2014) analisa,
dialeticamente, práticas culturais aparentemente insignificantes da vida
cotidiana a partir das lógicas que as sustentam (BUCHANAN, 2000). Assim, tendo
em vista que Certeau (2014) explora os processos de
bricolagem e apropriação enquanto expressões de contra-poder
do homem ordinário, seu trabalho consegue, em certa medida, dar elementos para
que seja pensada a questão central que Lefebvre compartilhava com os pensadores
de sua época: “como sair do cotidiano?” (COVA, 2014). Ou seja: como entender a
relação teoria-prática para além do senso comum, mas partindo justamente do
reconhecimento de que o mesmo é o recurso teórico do cientista social.
Conforme
Lefebvre (2006), o espaço pode ser conceituado de (pelo menos) três maneiras
diferentes: o espaço concebido, o espaço vivido e o espaço percebido[1]. O espaço concebido está relacionado ao
espaço do modo de produção dominante numa sociedade que tende, em sua maioria,
a “um sistema de signos verbais, portanto, elaborados intelectualmente”
(LEFEBVRE, 2006, p. 66). Enquanto isso, o espaço vivido é o espaço dos
habitantes, permeado de imagens e símbolos; “trata-se do espaço dominado,
portanto, suportado, que a imaginação tenta modificar e apropriar”,
assemelhando-se a “sistemas mais ou menos coerentes de símbolos e signos não verbais”
(LEFEBVRE, 2006, p. 66). O pensamento do autor, destacado por justamente
evidenciar a dimensão dialética na compreensão do espaço, em um entrecruzamento
constante de materialidade e representação, problematiza o espaço urbano em
termos de processos que consistem em sua progressiva secularização e
comoditização (WILSON, 2013).
De
acordo com Lefebvre (2006), a produção do
espaço pode ser entendida a partir da combinação de três elementos: a prática
espacial, as representações do espaço e os espaços de representação. Certeau (2014), por sua vez, refere-se ao espaço como o
lugar praticado, ou seja, produzido ambiguamente a partir da relação do sujeito
com o mundo, em sua existência espacial. Comparativamente para o autor “a
leitura é o espaço produzido pela prática do lugar construído por um sistema de
signos – um escrito”, sendo este constituído nas práticas do cotidiano
(CERTEAU, 2014, p. 184).
A
articulação que aqui propomos pretende evidenciar a dinâmica dos
entrecruzamentos materiais e representacionais, especialmente por meio da
dimensão simbólica dos espaços urbanos em relação aos espaços organizacionais.
Nesse sentido, as concepções problematizadas por Certeau
(2014) são essenciais, na medida em que o autor desvenda mecanismos de
transformação e significação dos espaços dados pela prática cotidiana, pela
apropriação desses mesmos espaços. Igualmente importante para essa compreensão
é o aporte de Lefebvre (2006) sobre as formas de produção do espaço urbano em
relação ao trabalho de produção de diferentes grupos sociais. No encontro entre
essas duas vertentes teóricas, assumida a ideia de que os espaços e os lugares
produzidos produzem as pessoas ao mesmo tempo em que estas os constroem (DALE;
BURRELL, 2008). Cabe ressaltar que tal compreensão só se torna possível a
partir de uma análise não apenas relacional, mas também histórica, levando-se
em conta fatos, conflitos relevantes e relações de poder em cada situação.
É
importante destacar que a própria noção de cotidiano para os autores é diversa,
considerando que, para Lefebvre, as formas de dominação surgidas no seio da
modernidade, compreendidas pelo ângulo do consumo, constituem formas de
alienação, enquanto, para Certeau, esse mesmo consumo
representa situações de resistência, que permitem ao sujeito colocar em prática
suas táticas e artes de fazer (COVA, 2014). Da mesma forma, as noções de espaço
divergem, como já mencionamos. Contudo, concordamos com Cova (2014) ao lançar
luzes para a proximidade de pelo menos duas noções utilizadas por ambos os
autores: uso e apropriação. Enquanto Lefebvre propõe reabilitar o conceito de
cidadania nas práticas de uso, uma vez que percebe, no cotidiano, a reprodução
das relações de dominação, Certeau sugere outro olhar
sobre o indivíduo, evidenciando a criatividade, e não a passividade (COVA,
2014). Ambos se negam, logo, ao pensamento de um indivíduo manipulado pelo
sistema. Da mesma forma, Lefebvre inscreve a apropriação no campo da prática,
embora não considere que processos de reapropriação
sejam atos de criação, como Certeau (COVA, 2014).
Não obstante, para além das discordâncias, entendemos
que na experiência do sujeito de praticar o mundo a partir de seu uso, criando
e recriando dinamicamente o cotidiano, que as proposições de espaço de ambos os
autores podem ser vistas como complementares na análise dos dados de campo
captados nesta pesquisa. Essa possibilidade de diálogo se evidencia na medida
em que concebermos que a transformação do espaço concebido em vivido (LEFEBVRE,
2006) se dá por meio da prática cotidiana do espaço pelo sujeito (CERTEAU,
2014). O espaço, para Certeau (2014), é lugar
praticado, produzido a partir da relação do sujeito com o mundo, personalizado
como “movimento”, palco das ações e representações do sujeito em seu cotidiano.
