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ISSN - 2237-7840
Os paradoxos do antirracismo: avanços e retrocessos da luta quilombola
The paradoxes of anti-racism: advances and regressions in the quilombola struggle
Luciana Garcia de Mello1
Resumo:
O objetivo deste ensaio é refletir sobre os paradoxos do antirracismo na sociedade
brasileira a partir de uma análise dos avanços e retrocessos da luta quilombola. O
reconhecimento do direito à terra outorgado pela Constituição Federal de 1988
representa uma importante medida de reparação ao histórico processo de
exclusão social da comunidade negra. No entanto, as barreiras que se impõe a
efetivação desse direito deixa transparecer a persistência do racismo e de
mecanismos que desumanizam a população negra. Diante disso, argumenta-se
que as políticas de reparação encontram limite na sociedade brasileira, pois
convivem tanto com o racismo estrutural quanto com o racismo institucional.
Palavras-chave: Luta Quilombola. Reparação. Racismo. Antirracismo.
Abstract:
The aim of this paper is to reflect on the paradoxes of anti-racism in Brazilian
society from an analysis of the advances and regressions of the quilombola
struggle. The recognition of the right to land granted by the Federal Constitution of
1988 represents an important measure of reparation to the historical process of
social exclusion of the black community. However, the barriers that are imposed to
the realization of this right reveal the persistence of racism and mechanisms that
dehumanize the black population. Therefore, it is argued that reparation policies
are limited in Brazilian society, as they coexist both with structural racism and
institutional racism.
Keywords:Quilombola struggle; Repair; Racism; Anti-racism
1. Introdução
Durante mais de trezentos anos o Brasil foi um país oficialmente escravocrata, tendo sido o último país do
Ocidente a abolir a escravidão. Se isso não bastasse, após o término desse sistema, os indivíduos negros
foram jogados na sociedade livre e competitiva sem obter qualquer tipo de amparo (FERNANDES, 2008a).
Como assinalado por diversos autores (ORTIZ, 1985; SKIDMORE, 1989; SCHWARCZ, 1993; COSTA,
2001), a partir dos anos 1930, até houve uma incorporação simbólica desse grupo, revelando assim um
certo afastamento das teorias raciais que predominavam entre a elite intelectual e política do país. No
1 Universidade Federal de São Paulo. Instituto Saúde e Sociedade. E-mail: rwagner.oda@unifesp.br
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entanto, essa mudança não pode ser vista como o início da construção de um antirracismo na sociedade
brasileira. Prova disso é que não ocorreu a adoção de qualquer política pública que modificasse a situação
da população negra.
Somente com a Constituição Federal de 1988, ou seja, cem anos após a Abolição, adota-se uma medida
de reparação aos danos causados pelo racismo. O artigo 68 que reconhece a propriedade de terra aos
remanescentes de quilombo representa uma vitória ímpar do movimento negro e abre perspectiva para que
uma injustiça história seja remediada. Porém, como veremos nesse artigo, há importantes obstáculos para
a efetivação desse direito. Diante disso, argumenta-se que as políticas de reparação encontram limite na
sociedade brasileira, pois convivem tanto com o racismo estrutural quanto com o racismo institucional.
Esse artigo está organizado em duas etapas. Na primeira, procura-se demonstrar que a questão territorial
é uma luta histórica da população negra e destaca-se a importância do artigo 68 da Constituição Federal.
Também se coloca em discussão as resistências legais que surgem a partir da promulgação desse direito.
Já na parte dois, enfatiza-se os paradoxos do antirracismo na sociedade brasileira, analisando os limites da
medida de reparação. Desse modo, salientam-se os obstáculos práticos que se apresentam a efetivação
dos direitos das comunidades quilombolas, bem como a persistência da vulnerabilidade social desse grupo.
