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ISSN - 2237-7840
ABORDAGEM DISCURSIVA DA AÇÃO PÚBLICA COMO FERRAMENTA PARA ANÁLISE DA
CONSTRUÇÃO DO PROBLEMA PÚBLICO
DISCURSIVE APPROACH TO PUBLIC ACTION AS A TOOL FOR ANALYSIS OF THE CONSTRUCTION
OF THE PUBLIC PROBLEM
Leandro de Carvalho 1
Resumo:
Com o propósito inicial de verificar como a crise de um setor econômico foi
transformada em problema público, a pesquisa aqui apresentada utilizou a
Abordagem Discursiva da Ação Pública para constatar que a indústria fonográfica
optou por produzir uma teia de argumentos que resgatava a memória discursiva
dos legisladores e da população para ter sucesso na inscrição de seu problema
na agenda pública. Após as análises foi possível verificar que o argumento central
de uma das redes de formulação deslocava os sentidos sobre a produção musical
para afirmar, no espaço legislativo, que aquele setor econômico deveria ser
entendido como o viabilizador do orgulho brasileiro, gravemente ameaçado pelo
avanço das práticas de pirataria.
Palavras-chave: problema público; ação pública; indústria fonográfica; discurso
Abstract:
With the initial purpose of verifying how the crisis of an economic sector was
transformed into a public problem, the research presented here used the
Discursive Approach of Public Action to verify that the music industry chose to
produce a web of arguments that rescued the discursive memory of the legislators
and the population to succeed in inscribing their problem on the public agenda.
After the analysis, it was possible to verify that the central argument of one of the
formulation networks displaced the senses on musical production to affirm in the
legislative space that this economic sector should be understood as the viabilizer
of Brazilian pride, seriously threatened by the advance of practices of piracy.
Keywords: Public Problem; Public Action; Phonographic Industry; Discourse
1 Doutor em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pelo Centro de Estudos Avançados
Multidisciplinares da Universidade de Brasília (2017) e doutor em Ciências da Informação pela Université Sorbonne -
Paris Nord. Mestrado em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009) e graduado em
Processos Gerenciais pelo Centro Universitário de Santo André (2004). Atua como professor/pesquisador e gerente de
projetos. Dedica-se a investigar temas como: desenvolvimento social; inserção produtiva e social de grupos em alta
vulnerabilidade social; exploração do trabalho infantil; trabalho decente; e sociologia da ação pública. E-mail:
professorleandrodecarvalho@gmail.com
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1. Introdução
Em 2007, o Congresso Brasileiro foi diretamente envolvido na crise comercial que abalava a indústria
fonográfica desde o início dos anos 2000, período em que foi popularizado o compartilhamento de músicas
entre usuários e representou queda expressiva no interesse pela compra dos suportes (CDs e DVDs) que
armazenavam músicas em formato digital. As organizações que representavam grandes empresas do setor
buscavam apoio do Estado para mitigar o declínio no volume de vendas após perceberem frustradas todas
as tentativas de criminalização do que nomeavam como “pirataria” e perceberem que a perseguição aos
usuários apenas piorava a imagem da indústria e os lançava ainda mais para os canais e meios de
compartilhamento.
Revisando suas estratégias, a nova aproximação com o Congresso Nacional não tinha como objetivo
pressionar por mais fiscalização e por punição dos compartilhadores de música em formato digital. Optaram
por investir esforços para inscrever o problema setorial como um problema público, demandando outros
instrumentos de ação governamental para o tratamento de sua questão.
Contando com o apoio e redação do deputado Otavio Leite, empenharam esforços para a construção e
aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visava conceder imunidade fiscal a toda
cadeia de produção musical, sob a justificativa de que os impostos correspondiam à maior parte dos preços
dos CDs/DVDs e, por isso, contribuíam para a continuidade da pirataria. Com isso, o texto-base apresentado
aos parlamentares reunia e organizava os diversos argumentos para defender que a causa para o declínio
de vendas seria a pirataria, provocada pelos preços altos dos produtos, que, por sua vez, derivavam dos
impostos recolhidos pelo Governo Federal e pelos Governos Estaduais. Diante de uma argumentação que
comunica de forma direta e simples os efeitos e que atribui causas, responsabilizando a carga tributária; o
que realmente despertou interesse para as análises descritas neste artigo foram os argumentos que
buscavam recolocar o modelo de negócios da indústria fonográfica, deslizando os sentidos sobre essa
produção ao ponto em que sua crise fosse percebida como um problema de interesse nacional, e público,
que deveria mobilizar o Congresso Nacional.
A análise aqui apresentada teve como foco a construção do discurso por entender que o que foi acordado
e reafirmado no Congresso Nacional não começou ali, isto é, a aprovação da PEC se fez a partir de bases
consideradas indiscutíveis, bem firmadas na memória discursiva, e elas precisavam ser investigadas para
que fossem melhores entendidos os momentos de tramitação no Congresso.
Entre a variedade de temas possíveis a partir das questões levantadas, a decisão foi por investigar como o
debate foi conduzido no Congresso e quais as condições para que prevalecessem os sentidos que
favoreciam o modelo de negócios das empresas. Era necessário entender quais condições possibilitaram
que a crise de um setor da economia – o setor fonográfico – fosse entendida como interesse geral, sendo
tratada como um problema público, que exigia atuação do Estado Brasileiro.
Como material básico para essa investigação, foi utilizado o texto que justifica a Proposta de Emenda
Constitucional. As audiências públicas também foram consideradas por este trabalho dada a sua
importância, pois a sociedade era convidada a debater o tema, o que oportunizava a propagação de diversas
vozes, evidenciando, em menor ou maior grau, os posicionamentos em disputa.
A Abordagem Discursiva da Ação Pública permitiu uma reflexão além-texto, isto é, pautada na premissa de
que as condições de produção dos discursos são essenciais para entender como estes afetam as decisões
e ações governamentais. Isso pode ser útil tanto para as questões que envolvem a construção da agenda
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de ação do Estado – que estão diretamente ligadas a esta pesquisa, quanto para outras questões
relacionadas à aceitação ou resistência a propostas, avaliação de programas e projetos, decisões sobre
adoção de instrumentos e seus impactos, entre outras. Isso reforça a relevância acadêmica deste trabalho,
cuja abordagem pode ser ampliada e/ou complementada por novos estudos que abarquem e permitam
entender melhor o tema em questão.