Henri
Lefebvre, talvez mais que Michel de Certeau, é um
autor cujos escritos são apropriados frequentemente no campo da Geografia e dos
Estudos Urbanos. Ainda assim, o pensamento de Michel de Certeau
pode trazer contribuições para o estudo de dinâmicas urbanas, especialmente na
problematização das práticas e apropriações do espaço como maneiras de fazer
das pessoas ordinárias, que experienciam e produzem o urbano cotidianamente. Nesse sentido, enquanto produzido socialmente, o espaço
urbano se configura como palco dos espaços de representação (LEFEBVRE, 2006). Esses
espaços de representação vão além de simples caminhos geográficos a serem
percorridos a esmo; as representações subjacentes à produção do espaço urbano carregam
noções de intencionalidade, que caracterizam a concepção do espaço tal como ele
se constitui a partir dos usos dos sujeitos (SANTOS,
2006). Desse modo, não é possível pensar a cidade apenas fisicamente, como meio
ambiente inerte, deixando de fora abordagens que não concebem as práticas sócio-espaciais que a moldam e a constroem (CARLOS, 2007).
As práticas sociais no espaço se desenvolvem como performances dos sujeitos, ou seja, como desdobramentos das suas
sensações e da sua corporeidade em relação à experiência do ambiente (BEYES;
STEYAERT, 2011).
Aprofundando
a ideia de experiência, entendemos que a ação humana nas diferentes paisagens
urbanas é marcada por uma corporeidade social (SANTOS, 2006), perceptível em
sua materialidade nas configurações residenciais e comerciais, na arquitetura e
padrões construtivos (DALE; BURRELL, 2008), na distribuição das pessoas e
construções, na disposição física da cidade (SANTOS, 2006). As diferentes
construções arquitetônicas presentes na
sociedade são carregadas de simbolismos que procuram, mediante a necessidade do
ser humano de situar seu mundo no tempo e no espaço, deixar mensagens de sua
compreensão (DALE; BURRELL, 2008). As ações formalizadas de planejamento da
cidade passam, portanto, pela definição da cidade que se deseja, em uma
concepção produzida a partir de um lugar de poder específico. Contudo, é
importante destacar que a concepção do espaço está no campo das imagens, enquanto
o real está na dimensão da vivência deste espaço, dada por meio de suas
apropriações cotidianas (CERTEAU, 2014). Entre o planejado e o vivido, o espaço
urbano é ressignificado em processos de apropriação por parte dos sujeitos que
desenvolvem suas práticas de representação no espaço social.
Apropriar-se
de um espaço significa tomar determinado lugar como “seu”, atribuindo-lhe
características pessoais ou sociais de identificação que demonstram a interação
das pessoas com os diversos ambientes (FISCHER, 1994). Ainda segundo Fischer
(1994), as dinâmicas de apropriação nunca são neutras, uma vez que carregam
consigo diferentes marcas culturais que conferem sentido ao espaço. Assim, a
materialização do processo da prática sócio-espacial
se dá na “concretização das relações sociais produtoras dos lugares, esta é a
dimensão da produção/reprodução do espaço, passível de ser vista, percebida,
sentida, vivida” (CARLOS, 2007, p. 21). Isto porque é nessa apropriação do
espaço que se fundamenta a reprodução da sociedade, em seu sentido ininterrupto
de vida vivida, revelado num conjunto de relações, modelos de comportamento e
sistema de valores (CARLOS, 2007; IPIRANGA, 2010).
A
partir dos conceitos aqui apresentados e o entrelaçamento de perspectivas
complementares de espaço, no próximo item, apresentamos os caminhos
metodológicos percorridos nesta pesquisa.
De
acordo com a abordagem teórica do espaço como experiência, optamos por realizar
uma pesquisa empírica qualitativa na feira da Praça dos Namorados, entendendo
que esta possibilita a compreensão do subjetivo, presente no espaço investigado.
Nesse âmbito, buscamos compreender como a feira se constitui nos
entrecruzamentos dos usos que diferentes sujeitos atribuem ao espaço urbano,
nas suas práticas cotidianas que se desenvolvem como performances no espaço (BEYES; STEYAERT, 2011). Entendemos a postura
etnográfica como orientada por uma perspectiva experiencial fenomenológica (TOMKINS;
EATHOUGH, 2013).
Assim, no início do mês de maio de 2015, uma das autoras
inseriu-se em campo e iniciou o uso da observação participante, que se estendeu
até meados do mês de outubro do mesmo ano. A partir da inserção em campo, foram
elaborados 40 diários de campo densos e detalhados, a partir da recomendação de
Cavedon (2008) de que sejam registrados, além das
observações do pesquisador, seus sentimentos no dia de trabalho. Ao seguir as
premissas do método, as ações em campo foram pautadas em procurar manter a
postura de etnógrafa, estando atenta às condições de produção do conhecimento
expressas nas interações e reflexividade que se travam no campo de pesquisa (CHIESA;
FANTINEL, 2014).