2. DA ESPOLIAÇÃO HISTÓRICA AO ARTIGO 68: AVANÇOS E RETROCESSOS
A luta quilombola tem início ainda durante o período colonial. Como explica Leite (2008), o termo “quilombo”
em sua etimologia bantu significa acampamento guerreiro na floresta. Para Moura (1993), o quilombo foi a
unidade básica de resistência do escravo. A administração colonial popularizou essa expressão em suas
leis, relatórios, atos e decretos para fazer referência às unidades de apoio mútuo formadas pelos rebeldes
que se opunham ao sistema escravista e lutavam pelo fim da escravidão2. A palavra também teve um
significado especial para os libertos em sua trajetória, conquista e liberdade. Ainda segundo Leite, no final
do século XIX, em razão das mudanças institucionais e do início do processo de industrialização, o termo
quilombo ganhou maior amplitude e novas dimensões, passando da voz dos abolicionistas para os
movimentos sociais. Como já apontado por diversos autores, tais como Fernandes (2008b), um dos
principais problemas enfrentados pela população negra no pós-abolição era a persistência indefinida do
antigo regime no plano das relações raciais. Havia, segundo o autor, uma série de mecanismos que levavam
a acomodação entre negros e brancos, revelando assim o conservadorismo no que se refere à questão
racial. Particularmente importante nesse processo é a permanência da grande concentração de terra e a
exploração da população que nela permanecia.
Estava claro que o negro estava ausente do processo de modernização do país. As elites brasileiras eram
assíduas leitoras das ideias racistas produzidas na Europa e nos Estados Unidos, como observa Schwarcz
(1993). Nas primeiras décadas após a abolição, a questão racial era vista como um empecilho para a
construção da nação. A saída foi apostar no incentivo à miscigenação, visando tornar o país cada vez mais
branco (ORTIZ, 1985; SKIDMORE, 1989; SCHWARCZ, 1993). Para atingir esse objetivo, apostava-se na
atração de imigrantes europeus. Uma das consequências desse processo foi a marginalização e segregação
da população negra. Leite (2008) informa que na transição do século XIX para o século XX, a maior parte
das terras de índios e negros do Sul do país foi reocupada por imigrantes procedentes de diversas regiões
2 Leite (2008) informa que a Legislação Ultramarina em sua fase áurea estipulou que um quilombo era a reunião de
cinco ou mais negros, devido ao potencial de revolta contido na união dos escravos.
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da Europa. Desse modo, a colonização dessa região atendeu aos interesses das elites intelectuais e
políticas, que visavam implantar um povoamento com populações tidas como racialmente superiores e
provenientes de áreas tidas como mais desenvolvidas. Ainda segundo a autora, o tipo de ocupação do
espaço territorial, bem como a persistência da fronteira étnica estabelecida pelos grupos imigrantes foram
fatores relevantes de reorganização das diferenças, gerando perdas significativas para os que já se
encontravam anteriormente na terra, como é o caso dos africanos, indígenas e caboclos. Deve-se salientar
que o processo de exclusão da terra não aconteceu somente no Sul, muito antes a Lei de Terras de 1850
já havia provocado sérios prejuízos para a população negra. De acordo com essa lei ficava proibida a
aquisição de terra que não fosse efetuada por meio de compra. Como explica Picelli (2014), novas
concessões de sesmarias e a ocupação de terras por posse ficavam proibidas. A questão é que em várias
regiões escravistas, tal como assinala a autora, havia se formado um campesinato negro que acessava a
terra prioritariamente através de doações e ocupações de áreas livres. Os negros foram perdendo lugar em
territórios que anteriormente estavam sob sua posse. .
A forma de ocupação das terras em todo o Brasil se deu por meio da lógica da expulsão
dos indígenas e dos negros, da exploração da mão-de-obra compulsória dos africanos e
seus descendentes. A territorialidade negra, portanto, foi desde o início engendrada pelas
e nas situações de tensão e conflito (LEITE, 2008, p. 967).