A próxima seção apresenta as opções teóricas desta pesquisa e as bases da Abordagem Discursiva da
Ação Pública que foi o suporte teórico para refletir a construção da ação pública a partir da percepção das
articulações discursivas necessárias para promover, como no caso deste trabalho, que uma crise setorial
se transformasse em um problema público que mobilizou o Estado Brasileiro. Em seguida são apresentados
os pontos principais do estudo desenvolvido para essa temática. Por fim, a terceira e última seção remonta
a questão principal do artigo e sugere uma resposta, apontando possibilidades de continuar a trajetória desta
pesquisa.
2. A Abordagem Discursiva da Ação Pública
O cotidiano da gestão pública apresenta questões que vão além do que os dados quantitativos e os
indicadores podem oferecer como respostas. A implementação de projetos nos surpreende a cada nova
ação, justamente porque não estamos lidando com sujeitos estáticos, que respondem do mesmo modo a
incentivos. São pessoas atravessadas pela história, que interagem na produção e disputa de sentidos sobre
um trabalho realizado, e, mais do que ter opiniões passíveis de quantificação, constroem processos de
interpretação dos fatos, dos problemas públicos e das soluções, pois estão neles inseridas como sujeitos
ativos. Na tentativa de captar e melhor compreender esse funcionamento, a Abordagem Discursiva da Ação
Pública alia duas construções teóricas entendidas como complementares e capazes de oferecer, quando
em conjunto, uma alternativa de abordagem que inclui questões discursivas nas análises da ação pública:
a Sociologia da Ação Pública, proposta por Lascoumes e Le Galès e a compreensão da linguagem e os
métodos de pesquisa da Análise de Discurso Francesa, na concepção de Pêcheux.
2.1 O Estado e a rede atores: Sociologia da Ação Pública
A Sociologia da Ação Pública, na concepção apresentada por Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès (2007,
2010, 2012), busca, por um lado, desmistificar a noção de voluntarismo político e de um Estado homogêneo
e imparcial; e, por outro, propõe a investigação de “os atores inesperados, os processos caóticos e as
consequências imprevistas”, ao longo da condução das ações públicas. Tal mudança de foco se baseia na
ideia de que “as políticas públicas são influenciadas por grupos de pressão que defendem seus interesses
(materiais e/ou simbólicos) diante das burocracias (por exemplo, grandes órgãos estatais, sindicatos,
ministérios, agências etc.)” e que, por isso, os pontos mais importantes das análises são “as interações entre
os indivíduos, os inter-relacionamentos, os mecanismos de coordenação, a formação de grupos, as regras
do jogo, os conflitos” (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 48).
Para além de um campo de aplicação de variadas técnicas administrativas, ou do espaço de heróis e do
voluntarismo, a política pública passa a ser pensada com “um vasto espaço de negociação que envolve uma
grande diversidade de atores privados e públicos” (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 66). Admite-se,
então, que todos os processos são políticos. Entre eles, estão as pressões para reordenar as prioridades
dos problemas públicos, as disputas pelos recursos e os modelos de avaliação, o entendimento das
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influências dos instrumentos de gestão/avaliação, a percepção sobre a solução do problema e a
consequente finalização da questão. Por conta dessa percepção, serão rejeitadas as concepções que
acreditam em posicionamentos neutros, tanto do Estado quanto dos atores; tanto dos técnicos quanto dos
instrumentos adotados.
Lascoumes e Le Galès (2012, p. 98) afirmam que a “ação pública é uma prática de poder, indissociável das
questões de dominação e de resistência, bem como dos desafios de legitimidade dos gestores públicos”.
Se não for entendida dessa forma, corre-se o risco de incorrer na “concepção pragmática de análise das
políticas públicas (que, geralmente, é praticada nos órgãos de decisões administrativas)” e, portanto, em
uma concepção que “só se debruça sobre as questões técnicas de organização, de autoridade e de
resultados” e que “descarta a dimensão essencial das relações de poder”.
Por conta disso, a Sociologia da Ação Pública dá maior atenção às relações de poder que se estabelecem
antes, durante e depois da concretização da ação. Mais do que recusar a visão racional, ela considera,
como parte do processo, os conflitos e as disputas de sentido nos ambientes de formulação, de
implementação e de avaliação. Essa é, certamente, a grande contribuição da Sociologia da Ação Pública:
incluir no foco de pesquisa as dimensões da representação e da disputa de sentidos, ocorridas nos
processos políticos, mas que são ignoradas ou equivocadamente entendidas como sendo apenas questões
de gestão.
As dimensões mencionadas, relacionadas à formulação do problema público são as que mais interessam a
esta pesquisa, cujo objetivo é discriminar os processos que levam o problema de uma indústria a ser
considerado como uma questão de ordem nacional, exigindo alteração na Constituição Federal.
Para a reflexão sobre os problemas públicos, a Sociologia da Ação Pública, no recorte proposto por
Lascoumes e Le Galès, “se interessa de forma sociocognitiva pela maneira através da qual os fatos sociais
se tornam problemas públicos, evidenciando as categorizações” e também se dedica a entender a
“transformação dos problemas públicos em problemas políticos, sob a ótica das pressões específicas sobre
a definição política” e, por consequência, se interessa pela “definição da agenda, estudando os processos
que antecedem as decisões” (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 140).
Na visão de Lascoumes e Le Galès (2012, pp. 144-145), “o problema só se torna público, quando os atores
mobilizados conseguem inscrevê-lo no espaço público, isto é, quando se torna objeto de atenção, de
controvérsias, e que as posições se confrontam para caracterizar seus componentes, amplitudes e causas”.
Sendo assim, um problema se torna público “a partir do momento em que a solução almejada só pode ser
dada pelo poder público” e “quando a autoridade estatal se apropria de determinado desafio e o inscreve
em sua agenda de ação”.
A construção de um problema público pode ser definida como o processo em que um
conjunto de atores privados e públicos interage com o objetivo de impor a representação
de determinado desafio, a interpretação que lhe é dada, assim como influenciar a direção
e os meios de ação a serem desenvolvidos. (...) Construir socialmente um problema público
significa, ao mesmo tempo, nomear para definir, qualificar para torná-lo tangível e suscitar
uma mobilização de atores que se transformam em interlocutores da causa (LASCOUMES;
LE GALÈS, 2012, p. 154).