Como
estratégia de aproximação dos sujeitos, esta autora passou a oferecer ajuda aos
expositores em troca de conversa (e informações). Assim, a pesquisadora em
campo se oferecia entre os pesquisados para carregar os produtos, montar
barracas, instalar luminárias, carregar gelo, armar tendas usadas para proteger
os clientes da chuva, o que fosse preciso. Essas ações ao longo da pesquisa
remetem à importância de um comportamento proativo por parte do pesquisador, na
busca dos dados seguindo os princípios do fazer etnográfico, como propõe Cavedon (2014). Assim, a função de “faz tudo” possibilitou
a liberdade de conhecer e participar de atividades em bancas diferentes
(alimentação, artesanato e “fuleragem[2]”),
permitindo compreender melhor parte de sua dinâmica, diversificar o olhar e a
construir a polifonia do texto.
Os dados das observações, diários de campo e entrevistas
foram interpretados em primeira instância pela pesquisadora, que é a primeira
autora deste texto, à luz do referencial teórico e das vivências de campo. As
demais autoras interagiram com os dados de campo, leram as análises elaboradas
pela pesquisadora e empreenderam análises secundárias, orientadas pelo
referencial teórico e pela evidenciação da contribuição teórica do trabalho
empírico. Escolhemos esta forma de análise por entendermos que, embora a pesquisa
etnográfica seja resultado de um esforço individual, a produção de reflexões
teóricas sobre os dados de campo podem ser enriquecidas com o trabalho coletivo.
Essa forma de tratamento dos dados empíricos tem o potencial de fortalecer a
confiabilidade dos achados, além de aumentar a legitimidade da pesquisa etnográfica
nos EOs, visto que o pesquisador é levado a
questionar o modo como sua subjetividade orientou os achados empíricos, no
contato com os outros pesquisadores. O relato das experiências de campo segue a
lógica compartilhada de autoria assumida neste texto, complementada pela adoção
da primeira pessoa do plural como voz verbal na apresentação dos dados
empíricos.
A Feira de Artesanato e Artes na Praça – popularmente
conhecida como Feira da Praça dos Namorados - localiza-se na Praia do Canto, bairro
considerado, segundo a PMV, uma das regiões com melhor infraestrutura da
cidade, com atividade de comércios e serviços (VITÓRIA [Município], 2015).
Segundo os números do Censo 2010, o bairro é o terceiro mais populoso da
cidade, com cerca de 15.147 habitantes entre os 327.801 habitantes da capital.
A renda per capita dos moradores do
bairro era, em 2010, em torno de R$ 3.844,97 (média mensal), contra R$ 1.662,97
da cidade toda (IBGE, 2010). Marcam sua paisagem as construções imponentes e
altos edifícios residenciais e comerciais.
Fazem
parte da praça duas quadras de tênis, uma de vôlei e uma de futebol de areia,
uma pista de skate e um parquinho
infantil. A praça possui ainda áreas verdes e diversas árvores de diferentes
espécies, que garantem sombra farta. Há também monitoramento 24 horas por
câmera, além de ser rota de passagem da polícia militar, guarda municipal e
polícia montada, em rotina de ação preventiva. A feira utiliza para seu
funcionamento uma área de 5.901,94m², cerca de 50% da extensão da Praça dos
Namorados, estabelecendo-se ao final da tarde e à noite regularmente em finais
de semana e esporadicamente em feriados ou datas comemorativas. A feira faz
parte ainda do Programa Artes na Praça, iniciativa da Prefeitura Municipal de
Vitória (PMV) existente desde 2004 (VITÓRIA [Município], 2015).
Há muitas informações desencontradas sobre quando e como a
feira começou; contudo, segundo informantes a feira passou a ser reconhecida
pelo poder local na segunda metade da década de 1980. Inicialmente, produtos locais
e de artesanato eram o “carro chefe” da feira, mas, com o passar do tempo,
outras barracas foram se instalando e comercializando os mais variados
produtos. Passando entre as barracas da feira, é possível notar uma grande
diversidade de produtos artesanais, bem como produtos de fabricação industrial entre
brinquedos e pratarias que são comprados de outros mercados populares,
geralmente de São Paulo e Belo Horizonte, “made in China” em sua grande maioria. Há também barracas que
comercializam alimentos, onde se encontram pratos típicos regionais, como a
moqueca e a torta capixaba, mas são comercializadas também outras opções de
refeição rápida, como comidas mexicanas, japonesas, baianas, pizzas e o popular espetinho.
Convém
apresentar os aspectos da estrutura física e do ordenamento formal da feira. Embora
a feira tenha início habitualmente ao final da tarde, a mobilização dos
trabalhadores inicia muito antes disso. Aos finais de semana, logo pela manhã,
já se vê a movimentação dos montadores na praça. Os expositores começam a
chegar após as 14h, e logo depois das 16h alguns deles já estão organizando
seus produtos na banca (cada expositor tem seu tempo de montagem e arrumação de
sua banca, seguindo o ritmo que considera conveniente). O horário de
encerramento também varia, dependendo do movimento de clientes.
Alguns
elementos físicos demarcam os limites da organização. Por exemplo, o som. Ao
redor da praça, fixadas em alguns postes, é possível ver caixas de som, que são
operadas por um dos expositores que, além de fazer parte do comitê gestor, está
também na gestão da associação. A feira tem, portanto, um sistema de som
próprio, em que músicas diversas são reproduzidas e, como uma rádio
convencional, também abre espaço para propaganda. Os comerciais expõem os
diferentes produtos comercializados nas barracas. Junto ao anúncio, tocam-se
músicas que buscam fazer alusão ao tipo de produto vendido. Entre os
comerciais, gêneros musicais diversos são tocados, o que também é motivo de
conflitos, causado pela própria diversidade de gostos musicais dos expositores.