A ocupação territorial é emblemática do racismo existente na sociedade brasileira e, diante disso, a questão
da terra é um dos temas centrais para as entidades do movimento negro. No final dos anos 1970, quando
ressurge o Movimento Negro Unificado - MNU, emerge uma nova fase de luta. Uma diferença importante
entre esse movimento e os anteriores é a ênfase na luta contra a discriminação racial e não contra o
preconceito racial. Assim, o ato de fundação do MNU “tornou-se um marco referencial na história do país,
porque marcou a entrada de uma nova campanha política de cunho antirracista com projeção nacional”
(RIOS, 2012, p.50). Picelli (2014) enfatiza que no mesmo ano de fundação do MNU é lançado em 20 de
novembro um Manifesto nacional em que está presente a retomada de Zumbi como símbolo heroico da luta
antirracista e o quilombo como inspiração:
Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de ZUMBI, líder da república negra
de Palmares, que existiu no Estado de Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio
português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos, para declarar a todo o povo
brasileiro a nossa verdadeira e efetiva data: 20 de NOVEMBRO – DIA NACIONAL DA
CONSCIÊNCIA NEGRA! Dia da morte do grande líder negro nacional, ZUMBI, responsável
pela PRIMEIRA e ÚNICA tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática,
ou seja, livre, e em que todos – negros, índios e brancos – realizaram um grande avanço
político e social, tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos
(PICELLI, 2014, p. 58).
Como explica Leite (2008), militantes do Movimento Negro Unificado e parlamentares como Abdias do
Nascimento vão levar a Assembleia Nacional Constituinte a questão quilombola. Picelli (2014) destaca que
nas eleições de 1986 para deputados e senadores Benedita da Silva (PT) e Carlos Alberto Caó de Oliveira
(PDT) vão ser eleitos e também irão participar como constituintes da Assembleia. Ambos tiveram papel de
empreendedores políticos da questão racial e também da questão quilombola e atuaram na esfera do
discurso comunicativo, defendendo as ideias e propostas discutidas pelo movimento negro. Picelli relata
também que Benedita da Silva, naquela ocasião, compôs como titular a Subcomissão Temática de Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; e Caó integrou a Subcomissão de Ciência e
Tecnologia e da Comunicação. A retórica empregada por esses atores é a da reparação e, paralelamente,
tem-se uma denúncia da abolição como um processo inacabado. Leite (2008) informa que Abdias, senador
da República naquele período, vai definir o quilombismo como um movimento político dos negros brasileiros,
deixando claro que não se trata de uma espécie de segregacionismo, mas de um movimento que luta por
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um poder político realmente democrático, que tenha representatividade afro-brasileira em todos os níveis
do poder. Guimarães (2012) explica que o quilombismo forjado por Abdias aliava radicalismo cultural e
radicalismo político. Duas influencias marcaram essa doutrina: o Afrocentrismo que desde os anos 1950 era
influente entre os intelectuais africanos e afrodescendentes, radicados na Europa e nos Estados Unidos (do
Afrocentrismo vem a ideia de filiar os negros brasileiros a uma “nação” negra transnacional); e a outra
influência é o marxismo. Do marxismo Abdias retira a ideia de que a emancipação do negro brasileiro
significa a emancipação da exploração capitalista de todo o povo brasileiro. Ainda segundo Guimarães, o
caráter universalista da emancipação dos negros brasileiros está diretamente relacionado à ideia de uma
luta de maioria explorada. Para essa luta, segundo o autor, a definição ampla de negro como descendente
de africano – e não apenas pessoas de cor ou fenótipo negro – é fundamental. A adoção de uma
classificação racial bipolar, que aboli as categorias intermediárias de pardo ou moreno, têm uma motivação
claramente política. Na visão de Guimarães tratava-se de uma estratégia para que o negro fosse assimilado
à classe trabalhadora explorada e não a uma minoria apenas oprimida. Guimarães (2012) ainda explica que
Abdias procurou integrar o programa do Quilombismo ao movimento pela redemocratização do país.