O olhar deste trabalho está voltado ao discurso que nomeia, categoriza, define, qualifica e suscita
mobilização, por entender que “não é suficiente constatar uma defasagem entre uma situação de fato e um
estado esperado, (...) o essencial se situa na interpretação que lhe é dada”, mais precisamente nas
“atribuições de causalidade”, nas “imputações de responsabilidade”, na “identificação dos atores”, nas
“configurações de ação”, no “levantamento dos prejuízos” e na “proposição de soluções” (LASCOUMES; LE
GALÈS, 2012, pp. 159-160).
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A Abordagem Discursiva da Ação Pública pode nos ajudar a perceber e analisar o processo de concepção
do problema público, recusando a forma linear e matematizada de sua construção por entender que “os
grupos não agem apenas em função das oportunidades e condicionantes da ação, mas, sobretudo, com
base em interpretações móveis dos fatos, nas reações suscitadas por sua mobilização e nos efeitos sobre
sua própria identidade coletiva”, lembrando que “um fato social só se torna problema público através da
categorização que lhe é atribuída” (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 157).
Será diante das “interpretações móveis dos fatos” que o debate e a investigação da Abordagem Discursiva
se deterá. Se nas abordagens gerencialistas ou racionalistas os atores são entendidos como variáveis
constantes, que possibilitam projeções matemáticas de seus comportamentos; na abordagem discursiva, a
ação e o resultado sempre podem ser interpretados, (re)construídos, tornando-se outros, diferentes
daqueles antes conhecidos. A fim de trabalhar essa compreensão, serão fundamentais as concepções sobre
a linguagem e os procedimentos de trabalho da corrente teórica da Análise de Discurso Francesa,
apresentados a seguir.
2.2. Análise de Discurso Francesa
A opção por uma Abordagem Discursiva da Ação Pública se desdobra em escolher entre as concepções de
discurso e de análise de discurso. Este trabalho optou pela concepção de Análise de Discurso inaugurada
por Pêcheux, em 1969, e comumente denominada Análise de Discurso Francesa (AD). Além das diretrizes
oferecidas por Pêcheux, foram incluídas as conceituações de pesquisadoras brasileiras, seguidoras dessa
vertente teórica, com destaque para Orlandi, Mariani e Labrea.
A AD direciona o olhar para que a construção discursiva, em sua historicidade e subjetividade, seja
entendida como um objeto de pesquisa. Ela é, dessa forma, antes de tudo, um “modo de reflexão sobre a
linguagem”, uma ontologia e uma epistemologia que “remetem o pesquisador para uma leitura interpretativa
do seu arquivo” (MARIANI, 1996, p. 59). A partir desse direcionamento, o analista vai trabalhar sob o olhar
da AD, articulando interpretações, de modo a compreender melhor a questão que se propôs a investigar.
Essa associação é bem-sucedida porque, entre os pressupostos da AD, está a atuação interdisciplinar, que
conjuga os entendimentos sobre a linguagem e seus efeitos com as concepções teóricas específicas do
campo científico em que o trabalho está inserido.
O discurso para a AD
Eni Orlandi (2005, p. 15) ensina que o discurso faz a mediação entre o homem e a realidade natural e social,
tornando “possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive”. Segundo Labrea (2009, p. 23), “o discurso é onde podemos
observar o homem falando e capturando sentidos em sua trajetória”. Na conceituação de Maria Gregolin
(1995, p. 17), ele pode ser entendido como “um suporte abstrato que sustenta os vários textos [escritos ou
falados] que circulam em uma sociedade”.
Não há texto, não há discurso, que não esteja em relação com outros, que não forme um
intrincado nó de discursividade. (...) O leitor que conhece o que é discurso deve atravessá-
los para, atrás da linearidade do texto (seja oral, seja escrito), deslinhando o novelo
produzido por esses efeitos, encontrar o modo como se organizam os sentidos (ORLANDI,
2005, p. 89).
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Compreender a construção do discurso seria o mesmo que “verificar a ligação entre as relações de força e
as relações de sentido”, que se manifestam numa dada situação (NARVAZ; NARDI; MORALES, 2006, p.12).
Dessa forma, quando a palavra “discurso” é utilizada, a intenção é tratar para além do momento de
pronunciamento, compreendendo como os sentidos se formam. O discurso não é, então, uma simples
transmissão de informação.
Diante dessa concepção, a AD “se propõe construir escutas que permitam levar em conta esses efeitos e
explicitar a relação com esse “saber”, que não se aprende, não se ensina, mas que produz seus efeitos”
(ORLANDI, 2005, p. 34). Segundo Labrea (2014, p. 56), “a AD busca compreender como os sentidos são
produzidos, qual sua relação com o simbólico e com o político e como a ideologia se materializa na língua,
quais as marcas e as pistas que o trabalho da ideologia deixa em um texto”.
A Análise de Discurso se propõe a compreender como um objeto simbólico produz sentidos, e como ele
está investido de significância para e por sujeitos. Desse ponto de vista, este trabalho entende que o
“sentido” é “uma relação determinada do sujeito com a história”, afetado pela língua, e que “não há discurso
sem sujeito” (ORLANDI, 2005, p. 47).
A AD entende que sujeito e objeto interagem para produzir significados particulares. Não há, dessa forma,
separação entre o sujeito que conhece e a realidade a ser investigada, mas uma relação de
interdependência e de resgate da subjetividade, pelo pesquisador-analista, do discurso no processo de
conhecimento (NARVAZ; NARDI; MORALES, 2006, p.15).
Significar, do ponto de vista da AD, é produzir sentidos. O processo de significação não está nas coisas,
nem na intenção dos sujeitos que falam, tampouco nas convenções que regulam os dizeres. Mariani (1996,
p. 27) defende que “significar, ou produzir sentidos, está na ordem do discurso, que é distinta da ordem da
língua, mas que a supõe como base”.