Outro
elemento físico que delimita a feira é a iluminação. Além dos postes de
iluminação pública da praça, a iluminação do espaço é reforçada pela iluminação
das barracas, de responsabilidade e custos sob incumbência da PMV. Para os
expositores, há caixas de distribuição de energia com tomadas, cobertas por uma
tampa metálica, dispostas no chão, ao longo de toda a praça. Depois da mudança
de leiaute ocorrida em 2015, que será tratada oportunamente neste artigo,
algumas dessas caixas ficaram ainda mais longe das bancas, precisando que os
expositores aumentassem o tamanho da extensão elétrica que usavam, demandando
atravessar fios elétricos no chão, na passagem das pessoas.
Além
do som e da iluminação, o elemento físico mais perceptível da organização feira
é a forma como se posiciona no espaço da praça. A distribuição das barracas na
praça pode ser delimitada e representada em um desenho, que chamamos de
leiaute, em conformidade com o linguajar êmico. Em
setembro de 2014, o leiaute da feira, que concentrava as barracas de
alimentação em uma das extremidades da praça foi alterado, o que implicou uma
nova corporeidade social (SANTOS, 2006) a seus espaços na medida em que foram
reconfiguradas materialidades que, estando de acordo com concepções produzidas
a partir de um lugar de poder (DALE; BURRELL, 2008), geraram consequências concretas
nas formas de experienciar a feira, seja pelos expositores, seja pelos
passantes. A nova disposição das barracas foi desenhada pela PMV, que
distribuiu as barracas de alimentação nos dois lados da praça, concentrando as
de artesanato no meio, conforme a figura 1. Essa mudança foi vista como
necessária pelos sujeitos em campo, tanto representantes do comitê gestor, da
PMV e expositores, uma vez que, segundo eles, polarizava o acesso do público às
barracas de alimentação.
Figura 1 – Leiaute da feira, antes e depois da mudança.
Fonte:
Prefeitura Municipal de Vitória, 2015.
Essa
alteração intencional na materialidade da feira ocasionou mudanças na
distribuição e nos fluxos das pessoas: segundo os próprios expositores e também
na opinião dos montadores das barracas e PMV, fez aumentar a circulação das
pessoas na feira. Durante a pesquisa de campo, foi possível observar uma maior circulação
de pessoas de um lado para o outro na praça, algo que não se percebia na
disposição anterior, na qual as pessoas permaneciam na área destinada à
alimentação. Assim, é possível dizer que as realocações forçaram mudanças nas
formas de experienciar os espaços da feira por parte de diferentes sujeitos.
Tal mudança desagradou a muitos comerciantes,
especialmente os de alimentos, que precisaram deixar o espaço que ocupavam
anteriormente e que seus clientes já conheciam, para se acomodar em outro
lugar. Alguns expositores, mesmo reconhecendo a importância das alterações,
perceberam que das mudanças emergiram novos conflitos entre os expositores,
principalmente naqueles cujas novas experimentações dos espaços foram por eles
compreendidas como prejudiciais.
Ainda
em relação ao ordenamento formal, no momento da realização da pesquisa,
conforme informações da PMV, a feira conta com 209 barracas, sendo 159 de
artesanato e brinquedos e 50 de alimentação, além de receber entre 5.000 e
8.000 passantes por final de semana. Alguns expositores estão organizados em
uma associação, mas cabe destacar que essa adesão não é homogênea. Entre
alguns, predomina o discurso de que a associação existiria para o benefício de
poucos, não atendendo às expectativas da maioria. Já o chamado comitê gestor
(cuja existência é determinada por exigência da PMV) é formado por três
expositores – um de alimento e os outros de artesanato ou brinquedos – com três
suplentes. A cada dois anos, um novo comitê gestor é eleito, num processo de
votação realizado entre os associados. É o comitê gestor que medeia as
necessidades e reivindicações dos expositores junto à Secretaria Municipal de
Turismo, Trabalho e Renda (Semttre).
Nesse
cenário, ao compreendermos o espaço como experiência, produzido nos diferentes
usos que dele se fazem cotidianamente, tomamos como foco as diferentes
concepções de espaço e entendimento do que é ou o que deveria ser a feira, que
revelam simbolismos construídos e reconstruídos numa dinâmica que ora aproxima,
ora afasta expositores e passantes. Tais pontos de consenso e dissenso,
perceptíveis na dinâmica cotidiana da feira, são apresentados a seguir, a
partir das categorias de análise emergentes dos dados produzidos em campo.
Conforme
já articulado teoricamente neste artigo, as práticas dos espaços (CERTEAU,
2014) emergem a partir das vivências dos diferentes sujeitos que modificam e se
apropriam desses espaços, de forma que o concebido encontra-se com o vivido
(LEFEBVRE, 2006), em existências espaciais que ultrapassam limites e transgridem a ordem estabelecida. Constrói-se, assim, uma
intensa reapropriação e ressignificação dos espaços,
produzidos a partir das experiências (TAYLOR; SPICER, 2007) de expositores,
passantes e poder público.