Depois de mais de trezentos anos de escravidão e da ausência de qualquer política afirmativa para inserir
o negro na sociedade que se formava no pós-abolição, finalmente em 1988 a Constituição Federal adota
uma medida de reparação. De acordo com o artigo 68 do Ato as Disposições Constitucionais Transitórias:
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos” (BRASIL, 1988). As terras de quilombo
passaram a ser consideradas parte do patrimônio cultural dos africanos e de seus descendentes e ficou
definido que os “remanescentes de quilombo” deveriam receber proteção por parte do Estado. Assim, a luta
quilombola assenta-se em um tripé em que direito à terra, afirmação da cidadania e patrimônio cultural
passam a estar indissociados. Leite sublinha ainda que com a Constituição os negros adquirem uma
condição plena de direitos e passam a ser citados e incorporados à ideia de Nação. “A Constituição lhes
dá garantia da posse e do usufruto das riquezas do solo, do subsolo e das terras nas quais exercem uma
ocupação há sucessivas gerações” (LEITE, 2008, p. 970).
O artigo 68 enfrentou fortes resistências tanto na Câmara quanto no Senado e acabou levando quase vinte
anos para ser regulamentado. Arruti (1997) afirma que ele ficou sem qualquer proposta de regulamentação
até 1995. Nesse ano ganhou importância quando foi associado às festividades pela memória de Zumbi dos
Palmares. Foi então que foi emitida em 22 de novembro a Portaria do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) n. 307, que determina que as comunidades remanescentes de quilombo
localizadas em áreas públicas federais, arrecadadas ou obtidas por processos de desapropriação, sob a
jurisdição desse órgão, tenham as suas áreas medidas e demarcadas, bem como tituladas. A partir daí
ocorrem também debates e reflexões em âmbito nacional. Uma das questões centrais dizia respeito a
própria definição do que foram historicamente os quilombos para, partindo dessa definição, discernir os
critérios de identificação das comunidades remanescentes. Para Arruti (1997, p. 21), o termo remanescente
reserva ou resgata alguma positividade, sem deixar de estabelecer rupturas com a narrativa básica, fatalista
e linear. Esses pressupostos fixam no núcleo de definição do grupo uma historicidade que remete sempre
ao par memória-direitos. Ainda segundo o autor, tratando-se de remanescentes, o que está em jogo é a
manutenção de um território como reconhecimento do processo histórico de espoliação. Há uma relação
difícil de continuidade e descontinuidade com o passado. Na tradução para a letra da lei, em um primeiro
momento, aplicou-se uma interpretação mais restritiva da noção de remanescentes de quilombo. Assim,
como citam Salaini e Jardim (2015), o primeiro decreto presidencial n. 3912 de 2001 que buscava
regulamentar o artigo 68 da Constituição definia que somente poderia ser reconhecida a propriedade sobre
terras que, entre outros critérios, estivessem ocupadas por quilombos em 1888 e estavam ocupadas por
remanescentes das comunidades de quilombos em 05 de outubro de 1988. Desse modo, havia a
necessidade de comprovação de conexões históricas entre as comunidades e a experiência escravocrata.
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Em não havendo essa comprovação, desqualificava-se os sujeitos pleiteantes como usurpadores da história
de seus antepassados.
O Decreto 4.887 de 2003, que substitui o documento anterior, representa um importante avanço. Salaini e
Jardim informam que a partir de então foi retirado o argumento da necessidade de conexão histórica e o
INCRA passou a ser responsabilizado pelo processo de identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras. Nesse mesmo decreto, conforme Soares (2018), está expressa a
definição das comunidades quilombolas enquanto grupos étnico-raciais, segundo critérios e auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas e com presunção de
ancestralidade negra relacionada à resistência e à opressão histórica sofrida. Outro elemento importante
apontado pela autora é que, além da garantia do território, o decreto parte do entendimento de que essas
populações possuem especificidades para a garantia da preservação de sua maneira de produzir e de viver
e, diante disso, afirma a destinação de assistência técnica, linhas especiais de financiamento e concede
preferência nas políticas agrícolas e agrárias nacionais.