Trata-se de um processo que tem sua materialidade na ordem do discurso ao conjugar
posições enunciativas e história, ambas inseparavelmente em movimento. E mais, tal
movimento resulta da tensão entre o mesmo e o diferente, tensão que coloca a linguagem
em funcionamento no processo de produção de sentidos. É um processo que envolve, para
além das formas de produção de sentidos nas relações sociais imediatas, os sentidos
anteriores, os conflitos existentes e o futuro do processo significativo (MARIANI, 1996, p.
27).
É no âmbito da relação entre linguagem e história que a existência das coisas se constitui, ou seja, “os
sentidos só se produzem porque são históricos, língua e história são processos inseparáveis” (MARIANI,
1996, p. 27-28).
Condições de produção
Ao estudar o discurso é essencial primeiramente investigar as condições de produção que o tornaram
possível. Para tanto, deve-se considerar o contexto imediato e, mais amplamente, o contexto sócio-histórico,
questionando como eles se fazem valer nas memórias discursivas. Teorias e fatos históricos precisam,
portanto, ser articulados pelo fio e pelas marcas do discurso, a fim de encontrar pistas de como ele se
organizou e assumiu um lugar privilegiado como “já-dito”. Investigando as “relações de sentido e de forças,
através dos vestígios que deixam no fio do discurso”, pode-se entender “como se diz”, “quem diz” e “em que
circunstâncias” (ORLANDI, 2005, p. 64). Vale ressaltar que “a interpretação é necessariamente regulada
em suas possibilidades, em suas condições. Ela não é mero gesto de decodificação, de apreensão do
sentido” (ORLANDI, 2005, p. 47). As condições de produção são, então, o “pano de fundo dos discursos”
(NARVAZ; NARDI; MORALES, 2006, p. 06).
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Para explicar a necessidade de analise das condições de produção, Pêcheux (1997 [1969], p. 76) sugere
como exemplo a atuação de um deputado: participar do governo ou de um partido de oposição faz com que
ele esteja situado no interior de uma relação de forças, logo “o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia
não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma terrível
ou uma comedia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa” (PÊCHEUX, 1997 [1969],
p. 76).
As condições de produção “fazem parte da exterioridade linguística” e “são responsáveis pelo
estabelecimento das relações de força no interior do discurso e, junto com a linguagem, constituem o sentido
do texto”. Dessa forma é essencial que sejam analisadas “as condições de produção dos discursos e os
mecanismos de restrição e de produção dos enunciados e dos discursos que podem e devem (ou não) ser
ditos em cada tempo e em cada espaço social a partir da ideologia dominante” (NARVAZ; NARDI;
MORALES, 2006, p. 13).
Para Labrea (2014, p. 56), “as condições de produção mostram a conjuntura em que um discurso é
produzido, bem como suas contradições”. E nos ajudam a perceber os “lugares determinados na estrutura
de uma formação social”, para, então, entender que “as relações de força entre esses lugares sociais
encontram-se representadas no discurso por uma série de formações imaginárias que designam o lugar que
o destinador e o destinatário atribuem a si e ao outro, construindo desse modo o imaginário social”.
Posição-sujeito
O sujeito, na AD, é entendido como uma construção polifônica, lugar de significação historicamente
constituído. “Nem totalmente livre, nem totalmente assujeitado” trata-se de uma constituição da
subjetividade que não consegue escapar das contradições, é um sujeito “tensionado entre a incompletude
e o desejo de ser completo; cindido entre a dispersão de sua subjetividade e a vocação totalizante do sujeito-
locutor em busca da unidade e coerência de seu texto” (NARVAZ; NARDI; MORALES, 2006 p. 04).
Labrea (2009, p. 31) argumenta que o sujeito cria “uma realidade discursiva ilusória” e “se coloca como fonte
e origem exclusiva do sentido do seu discurso”. Por conta disso, o sujeito na AD é entendido como aquele
que “esquece que seu conhecimento vem de outro lugar” e que “pensa que é a fonte do seu dizer”. Na
mesma direção, Mariani (1996, p. 35) defende que não se trata de um sujeito que tem “total acesso” e
“domínio sobre o que diz”; a melhor designação encontrada para sua condição foi “posição-sujeito”, que faz
referência a um lugar, um posicionamento, um sujeito “afetado pela memória e pelos discursos (em sua
natureza institucional ou não)” e que “enuncia de posições que são relativas a outras na ordem do social”.
Pêcheux, Henry, Haroche (2008, p. 05) afirmam que, “se considerarmos, por exemplo, o domínio da política
e da produção científica, constataremos que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições
determinadas por aqueles que as empregam”. Na visão dos autores “não se trata apenas da natureza das
palavras empregadas, mas também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se combinam,
na medida em que determinam a significação que tomam essas palavras: as palavras mudam de sentido
segundo as posições ocupadas por aqueles que as empregam (PÊCHEUX; HENRY; HAROCHE, 2008, p.
26).
Efeitos de sentido e a memória discursiva
Ao reunir as noções de condição de produção e posição-sujeito, podemos concluir que o sentido é uma
construção: “ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas
está sempre em curso, é movente e se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a
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necessidade de se falar em efeitos de sentido” (NARVAZ; NARDI; MORALES, 2006, p. 06). Além de ser
construído, segundo Labrea (2014, p. 55), “o sentido sempre pode ser outro, dependendo do lugar social
em que os interlocutores se inscrevem”, de modo que “todos os sentidos são possíveis e, em certas
condições de produção, há a dominância de um deles”. Para a autora, “é no uso, no dia a dia, na vida, que
as palavras adquirem seus sentidos, e eles são provisórios, flutuantes, sempre dispostos a se transformarem
em algo não previsto” (LABREA, 2014, p. 49). E o sentido dominante será (poderá ser) institucionalizado
como a versão literal da história produzindo a memória discursiva compartilhada entre determinado grupo
de pessoas.
No processo de produção de efeitos de sentidos, recorremos aos discursos conhecidos e autorizados por
nossa posição-sujeito, de modo a compreender e argumentar sobre o mundo que nos cerca. Se tivermos
como certo que a produção do discurso é histórica, e uma construção que não se inicia em nós, mas ao
longo das diversas interações humanas, veremos a importância de entender como os sentidos se perpetuam
na história. Esse é o papel da memória, mais especificamente da memória discursiva. Para que seja
entendida a discussão deste trabalho, este é um dos conceitos mais importantes, já que ele será utilizado
na tentativa de apontar evidências para demonstrar que o discurso sobre a música não é único.