É oportuno ressaltar que fazemos aqui uma mescla intencional
entre praça e feira, expressa pelo que interpretamos como uma interdependência
entre os dois signos, convertendo-os em símbolos complexos que se relacionam e
se confundem, numa praça que possibilita a existência da feira e uma feira que
confere sentido e vida à praça. Assim, após esta explanação, apresentamos os
resultados da pesquisa de campo e as revelações da feira.
De
acordo com uma informante, a Feira da Praça dos Namorados foi concebida pela
PMV como uma maneira tanto de acomodar os trabalhadores informais que ocupavam
outra praça no centro da cidade de Vitória, como também controlar o uso deste
espaço público (segundo a informante, a prefeitura “entende como importância
principal [...] um pouco de controle, controle mesmo dos espaços, não gosto
mesmo dessa palavra né, mas ela é inevitável, que faz parte da organização”). Inserem-se
na dinâmica da feira as pessoas que lá trabalham para complementar ou gerar
renda; os habitantes da cidade e proximidades, que ganham mais uma opção de
lazer; os agentes do poder público, que representam um planejamento da cidade, este
combinado à pluralidade dos espaços vividos. Em tal dinâmica é possível
perceber a intencionalidade presente na concepção da feira, que buscou moldar
os espaços físicos (CARLOS, 2007; LEFEBVRE, 2006) da Praça dos Namorados.
Assim
como o poder público, o expositor também concebe a sua feira, a partir de significados relacionados ao seu local de
trabalho, ou ainda a uma oportunidade, mesmo que modesta, ambicionando ser dono
do próprio negócio. Dessa maneira, elabora para si estratégias de uso e
apropriação do seu espaço na feira. Também o passante tem sua própria concepção
da feira. São diferentes perspectivas que denotam a forma como os sujeitos
atribuem variados significados e representações aos usos dos espaços, que transcendem
a materialidade da cidade (FISCHER, 1997; IPIRANGA, 2010).
A
feira como espaço de trabalho, complementação e geração de renda, da maneira
como foi concebido pela PMV, pode ser reforçada no relato de muitos expositores
que contam histórias parecidas ao falar como foram parar ali. Durante a
pesquisa de campo, múltiplas narrativas de expositores foram captadas no
sentido de justificar sua presença na feira: o desemprego num dado momento da
vida, o desejo de recomeçar após um acidente limitante ou ainda o começo de uma
nova vida num país estrangeiro. Em comum, a vontade de trabalhar e a
necessidade de prover sustento para si e sua família.
Tais
trajetórias e estratégias (CERTEAU, 2014) desvendam uma elaboração intelectual
do espaço (LEFEBVRE, 2006), que, em contexto urbano, transforma-se a partir de
construções e reconstruções sociais por parte do poder público, trabalhadores e
população local. Tal planejamento procura atuar como organizador das atividades
numa espécie de orientador espacial, ou seja, em representações que buscam
definir pelo discurso os usos e apropriações do espaço (LEFEBVRE, 2006).
Ainda
que nem todos tenham planejado previamente tornar-se expositores na feira,
muitos deles se apropriaram de tal profissão, que, muitas vezes, mescla-se à de
artesão. Foi em busca de oportunidade que muitos expositores acabaram
encontrando na feira um meio de ganhar dinheiro e um espaço para trabalhar, ou,
como muitos gostam de dizer, de “mostrar o seu trabalho”. Para a maior parte dos
expositores que foram sujeitos desta pesquisa, o trabalho na feira é a única
fonte de renda; já para os outros, esta serve como uma complementação de
salário ou aposentadoria. O sentido de lugar de trabalho conferido à feira
remete aos significados e apropriações descritos por Fischer (1994), nas quais
os sujeitos tomam para si o espaço da feira, ressignificando a própria praça.
A
feira simboliza para esses trabalhadores o recomeço, a oportunidade de trabalho
e de oferecer aos seus uma forma de sustento. Contudo, os dados obtidos em
campo reforçam o argumento de Sousa (2000) ao discutir que a feira não
representa apenas um meio de constituir ganhos financeiros, mas a possibilidade
deste ser resultado de um trabalho prazeroso, praticado na relação direta entre
produtor e consumidor final sem o intermédio de atravessadores. Feirantes com
os quais a pesquisadora em campo teve contato elencaram diferentes
significações para o “ser dono do próprio negócio”: planejar, produzir e
vender, ter sua loja e administrá-la à sua maneira.
Constatamos, ainda, que, para os feirantes, não se trata
apenas de questões financeiras. De acordo com os pesquisados, estar na feira
envolve significações como explorar seu próprio potencial, oferecer a si a
oportunidade de trabalhar de maneira independente, no seu próprio ritmo e
naquilo que se sabe e aprecia fazer. Entretanto, isso não significa dizer que a
opção pela feira como meio de vida não implique trabalho árduo, como
expositores que relatam trabalhar mais de 14 horas por dia confeccionando os
produtos que comercializam na feira aos finais de semana. Para os expositores,
o espaço que ocupam na praça é sua loja e a barraca, sua vitrine. Por isso
mesmo, cada um tem seu jeito de arrumá-la, e muitos demonstram incômodo com
passantes que não mostram o mesmo cuidado pelos produtos ao tocá-los. Um rito
de montar e desmontar a loja a cada dia de trabalho, realizado com muito apreço
com o objetivo de “encher os olhos” dos passantes.