Desde 2004, várias instruções normativas veem sendo adotadas pelo INCRA para regulamentar o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro
das terras ocupadas por remanescentes de quilombo. Nessas diretrizes observa-se uma preocupação cada
vez maior em objetivar os territórios, fugindo assim da definição legal do grupo. Salaini e Jardim (2015)
informam que o artigo 10 da instrução normativa 57 de 20 de outubro de 2009, entre outras coisas, traz a
fundamentação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) baseado em elementos objetivos
no que se refere às informações antropológicas e etnográficas. Ainda segundo os autores, o movimento
quilombola interpreta essas mudanças como um retrocesso e a entendem como resultado da pressão de
proprietários de terra, órgãos militares e determinados setores do parlamento federal.
Há outras tentativas de enfraquecimento do direito constitucional. A mais notória foi a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 3239 de 2004, que questionava a constitucionalidade do Decreto 4887 de 2003.
Essa ação tramitou no Supremo Tribunal Federal até o ano de 2018, quando finalmente os quilombolas
obtiveram vitória. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas –
Conaq e a Terra de Direitos (2018) sublinham que o ano de 2017 foi marcado pela proposição de vários
projetos de lei e de emenda à Constituição que, direta ou indiretamente, tornam-se ameaças ao direito dos
quilombolas ao seu território. É preciso acrescentar igualmente que desde 1988, poucos avanços ocorreram
na implementação da política pública de titulação. Dados do INCRA revelam que até o momento foram
conferidos apenas 116 títulos de terras em benefício de comunidades remanescentes de quilombo de um
total de mais de três mil comunidades já reconhecidas oficialmente pelo Estado brasileiro. Estima-se que
existem mais três mil comunidades totalizando assim seis mil. Outro dado é que dos 1.716 processos para
titulação que estão abertos no INCRA, 84% sequer saíram da primeira etapa, não possuindo o RTID.
Persistindo esse ritmo, o Estado brasileiro levará mais de mil anos para concluir as titulações, é o que
afirmam as entidades. Sem ter a pretensão de esgotar a discussão, na etapa seguinte deste artigo, discutir-
se-á justamente os limites da reparação.
3. PARADOXOS DO ANTIRRACISMO: OS LIMITES DA REPARAÇÃO
O racismo se assenta em um processo constante de desumanização. Em relação ao racismo que atinge a
população negra, pode-se afirmar que, tal como sugere Mbembe (2014, p. 19) o nome negro foi inventado
para significar exclusão, embrutecimento e degradação, isto é, um limite sempre conjurado e abominado.
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Políticas de reparação além de combater injustiças históricas têm por objetivo restaurar a humanidade que
foi negada à população negra e combater o racismo. Nesse sentido, é possível afirmar que há um forte
vínculo entre essas políticas, os direitos humanos e o antirracismo. A questão é que, como afirmam Fonseca
e Cardarello (1999), em sua forma abstrata e descontextualizada, os direitos humanos pouco significam.
Importa como essa noção é traduzida na prática, o que vai depender de relações de poder forjadas em
contextos históricos específicos e expressas em determinadas categorias semânticas. Além disso, há limites
no antirracismo brasileiro. Segundo Guimarães (2012), houve um antirracialismo no Brasil que negou a ideia
de que o preconceito contra a população negra tivesse conteúdo racial e aboliu a categoria raça, elegendo
a cor como elemento explicativo. Contudo, tal tentativa de mudança no discurso racial não resultou em
transformação do seu sentido. Pelo contrário, a não utilização do termo raça, por si só, mostrou-se
totalmente incapaz de combater o racismo, visto que a articulação da ideologia racial envolve também uma
série de preconceitos derivados de uma percepção racializada.