Conforme aponta Mariani, “a memória é não-linear, lacunar, mas seu efeito é apresentar sentidos que se
querem unívocos e estabilizados no fio do discurso”, mesmo sendo parte de “uma rede de significância,
tecida de ambiguidades, de repetições, de equívocos, conflitos, etc.” (MARIANI, 1996, p. 43). Para Orlandi,
a memória é entendida como memória discursiva: que “fala antes, em outro lugar, independentemente”. Por
meio dela, constrói-se em quem fala a noção de “já-dito” e, assim, são disponibilizados “dizeres que afetam
o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”, determinando aquilo que é relevante
para a discursividade, a partir da situação e/ou das condições de produção (ORLANDI, 2005, p. 31).
Segundo a autora, a memória discursiva “sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já feitas,
mas esquecidas, e que vão construindo uma história de sentidos. É sobre essa memória, de que não
detemos o controle, que nossos sentidos se constroem, dando-nos a impressão de sabermos do que
estamos falando” (ORLANDI, 2005, p. 54).
A memória pode ser entendida como um “reservatório de sentidos” que permite ao sujeito, nessa relação
“do sujeito com o dizível”, que acredite ser “a origem e fonte do dizer” (MARIANI, 1996, p. 33). Mariani
defende que o processo de naturalização acontece depois de uma “disputa de interpretações para os
acontecimentos presentes ou já ocorridos”, cujo resultado é “a predominância de uma das interpretações e
um (às vezes aparente) esquecimento das demais”. Então, “naturaliza-se, assim, um sentido comum à
sociedade, ou, em outras palavras, mantém-se imaginariamente o fio de uma lógica narrativa” (MARIANI,
1996, p. 35). No entanto, “tal linearidade, embora se projete imaginariamente como despida de contradições,
é constituída por lacunas – as interpretações silenciadas”, evidenciando o risco de que “pesquisas que
somente buscam a linearidade já estão, nesta perspectiva, sob o efeito do imaginário” (MARIANI, 1996, pp.
35-36).
Observado desta forma, o papel da memória é compatível com a atuação da chamada
memória histórica oficial, sempre efetuando gestos de exclusão a tudo que possa escapar
ao exercício do poder e sempre preservando a nostalgia de um passado bom e verdadeiro.
Ou, ao contrário, a lembrança de um passado longínquo e ruim pode encontrar-se superada
pela memória de um outro passado mais recente e melhor, infância provável de um futuro
promissor. Para a memória oficial se impor é necessário o esquecimento, mas,
paradoxalmente, também é necessário esquecer para o surgimento de outros sentidos
(MARIANI, 1996, p. 36).
Pêcheux (1997 [1969], p. 76) oferece uma explicação para a estratégia de uso da memória discursiva: “o
processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao
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qual ele atribui o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi
objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado,
com as 'deformações' que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido”.
3. A transformação do problema setorial em problema público: “Em defesa da Cultura Nacional”
3.1 Procedimentos de trabalho
Esta subseção tem como finalidade apresentar a organização do material de pesquisa e os principais pontos
da análise.
Para auxiliar a organização do material de pesquisa, foi classificado por Redes de Formulação (RF), uma
vez que o texto impresso na PEC foi construído a partir de influências externas ao movimento legislativo,
iniciado oficialmente em 2007. Após a análise prévia do texto da PEC, foram definidas quatro redes de
formulação (RF), que direcionaram a investigação e a compilação de outros enunciados, antes dispersos
em textos jornalísticos, institucionais e em relatórios de pesquisa. As quatro redes de formulação foram
nomeadas da seguinte maneira: RF1 – crise que ameaça um orgulho nacional; RF2 – crise que se relaciona
com o nível de renda do consumidor; RF3 – crise sem precedentes, mas que pode ser revertida; e RF4 –
crise que causa prejuízo, principalmente aos artistas.
A partir dessa primeira etapa de classificação, os trechos da PEC e as transcrições das audiências foram
relidos e classificados pelos mesmos critérios. Após esse procedimento foi possível visualizar e
compreender como os argumentos impressos na PEC foram resgatados, parafraseados e reforçados nos
momentos de discussão.
Por conta do espaço para este artigo, optou-se por apresentar apenas a Rede de Formulação 1 – a crise
que ameaça um orgulho nacional. Foi decidido também não ocupar o espaço com a apresentação
sistematizada de cada marca discursiva por se tratar de um arquivo extenso – a análise discursiva já
garantirá ao leitar a plena compreensão de como se deram as relações entre os diversos textos.
3.2 “Em defesa da cultura nacional”: a associação direta entre o “orgulho nacional” e a indústria
fonográfica
Em suas primeiras palavras, o texto que justifica a Proposta de Emenda Constitucional traz a seguinte
redação:
A presente proposta de emenda à constituição é, antes de tudo, um brado em defesa da
cultura nacional (BRASIL, 2007, p. 03).
Tal frase sintetiza como foi compreendida a relação entre o mercado e a cultura musical brasileira. Por essa
visão, trazer o debate sobre a crise de um modelo de negócios para o âmbito da Constituição Federal era o
mesmo que atuar “em defesa da cultura nacional”. A disputa de sentidos naquele debate tinha como objetivo
fazer prevalecer uma das visões possíveis sobre a abrangência da crise da música.
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Quando a proposta registra que todo o esforço desempenhado ali é “em defesa da cultura nacional”, deixam
de ser priorizados os debates sobre as dimensões da crise e sobre quem é afetado e, por consequência, o
modelo de negócios se confunde com toda a cultura musical brasileira.
Essa percepção ficou impressa na Proposta de Emenda Constitucional e foi reforçada ao longo das
audiências públicas. Para associar as empresas do setor à totalidade da produção musical brasileira,
recorrentemente argumentou-se com base no orgulho que o brasileiro tem de sua música e na possibilidade
de música e músico deixarem de existir, caso o Estado não tomasse medidas para proteger as empresas
do setor, aprovando a PEC.
A primeira referência a isso veio de Carlos de Andrade, representante da Associação Brasileira de Música
Independente (ABMI), na primeira audiência pública realizada em 23/03/2008, ao relatar que uma pesquisa
daquele ano avaliou o motivo de maior orgulho do brasileiro:
62% dos entrevistados disseram música e 45%, futebol. Vejam: o Brasil é o país do futebol
ou da música? Eu acho que o próprio povo elegeu a sua identidade nesta hora (BRASIL,
2008a, p. 03).