O
decreto que regulamenta o trabalho na feira prevê um mês de férias aos
expositores, contudo muitos afirmaram nunca ter se ausentado da feira por
muitos dias, pois “o segredo é não deixar de vir [à feira], como
se fosse uma loja, se não abrir você não vende” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/06/15).
Assim, há expositores que preferem manter a barraca aberta mesmo em seu período
de folga, por medo de perder o vínculo com a clientela, ou de permanecer por
longos períodos sem ganhos financeiros. É interessante destacar que o
entendimento da barraca como loja (significação que traz implícita uma noção de
perenidade) por parte dos expositores contrapõe-se à concepção da feira como um
trabalho temporário, que serviria de “trampolim” para a inserção no mercado de
trabalho ou início de uma carreira de empreendedor, algo que foi exposto pela
PMV em entrevistas, sinalizando concepções divergentes do espaço.
Esse
espaço enquanto local de trabalho, complementação e geração de renda, tal qual
concebido pela PMV, apresenta-se em uma organização estratégica de
compartilhamento do trabalho e do lazer, concepção que muitas vezes é alterada
pelas táticas expressas nas maneiras de fazer de seus sujeitos. Certeau (2014) aponta para uma estratégia que cria lugares
abstratos capazes de produzir, mapear, impor; enquanto às táticas não resta
outra opção a não ser utilizar, manipular e alterar esses lugares, pois, nas
palavras do autor, “a tática não tem por lugar senão o do outro” (CERTEAU,
2014, p. 94). Dessa forma, o que se vê é uma relação de forças na qual
estratégia e tática se articulam no detalhamento da vida cotidiana da feira. Um
equilíbrio simbólico que reafirma a apropriação do espaço urbano pela ação
humana nas diferentes paisagens (SANTOS, 2006), que viabiliza compreensões
entre a realidade material e as relações sociais, além de evidenciar
contradições nos movimentos e práticas sociais (CARLOS, 2007).
Dessa
maneira, o espaço da feira foi concebido para as representações de espaço,
aquelas relacionadas aos conhecimentos, signos e códigos (LEFEBVRE, 2006), o
que fica evidente nas narrativas evidenciadas pelo poder público, que concebem
a feira para determinados fins. Essa tipificação do espaço foi concebida pela
PMV e expositores como local de trabalho e geração de renda, que por vezes
conflita ou complementa a concepção da sociedade que vê a feira como espaço de
lazer (ainda que seja um lazer gratuito, caracterizado pelo passeio em um
espaço público). A PMV, quando reafirma a concepção da feira como espaço de
passagem para o expositor, que, em sua visão, deveria almejar outro tipo de
negócio futuro, ou quando prefere o termo “passante” ao invés de cliente ou
frequentador, contrapõe o espaço concebido da feira ao espaço vivido, que será
apresentado no próximo tópico, na medida em que ignoram o espaço praticado e
experienciado cotidianamente pelos sujeitos.
O
espaço vivido é o lugar da experimentação da vida humana (LEFEBVRE, 2006), e
por esse motivo não consegue ser estável, perene, não está preso ao tempo ou
espaço. Ao contrário, devido à interação do sujeito com o mundo, em sua
existência espacial, afloram ambiguidades, contradições e conflitos em seu
cotidiano (CERTEAU, 2014). Tal interação, dada por meio de práticas e
apropriações (CERTEAU, 2014), em dinâmicas que não são neutras (FISCHER, 1994),
mas sim reveladoras de poderes, interesses e visões de mundo.
Da
mesma forma que em outras formas organizativas, os conflitos estão presentes no
cotidiano da feira. Em certas situações, os embates se dão de maneira
explícita, como no descontentamento de expositores com a atuação da PMV, e, em
outras, de maneira velada, sobretudo quando relacionada às decisões que
envolvem a associação e o comitê gestor ou à atuação de concorrentes na feira.
Com
o passar dos dias de trabalho na feira, a pesquisadora em campo presenciou
diversas situações conflituosas entre os expositores, como o emblemático
episódio em que dois artesãos discutiram por divergências em relação a dez
centímetros no posicionamento de suas barracas. Um dos artesãos, ao deparar-se
com a recusa de movimentação por parte de sua vizinha de feira, por ter alegado
que seus clientes precisavam de espaço suficiente para admirar sua arte
confortavelmente, esbravejou: “Praça dos Namorados não é shopping não, não vai
ter tanta gente assim para ver a arte dela não!” (DIÁRIO DE CAMPO, 26/07/15).
Por outro lado, a atitude da expositora que se opôs à movimentação de sua
barraca demonstrou apego àquele espaço que considera seu. Em sua trajetória
pessoal, para além do “pedaço de chão compartilhado”, foi um grande desafio
sair do “pano” após 21 anos trabalhando na feira como visitante e conquistar o
direito de expor sua arte numa barraca, como tantos outros expositores.
Ademais,
o arranjo material da feira, assim como em outras organizações, atua de maneira
a expor relações de poder, estabelecidas nos espaços simbólicos de disputa, de forma
que o que está em jogo é, também, o espaço físico (FISCHER, 1994). Ficar no
caminho do público é interessante, contudo a valorização simbólica do espaço
físico ocorre em razão do espaço socialmente produzido, um espaço abstrato (LEFEBVRE, 2006) que não pode ser
compreendido de maneira objetiva, tampouco por sua utilidade ou funcionalidade.