O artigo 68 da atual Constituição Federal inicia um novo capítulo na já histórica luta territorial da comunidade
negra. Ocorre que não obstante o amparo legal dado a esse grupo, a garantia de seus territórios, na maior
parte das vezes, ainda permanece uma realidade longe de ser alcançada. Como já exposto na parte inicial
desse trabalho, do ponto de vista legal, o processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas é
marcado por importantes avanços, mas também por sérios retrocessos. O que se quer chamar a atenção
nessa etapa do artigo é precisamente sobre os limites da política de reparação. Argumenta-se que a
permanência de obstáculos institucionalizados desde longa data atua como um freio para a efetivação dos
direitos da comunidade negra. Por um lado, tem-se o racismo estrutural que como explica Almeida (2018)
faz com que o funcionamento da sociedade seja alterado devido a questões raciais. Isso significa que
processos econômicos, políticos, sociais e culturais são influenciados pela raça. Com as medidas de
reparação não é diferente, ou seja, elas não estão imunes aos efeitos de mecanismos que fazem o racismo
se materializar na vida das pessoas. Por outro lado, deve-se ter em conta também a importância do racismo
institucional, que faz com que as instituições adotem uma dinâmica de funcionamento que acaba por
conferir, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça. Como assinala López (2012,
p. 127), esse racismo “atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que
operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes
segmentos da população do ponto de vista racial”. Tanto o racismo estrutural quanto o racismo institucional
convivem com as tentativas de reparação. Em termos práticos, um acaba por retroalimentar o outro e ambos
limitam a efetividade do direito adquirido.
No caso quilombola, uma das primeiras contradições da política da reparação é a disputa que envolve a
questão da autodefinição do grupo. Para Chagas (2001) ainda que se trate de um novo cenário de
reconhecimento, algumas demandas de caracterização das comunidades quilombolas são feitas ou
traduzidas com base em estereótipos ou enquadramentos que se distanciam da realidade do grupo. Assim,
apesar da expressão remanescentes das comunidades de quilombo ter sido cunhada como categoria
jurídica geradora de direitos, há dificuldades no processo de sua interpretação. Os laudos antropológicos
que são elaborados para promover a identificação e o reconhecimento das comunidades acabam sendo
desacreditados e muitas vezes levantam-se suspeitas de fraude. Nesse sentido, Chagas afirma que mesmo
sob a égide do reconhecimento, o universo administrativo-legal tende a reforçar a dominância de uma matriz
explicativa que foi construída com base em conteúdos cristalizados, os quais impedem a adoção de vários
ângulos de leitura da história dos quilombos e sua relação com a sociedade envolvente. Em consequência
da perpetuação desses estereótipos, tem-se o prejuízo da comunidade negra que busca um direito que
passou a ser assegurado, tendo por referência processos culturais e sócio-históricos diversos. Chagas
destaca igualmente que no transcorrer do processo de reconhecimento oficial das comunidades quilombolas
entram em interação uma multiplicidade de órgãos governamentais e não governamentais, especialistas,
movimentos sociais que, de um modo geral, pouca ou nenhuma atividade tinham realizado previamente
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com os grupos. Emerge então um conflito de categorias de apreensão da realidade ou mesmo exigências
legais administrativas que são inexequíveis para o grupo.
Na visão de Salaini e Jardim (2015), é preciso examinar a maior ou menor receptividade de alteridades, da
própria presença histórica e de narrativas sobre os modos de organizar a vida em comum nas localidades
nos procedimentos demarcatórios. Nas experiências de perícia, constata-se que os elementos simbólicos,
que contornam e tornam compreensível a vida em comunidade, tornam-se o principal problema de
enunciação e de dificuldade de comunicação com as lógicas estatais, que estão pautadas por comprovações
materiais da vida comunitária. As lógicas institucionais correm o risco de sistematicamente desautorizar e
não recepcionar suas narrativas e formas de entendimento do mundo por considerá-las menos objetivas
(SALAINI e JARDIM, 2015, p. 198). A escuta e a tradução de narrativas de grupos que possuem outras
experiências sociais com o território e com o mundo social encontram-se em tensão com lógicas jurídico-
administrativas e, em muitos casos, acabam por sobressair as situações de desvantagem histórica das
comunidades quilombolas. Os autores concluem que uma vez que esses grupos não se enquadram nas
classificações jurídicas hegemônicas e por servirem de arena de disputas entre sujeitos com recursos
desiguais, as políticas de reparação e reconhecimento parecem sofrer do mesmo problema que vieram
solucionar.