Essa argumentação buscou transcender o debate e apresentar o problema como interesse nacional,
transformando-o numa questão que envolve o orgulho do povo brasileiro. A partir dessas entrevistas, Carlos
Andrade tentou atribuir maior impacto à decisão que os deputados tomariam ao final do processo de
tramitação. Em outros momentos de fala, o representante da ABMI qualifica a crise no setor e usa
argumentos mais afetivos para sensibilizar os deputados que votariam a proposta:
Eu acho que todos vocês têm acompanhado pela imprensa uma derrocada
gigante desse nosso setor por conta de uma prática infame, que é a pirataria, e
das novas tecnologias da era digital, que transmutaram o perfil da nossa indústria
– indústria essa que, até então, tem sido a única indústria autossustentável do
País na área de cultura (BRASIL, 2008a, p. 03).
Nós precisamos urgentemente de mecanismos que nos permitam combater, e
fazer com que essa indústria tão bonita, e que mora no coração e no orgulho de
todos nós, possa subsistir pelas próximas décadas (BRASIL, 2008a, p. 04).
Quando menciona “possa subsistir pelas próximas décadas”, Andrade sugere a ligação direta entre o fim do
modelo de negócios da indústria fonográfica e o fim da música brasileira. De acordo com ele, o tema em
debate deveria ser considerado urgente porque não havia condição de subsistência da música fora do
mercado que lucra com a venda de cópias, fazendo com que esse apelo tivesse ressonância em outras
falas.
Para reforçar a associação entre a indústria fonográfica e a continuidade da produção musical no Brasil,
Marcos Jucá, da Associação dos Editores Reunidos (AER), recorreu a uma analogia que comparou a
extinção de baleias à extinção da música:
Hoje, durante o almoço, falava que há alguns anos participei de luta ecológica pela
preservação e fim da caça às baleias, ocasião em que um americano disse a seguinte frase
célebre: vocês sabem quando vão parar a caça das baleias? Quando não tiver mais baleias
para caçar. Eu dizia há pouco o seguinte: V. Exas sabem quando vão acabar com a
pirataria? Quando não tiver mais músicas para piratear (BRASIL, 2008a, p. 10).
A pirataria, certamente, ameaça o modelo de negócios que se baseia na cópia, mas, na fala de Jucá, ela
pode ter efeitos muito maiores que a crise de um setor econômico, teria como impacto acabar com a
produção de música no país. Sua fala também evoca urgência para questão, que não pode ser ignorada,
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tendo a mesma gravidade que a extinção das baleias. Na visão de Jucá, a única alternativa para evitar a
extinção da música seria estimular o mercado fonográfico.
Como se percebe, os dois representantes das empresas do setor fonográfico preferiram associar o modelo
de negócios à totalidade da produção musical. Falam a partir de sua condição profissional no negócio em
questão, mas seus argumentos se deslocam para a cultura nacional, fazendo entre elas uma associação
direta. Ou seja, apesar de evidentemente representarem interesses específicos, ali se apresentam como
defensores da cultura nacional e se pronunciam a partir dessa posição.
As posições, no entanto, misturam-se, pois tanto os representantes empresariais quanto os artistas
defendem as mesmas relações entre modelo de negócios e cultura nacional. A cantora Sandra de Sá, por
exemplo, assumiu o mesmo argumento, projetando uma situação também calamitosa para a produção
musical fora do modelo de negócios da indústria fonográfica:
Nós, de certa forma, sustentamos isso tudo e não temos subsídio nenhum; nós não temos
apoio nenhum. A nossa cultura, digamos assim, musical está sendo deteriorada nisso tudo
(BRASIL, 2008a, p. 06).
Concordando com as falas dos representantes das empresas do setor, a cantora igualmente demonstrou
entender que o fim do modelo de negócio repercutiria no fim da música no país. Destaca-se o uso do termo
“deteriorada”, associado à expressão “nossa cultura musical”, argumento reforçado mais adiante, na mesma
oportunidade de participação:
A nossa música vai acabar, porque não temos mais como fazer música. Como as
gravadoras estão acabando, nós estamos procurando esses meios independentes. Mas até
quando, também, esses meios independentes vão se sustentar? Até quando? Se as
grandes gravadoras, os grandes meios estão acabando. Temos que pensar nisso: até
quando? Então, o que vai acontecer? Vai todo mundo sair do país, porque inclusive lá fora
somos reconhecidos, temos estímulo, ajuda, e aqui isso não acontece. Eu acho que as
pessoas têm que colocar isso na cabeça, têm que pensar mais nisso, e vamos nos ajudar
(BRASIL, 2008a, p. 06).
Assumindo o argumento discursivo que associa o mercado como a origem e a razão da música no Brasil,
Sandra de Sá reforça a defesa de que a música acabaria, caso acabasse o mercado que lucra com as
cópias de suportes. Nessas falas, não há distinção entre o mercado que lucra com a música e a produção
musical. Em seu momento de fala, Sandra de Sá se mostra convencida de que o fim das “grandes
gravadoras” e dos “grandes meios” vai extinguir a produção musical no país. Por conta dessa convicção,
ela tenta compartilhar a sua visão com o auditório, aproveitando que a memória discursiva dos presentes
validou o pronunciamento, já que, até aqueles anos, boa parte do que foi conhecido como produção musical
foi fruto de empresas que investiram recursos para comercializar, em grandes volumes, os artistas que
estavam em seu catálogo.
Não se trata, porém, de uma falácia, pois realmente houve o investimento; a questão que está colocada
aqui é a especulação feita diante da possibilidade desse modelo de negócio deixar de ser viável, isto é, se
não houver o retorno financeiro por meio da cópia, não haverá investidores dispostos ao risco e, por
conseguinte, sem esses investidores, a música brasileira acaba. A música é, portanto, reduzida e
condicionada ao mercado fonográfico.