Assim, ao analisar de forma isolada essa situação, não é possível interpretar a
atitude dos envolvidos, sendo necessária, como se viu, a compreensão das
trajetórias desses sujeitos.
Outra
questão interessante que aparece no discurso do expositor envolvido no conflito
foi a distinção que ele constrói da feira em relação ao shopping center, ressaltando a desigualdade entre as duas
realidades, na qual a primeira tende ao comércio mais popular, marcado pela
relação da cidade com sua diversidade cultural e social (MOTT, 2000; SATO,
2007). A segunda, em contrapartida, carrega consigo a noção do consumo em
massa, tanto de bens quanto de serviços. Dizer que “Praça dos Namorados não é shopping” pode ser compreendido como
declarar que não haveria público suficientemente grande ao redor de uma
barraca, que a impedisse de ser deslocada fisicamente, a ponto de afetar o
bem-estar dos possíveis clientes.
Mesclada
em contendas como essa, está também a insatisfação dos expositores que se
consideram artesãos com aqueles que trabalham com “fuleragem”,
como quando o expositor refere-se de forma jocosa à
arte de sua vizinha. Tal aspecto mostrou-se imiscuído em diversas situações de
conflito entre expositores, contexto em que emerge a disputa entre os artesãos
que consideram que estão perdendo espaço para os vendedores de fuleragem. Os expositores, independentemente de sua
classificação, são unânimes ao reconhecer que “a feira antes era bem diferente”,
atestando a mudança ocorrida ao longo dos anos, que trouxe os produtos chineses
para a praça. Considerando a tradição chinesa no comércio de cópias e
bugigangas, que suprem o desejo chinês de possuir bens estrangeiros, o próprio
sistema de produção e comércio do país que se encontra no limiar da
formalidade/legalidade e informalidade/ilegalidade, constrói-se um estatuto de
mercado que opta pelas cópias como alternativa na diminuição das importações.
Provenientes de uma produção altamente intensificada, esses produtos chegam a
todas as partes do mundo, inclusive ao Brasil. Com preços baixos, permitem a
formação de cadeias de distribuição e revenda, com possibilidade de ganhos para
todos os envolvidos (PINHEIRO-MACHADO,
2009).
Não
obstante, outro ponto de conflito, este unindo artesãos e vendedores de fuleragem, é a predominância dos quituteiros na preferência
do passante. O entendimento geral é que as pessoas vão à feira para comer e
acabam comprando alguma outra coisa. A pesquisadora teve a mesma percepção, ao
ver que, mesmo em dias de poucas vendas, as áreas de alimentação estavam sempre
lotadas. Entretanto, essa é a menor das disputas que cercam os vendedores de
alimentos, pois há conflitos advindos da própria concorrência entre eles. A
competição no espaço de preferência do passante se dá ao tentar copiar os
produtos que já são oferecidos por outro expositor, ao gritar em frente a sua
barraca, ou seja, ao tentar ser igual – primeira situação – deixando que o
freguês decida por sua própria conveniência o que mais lhe agrada. Ou, como no
segundo caso, ao buscar se diferenciar.
Em
ambas as situações, há hostilidade entre eles, que algumas vezes se camufla na
“política de boa vizinhança” adotada no cotidiano da feira em relações que
oscilam entre cooperação e competição, um fluxo de ações e significações em
constante variação. Essa incessante busca por delimitações simbólicas, ou
fronteiras espaciais, formam barreiras simbólicas que transformam e constroem a
feira cotidianamente (CERTEAU, 2014).
Assim,
os conflitos entre usos e apropriações de espaços na feira se mostram
situacionais e fragmentados, modificando-se num caleidoscópio que combina concepções
e práticas num arranjo diferente para cada situação. E é justamente por meio
dessa complexa combinação, que evidencia apropriações e usos de espaços por
vezes convergentes, por vezes divergentes em relação às diferentes concepções
de espaço circulantes na feira, que desvendamos a articulação que possibilita o
espaço vivido. Ao concebermos o espaço como experiência, possibilitamos o
desvendamento das práticas (CERTEAU, 2014) como elo que engendra espaço
concebido e vivido (LEFEBVRE, 2006), no entrecruzamento de espaços que forma a
feira.
Este
artigo teve por objetivo compreender a constituição do espaço organizacional da
feira nos entrecruzamentos dos usos que diferentes sujeitos elaboram para o
espaço urbano. Reiteramos,
portanto, a feira enquanto objeto de estudo rico e contributivo para os EO. No
caso de nosso estudo, possibilitou que evidenciássemos realidades espaciais que
permitiram desvendar significados, práticas e interesses que, compreendidos à
luz de perspectivas teóricas emergentes no campo, revestem os achados e as
análises aqui empreendidas de relevância, na medida em que é abordado o organizar
da feira como composto por práticas provisórias, que permitem sua existência
por meio das manifestações de poder, resistência e conflito emersas no
cotidiano dos sujeitos.