Salaini e Jardim (2015) ao refletir sobre situações comuns relativas aos pleitos de terras quilombolas nas
rotinas administrativas evidenciam também um difícil diálogo entre comunidades negras e as instituições
administrativas e estatais. Para os autores, há tensões entre as lógicas cartoriais e as noções nativas que
são mobilizadas durante a realização dos relatórios técnicos de demarcação e identificação elaborados por
antropólogos. Tem-se um processo de invisibilização das comunidades negras, provocado pelos
expedientes cartoriais, que ocorre desde tempos pretéritos e permanece até os dias atuais. Durante os
pleitos de regularização fundiária, segundo os autores, os quilombolas são interpelados por uma “batalha
de papeis”. Há uma dificuldade das comunidades negras rurais e urbanas para se fazerem visíveis nos
desenhos cartoriais disponíveis, relativos à propriedade privada individual e através das instâncias de
registro cartorial localmente disponíveis. A violação dos direitos humanos fica clara, pois, como chamam a
atenção os autores, para acessar políticas públicas de saneamento básico, saúde, educação, entre outras,
a invisibilidade das comunidades negras é reiterada ao exigir-se documentos como certidões de nascimento,
de óbito e outros registros emitidos pelos cartórios que comprovem sua existência e vida individual e coletiva
na localidade.
Como destaca Brustolin (2009), ainda que as demandas das comunidades remanescentes de quilombos
encontrem-se amparadas pela interpretação de dispositivos legais e tenham referência a leis, decretos,
normas internacionais e estudos, elas não entram para o rol das coisas indiscutíveis. Na busca por
regularização fundiária, a possibilidade de requisitar direitos territoriais com base na identidade quilombola
vincula-se a necessidade de justificar e fundamentar de modo incessante essa reivindicação; buscar sempre
mais provas de veracidade; juntar mais documentos; apelar a instrumentos jurídicos e órgãos de governo
diversos. Nesse sentido, para a autora não se trata de um direito institucionalizado, mas antes de tudo de
uma realidade insistente. Brustolin sublinha que os quilombolas ficam diante não de atos de reconhecimento,
mas sim de desconsideração, pois são acionados dispositivos de poder que caracterizam a questão
quilombola como perigo e permitem a instalação de Estados de exceção. A pesquisa de Brustolin permitiu
constatar que nas peças administrativas apresentadas junto a órgãos públicos e nas mesas de reuniões, os
quilombolas têm sido tratados como ameaça ao meio ambiente, ao desenvolvimento e à paz nacional.
Fica-nos evidente que há importantes obstáculos para efetivação do direito à terra por parte da comunidade
quilombola e que o reconhecimento outorgado à comunidade negra pela Constituição Federal de 1988 não
foi capaz de remover os obstáculos desde há longa data institucionalizados. Entre eles, pode-se citar, como
já mencionado, o racismo que se manifesta não apenas no modo como essa população é vista, mas também
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na maneira como ela acaba sendo tratada. Deve-se acrescentar que esse racismo ainda se torna mais
evidente quando se observa o descaso em relação às tentativas de regularização fundiária dos quilombos.
De acordo com o artigo 13 do Decreto Federal 4887 de 2003, quando houver título de propriedade privada
em nome de não quilombolas, incidentes em territórios quilombolas, o Estado deverá desapropriar a terra
para poder titulá-la em favor das comunidades. Após sete anos de vigência deste decreto ocorreu pela
primeira vez a dotação orçamentária para que os primeiros processos de titulação chegassem à fase de
desapropriação. De acordo com a Conaq e a Terra de Direitos (2018), em 2010, foram destinados mais de
54 milhões de reais para desapropriações, mas nos anos seguintes, o valor foi sempre decrescente: entre
2013 e 2015 foram destinados 25 milhões de reais; em 2016, cinco milhões de reais; em 2017, pouco mais
de três milhões de reais; e, finalmente, em 2018, menos de 1 milhão de reais. Em 2019 a situação não foi
diferente e foram destinados pouco mais de três milhões. Atualmente, seriam necessários mais de 27
milhões para aquisição de terras de 17 comunidades que já foram vistoriadas e aguardam apenas a
desapropriação3.