Categorizar e quantificar faz parte das estratégias para formação do problema público. Os participantes
atuam como defensores do modelo de negócios da indústria fonográfica e categorizam a crise no setor como
ameaça e prejuízo incalculável para a cultura nacional. Um exemplo dessa construção é a fala de Andrade,
durante a audiência:
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(...) é hecatombe, sim, porque estamos falando de um prejuízo muito grande a um valor
cultural brasileiro, patrimônio da Nação (BRASIL, 2008a, p. 17).
Novamente, a argumentação reforça que não se trata apenas de empresas ou de trabalhadores associados
a investidores de um determinado setor que veem seu modelo de negócios em risco. Segundo Andrade, a
PEC discute, além de qualquer outra coisa, a “arte principal deste País” e “um prejuízo muito grande a um
valor cultural brasileiro, patrimônio da Nação”. Essa ênfase é fundamental para que o tema não seja relegado
às discussões menores. Da forma como foi apresentado, não seria discutida apenas a tributação, mas sim
formas para defender a cultura nacional.
As falas dos especialistas convidados tiveram eco durante o pronunciamento do Deputado Marcos Montes,
integrante da Comissão Especial, que votaria a adequação da PEC e seu envio (ou não) ao plenário, onde
todos os deputados votariam:
Precisamos, realmente, acertarmos um caminho. Conforme disse a nossa querida Sandra
de Sá, figura maiúscula da música brasileira: não podemos chegar ao final dela. Com a
música brasileira não pode acontecer como acontece com a caça às baleias. Temos
realmente que dar uma parada e repensar a questão (BRASIL, 2008a, p. 11).
Imaginem o Brasil sem a música brasileira. Imaginem como vamos lidar com os nossos
filhos e com as pessoas com que convivemos, como vamos fazer até política. (BRASIL,
2008a, p. 12)
A rede de formulações que iniciou a argumentação no texto da PEC e continuou durante os espaços de
interlocução conduziram a argumentação do deputado Montes, que repete trechos ditos pelos convidados,
reforçando que já partilha da mesma compreensão sobre o tema, assumindo que a música brasileira pode
acabar e que o mercado fonográfico é a origem e a razão da existência da música no país.
Na sessão seguinte (01/04/2008), o Deputado Otavio Leite, autor da Proposta de Emenda Constitucional,
resume como foi compreendido o argumento que relaciona diretamente o mercado fonográfico e a defesa
da cultura nacional:
Acredito que todos concordam que é merecedora de um tratamento diferenciado a música
brasileira, no âmbito da estatura constitucional, para que possa produzir algum efeito. Do
contrário, qualquer projeto de isenção aqui, acolá, teria, primeiro, uma tramitação muito
mais complicada; segundo, um resultado, certamente, menos eficaz. Então, o pressuposto
é o de tratarmos de algo da dimensão do patrimônio brasileiro, da cultura nacional. Primeiro,
é preciso compreender que essa é uma proposta que tem a intenção também de criar um
instrumento de combate à pirataria – apenas um instrumento, porque ela em si é uma
questão de Polícia, de ação do Poder Executivo, da Receita Federal, da Delegacia Federal
e de outros (BRASIL, 2008b, p. 023).
Ele argumenta que “algo da dimensão do patrimônio brasileiro, da cultura nacional” merece tratamento
diferenciado, além de “qualquer projeto de isenção aqui, acolá”. Sua justificativa tenta responder às críticas
que sugerem o tema como insuficiente para exigir uma mudança constitucional, bastando leis ordinárias
para tratar o assunto plenamente. Entretanto, para o deputado, não está em jogo apenas o processo de
fixação do tributo, trata-se de equiparar importâncias, grandezas, sendo que a música, nos termos em que
é defendida ali, “é merecedora de um tratamento diferenciado (...), no âmbito da estatura constitucional”.
Por ser a Constituição Federal a principal lei do país, tratar a música no âmbito constitucional seria o mesmo
que reconhecer sua importância. Não se trata, então, de eficiência legislativa, mas de demonstrar aos
grupos de interesse que o legislador que elaborou a proposta exalta ao máximo a produção musical
brasileira.
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Os deslizamentos de sentidos não se concentraram somente em apresentar os efeitos mais convenientes
para o modelo de negócios, mas também em alterar a percepção sobre a importância do setor fonográfico,
isto é, deixa de ser entendido como um setor comercial que responde a estratégias comerciais e passa a
ser uma atividade indispensável ao país, por preservar o maior orgulho brasileiro.
Considerações finais:
Com o propósito inicial de verificar como a crise de um setor econômico foi transformada em problema
público, envolvendo o setor fonográfico do país, esta pesquisa constatou a existência de um processo
discursivo, constituído de deslocamentos de sentidos, utilizado como recurso para privilegiar o modelo de
negócios no qual a música estava envolvida no país. Em outras palavras, para ter sucesso na inscrição de
seu problema na agenda pública, a indústria fonográfica em vez de exigir maior rigor na punição de crimes
de falsificação ou ter baseado seu envolvimento com o legislativo em denúncias de violação de direitos
autorais e/ou de crimes de concorrência desleal, optou por produzir uma teia de argumentos que resgatava
a memória discursiva dos legisladores e da população, fazendo sua proposição ultrapassar a condição de
alerta para o problema que enfrentava, configurando-a como a defesa de algo mais amplo do que um setor
econômico do país: se apresentaram como defensores da cultura nacional.
O caso da tramitação da PEC da Música ilustrou, portanto, como articulações da memória discursiva podem
contribuir para que um problema específico de um grupo de empresas seja entendido e tratado com um
problema público. Coube a esta pesquisa refazer o percurso que garantiu esse desfecho. Para tanto, era
fundamental tratar não apenas do momento de discussão da PEC, mas da construção da memória
discursiva nele articulada.
O argumento central da RF1 deslocava os sentidos sobre a produção musical para afirmar, no espaço
legislativo, que um setor econômico deveria ser entendido como o viabilizador do orgulho brasileiro,
gravemente ameaçado pelo avanço das práticas de pirataria. Ao analisar o material disponível, foi possível
perceber que essa associação direta, entre o setor fonográfico e a noção de “maior orgulho da nação”, gerou
uma condição em que qualquer medida ou ação em favor do setor seria justificável.