Esta
pesquisa, portanto, revela diferentes forças presentes no espaço da feira,
forças que atuam formando harmonias efêmeras, que coexistem num tênue
equilíbrio simbólico, através do qual evidenciamos os entrecruzamentos do
espaço concebido e vivido da feira. A feira, enquanto forma organizativa, surge
da justaposição de usos e apropriações de seus espaços, em uma dinâmica que
privilegia ora concepções de espaço elaboradas determinados sujeitos (como
representantes do poder público, por exemplo), ora concepções elaboradas por
outros (como expositores ou passantes). Nessa dinâmica, divergências simbólicas
sobre os usos do espaço da praça e o objetivo da feira são escamoteadas,
silenciadas ou resolvidas por práticas que asseguram as harmonias efêmeras.
Nesse
sentido, praça e feira se confundem e se misturam em termos de suas
materialidades e intencionalidades, no contexto de uma praça que permite a
existência da feira e de uma feira que confere sentido e vida à praça. Os dois
signos aparecem como interdependentes nas falas de campo e na própria vida de
seus sujeitos: trabalhadores, passantes, expositores e representantes do poder
público, apesar de suas diferentes concepções e vivências de espaço.
As
diferentes concepções se percebem, por exemplo, no antagonismo da noção da PMV,
ao declarar a feira como um espaço de trabalho temporário, enquanto para os
expositores esse é um trabalho para toda uma vida. Entrecruza-se o espaço
concebido pela PVM como temporário com o espaço vivido como permanente pelos
feirantes. Essa divergência de percepções enfraquece a ideia da feira como coesa
ou homogênea; dessa forma, o que se vê, em alguns momentos, são sujeitos que
atuam independentemente, muitas vezes perdendo força em suas revindicações, o que impacta também nas formas de
experienciar o espaço e de viver o trabalho. Essas diferentes visões de feira
fazem com que se acirrem os ânimos e deflagrem-se conflitos tanto entre
expositores – quituteiros, artesãos e fuleragem –
quanto entre eles e PMV.
Como
forma de resistência em relação às regras pré-estabelecidas, os sujeitos deste
estudo apropriam-se da praça e da feira cada qual a sua maneira, desafiando o
lugar próprio das estratégias estabelecidas. Entre os expositores, emergem
situações de descontentamento com o órgão de controle e a atuação daqueles que,
em sua visão, não os representam a contento, como o comitê gestor e a
associação. Assim, é no espaço vivido no qual as histórias individuais se
desenvolvem desafiando o concebido nas apropriações e usos do cotidiano.
A
feira da Praça dos Namorados e seus espaços construídos estão constantemente
sendo ressignificados a partir das estratégias e transgressões contínuas e
dinâmicas presentes nas práticas espaciais cotidianas dos sujeitos da pesquisa.
Transgressões estas que impelem o surgimento de novas estratégias e que por sua
vez demandam diferentes táticas, num contínuo do espaço vivido que se assemelha
a um jogo em constante transformação, numa não muito clara diferenciação entre
em planeja e quem vive a feira.
Ademais,
é no entrecruzamento de vivências do espaço que reside o casamento entre
estratégias e táticas, propiciando a apropriação por todos do espaço da praça.
Um lugar praticado em suas condições conflituosas, ambíguas e de proximidades
contratuais, por vezes instáveis, e que por conta disso, possibilita a produção
do espaço da feira. Essa instabilidade, presente nos diferentes espaços, é o
que torna o mundo humano complexo, desafiador e ao mesmo tempo impressionante,
permitindo uma profusão de interpretações, todas parciais e situacionais.
Por
fim, entendemos que, ao abordar o espaço enquanto experiência, nossa pesquisa contribui
claramente para o campo ao desvendar não apenas o entrecruzamento de concepções
e vivências do espaço, mas também o próprio processo de organizar enquanto
efêmero e imbricado nas práticas dos espaços. Contudo, é importante destacarmos
que este texto é um recorte de uma pesquisa maior, e, como tal, não representa
a totalidade dos dados produzidos. Por conta disso, assumimos que o foco da
pesquisa centrou-se nos sujeitos expositores da feira e nos representantes do
poder público, o que é uma limitação do estudo. Pouco aprofundamos neste texto
em termos das concepções e vivências dos espaços da feira pelos passantes, por
exemplo, que foram captadas ao longo da pesquisa e que, em respeito ao tamanho
máximo permitido ao texto, optamos por não trazer.
Além
disso, destacamos que ainda é possível avançar nas problematizações
desenvolvidas aqui, de forma a aprofundar o avanço teórico obtido com o estudo.
Estudos longitudinais, por exemplo, podem evidenciar a temporalidade das
dinâmicas organizacionais de apropriação dos espaços, discutindo os diferentes
arranjos e combinações ao longo do tempo. Outras possibilidades residem na
compreensão dessas dinâmicas espaciais em outros contextos organizacionais,
enfocando suas relações com os espaços urbanos, de forma a compreender as
relações simbólicas travadas no contexto das cidades brasileiras.
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[1] Optamos por trabalhar
apenas com as duas primeiras categorias de espaço por entendermos que os
embates que emergiram no campo revelarem-se em maior medida nas tensões entre o
concebido e o vivido na feira. Nesse sentido, preferimos não aprofundar neste
artigo a categoria do espaço percebido.
[2] “Fuleragem” é o termo utilizado
pelos próprios expositores quando se referem aos produtos comprados em mercados
populares de São Paulo e Belo Horizonte, que, em sua maioria, são provenientes
da China.