Para conseguirem que esse efeito de sentido fosse privilegiado, os convidados das audiências públicas
adotaram como estratégia generalizar seus argumentos, de forma que confundiam suas posições-sujeito:
falavam a partir de sua condição de autoridade como representantes do setor ou como artistas, mas seus
argumentos se deslocavam para tratar da cultura nacional. Dessa forma, apesar de representarem
interesses específicos, ali se firmavam como defensores da cultura nacional, pronunciando-se a partir dessa
posição, em defesa de que não haveria distinção entre o mercado que lucra com a música e a produção
musical, em geral. Para produzir esse efeito de sentido, foi necessário que defendessem que o objetivo da
PEC era discutir, além de qualquer outra coisa, a “arte principal deste País” e “um prejuízo muito grande a
um valor cultural brasileiro, patrimônio da Nação”. Essa ênfase se tornou fundamental para que o tema não
fosse relegado às discussões menores.
Também foi percebido que aquela rede de formulações tinha como subtema a possibilidade da extinção da
música: em diversos momentos, os convidados usaram seu tempo para denunciar a extinção da música,
caso o mercado fonográfico fosse fatalmente ferido. Esse aspecto do argumento contribuía para exigir maior
urgência à tramitação da proposta e foi afirmado e reafirmado em diversos momentos das audiências
públicas, mesmo por personagens contrários à aprovação da PEC.
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A associação direta entre a música e o orgulho nacional, e da música como negócio, apresentada de forma
inseparável, possibilitou entender que defender o modelo de negócios do mercado da música era o mesmo
que defender a música. Essa era a principal estratégia para transformar o contexto de um setor econômico
em um problema público, de interesse nacional.
Se articulação da memória e dos efeitos de sentido forem pensados de forma mais ampla, percebemos que
a aprovação da PEC da Música se baseia na historicidade construída sobre como deve ser a apropriação
da música e, também, sobre o papel da cultura na sociedade de mercado e de produtos de massa. Foi
verificada ao longo da investigação, como ponto básico geral, a associação direta (e a confusão) entre
produção comercial de bens culturais e a cultura que origina essa produção. A produção cultural reduzida a
um de seus possíveis aspectos – ser matéria-prima para produtos – limita a cultura ao que pode ser
comercializado, ao produto aparente que pode ser vendido às massas. Essa seria a essência do modelo de
negócios na música que seria facilmente assimilada e várias vezes reiterada porque a cultura seria
entendida como mero recurso para produção criativa. A música reduzida ao seu mercado.
O pouco interesse para construção de ações governamentais que oportunizem a difusão de artistas e grupos
musicais pode ser mencionado como mais um risco de limitar a música ao seu mercado. Além dos contratos
tradicionais entre o Estado e artistas eruditos (orquestras e bandas, principalmente), não é conhecida
qualquer política pública que fosse pensada para financiar a produção e a difusão de produção musical. O
setor cinematográfico, por exemplo, recebia recursos tanto para produção quanto para exibição, às vezes
sem necessidade de retorno aos cofres públicos, já os artistas de música não contavam com apoios
similares até o momento da redação desta pesquisa. Parte da resposta para essa diferença se dá por
entenderem que a música já tem um mercado consolidado, enquanto o cinema não estaria na mesma
condição. Essa percepção se originou provavelmente quando observavam apenas o volume de cópias
vendidas, mas não enxergavam que, apesar de ser um grande mercado, esse faturamento era concentrado
em poucas empresas e artistas. Por compreender e aceitar que a indústria fonográfica seria a responsável
pelos rumos da produção musical, não houve um programa, em nível federal, que se ocupasse de oferecer
apoio financeiro e abrir canais de difusão para a música produzida sob sua tutela. Dessa forma, a música
foi reduzida ao seu mercado, reafirmando o discurso que defende que a origem e a razão de existência da
música estão no mercado que a promove comercialmente. Diante de tantos desafios para a preservação do
patrimônio histórico e para o apoio às artes, a música ocupava um lugar que suscitava menor preocupação
porque, de fato, seus números de vendas e faturamento eram muito expressivos. Essa percepção foi
reafirmada pelos números agregados e os volumes de vendas acima de 100 milhões de cópias por ano e
foi perpetuado um oligopólio que se considerou, por muito tempo, o dono da música. A reflexão sobre o
modelo de promoção da música, fundamentado na concentração midiática e nos acordos ilícitos
(pagamentos de jabá, por exemplo), deveria ter motivado um alerta para a necessidade de promoção de
meios mais democráticos de intermediação entre artistas e os diversos públicos.
Sem outros meios de difusão e acesso à produção musical, o modelo de negócios assume como a única
alternativa e passamos a confundir a produção musical com o mercado da música. Por conta desse arranjo,
o discurso que prevaleceu, o já-dito, assume tal destaque que os debates se iniciam a partir dele sem nunca
o colocar em discussão. Nem mesmo legisladores que assumiam posições contrárias a mercantilização da
cultura colocaram em discussão a relação entre a música e seu mercado, provavelmente por também não
enxergar outra configuração possível além daquela que foi construída pela indústria. Como se vê, o debate
aqui iniciado não se limita a apresentar equívocos na apresentação de informações ou a apresentar as
manipulações dos sentidos. Mais do que isso, foi possível enxergar como foi construído o discurso que
explica uma prática social e que já não é colocado em discussão porque até mesmo as pessoas contrárias
o utilizam como base para suas argumentações.
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Embora a influência do discurso seja muito estudada pela linguística e por algumas disciplinas das ciências
sociais, não é assunto recorrente na gestão pública para além de alguns usos pontuais. É nessa intersecção
que esta pesquisa se propôs a entrar, abrindo espaço para que linguistas e cientistas sociais possam
produzir suas análises tendo o cotidiano da gestão como alvo e para que os gestores possam direcionar
seus olhares aos impactos das construções discursivas na condução da ação pública. Ao aliar uma
concepção de gestão que entende as influências dos atores (a Sociologia da Ação Pública) com as
ferramentas que conduzem o pesquisador/gestor para compreender como os sujeitos influenciam e são
influenciados pelas construções discursivas (a Análise de Discurso), deixamos de pensar em discurso
apenas nos momentos em que é necessário analisar entrevistas de avaliação (o uso mais recorrente) e
passamos a pensar sua importância em qualquer etapa que envolva a prospecção dos problemas,
negociações, busca coletiva por soluções, formação de consensos, avaliação dos resultados, entre outras
atividades tão recorrentes para o gestor público.
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