O relatório da Conaq e da Terra de Direitos também menciona os problemas relativos às verbas destinadas
às atividades meio do INCRA. As dotações orçamentárias para esse fim são destinadas ao pagamento de
despesas com diárias, publicações em diários oficiais e outros elementos necessários ao andamento dos
processos de titulação. Entre 2010 e 2011 houve uma redução de 40% do valor destinado; em 2012 o valor
se manteve, sendo que em 2013 e 2014 novamente o montante diminuiu, agora para cinco milhões e meio
de reais. Desde então tem ocorrido reduções sucessivas, com exceção do ano de 2018, quando houve uma
ligeira elevação. O que as entidades observam é que à medida em que houve avanços na política de
titulação de territórios, o orçamento para o trabalho meio e para as desapropriações foi sendo reduzido.
Assim, elas destacam que além da justiça frear a política de reparação, há, ao mesmo tempo, um processo
de inviabilização que se constrói pela via orçamentária. Não obstante a questão do orçamento ser de suma
importância, é preciso citar que mesmo as ações que não necessitam de dispêndio financeiro estão
paralisadas. Em abril de 2018, havia 31 procedimentos para assinaturas de decreto de desapropriação
paralisados na Casa Civil. Desse total, 3 estão paralisados desde 2015, 13 desde 2016, mais 13 desde 2017
e apenas 1 chegou a essa fase no ano de 2018. Isso acaba por retardar o andamento dos procedimentos
administrativos.
Outro problema que revela os limites da política de reparação é que o INCRA tem pressionado as
comunidades quilombolas a aceitar a diminuição da área a ser titulada. Isso aconteceu em territórios como
Mesquita, em Goiás, Marambaia, no Rio de Janeiro, Alcântara, no Maranhão e Rio dos Macacos, na Bahia,
entre outros, conforme o relatório do Conaq e da Terra de Direitos (2018). Outro exemplo é o que ocorreu
na Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, que se localiza na Reserva do Iguaçu no Paraná. Em
2019, parte das terras que formam essa comunidade foram compradas pelo INCRA por cerca de R$10
milhões de reais. Contudo, a área comprada de 225 hectares é muito inferior aos 1,5 mil hectares previstos
no decreto de desapropriação que havia sido assinado em 20154. Isso revela que nem sempre os
quilombolas conseguem ter acesso ao território que realmente lhes pertence, sendo obrigados a fazerem
concessões que tornam os seus direitos menos efetivos. O quadro torna-se mais grave, após a eleição de
Jair Bolsonaro. Ainda quando era candidato, além de ofender os quilombolas dizendo que foi a um quilombo
3 Fonte: TERRA DE DIREITOS. No atual ritmo, Brasil levará mil anos para titular todas as comunidades
quilombolas. 12 de fev. 2019. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-
levara-mil-anos-para-titular-todas-as-comunidades-quilombolas/23023. Acesso em: 01 de dez. 2020.
4 Fonte: TERRA DE DIREITOS. No atual ritmo, Brasil levará mil anos para titular todas as comunidades
quilombolas. 12 de fev. 2019. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-
levara-mil-anos-para-titular-todas-as-comunidades-quilombolas/23023. Acesso em: 01 de dez. 2020.
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e constatou que o indivíduo mais leve que lá residia pesava sete arrobas, que não faziam nada e sequer
serviam para procriar, ainda afirmou:
Se eu chegar lá (na presidência), não vai ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter
que trabalhar. Pode ter certeza que se eu chegar lá, no que depender de mim, todo mundo
terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro demarcado para reserva
indígena ou para quilombola (JAIR BOLSONARO)5
Ao se eleger, Bolsonaro realizou uma reconfiguração administrativa dos ministérios e o INCRA, que até
então estava ligado à Casa Civil, foi incorporado pelo Ministério da Agricultura, sob o comando de Tereza
Cristina do DEM, representante ruralista e ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
Soma-se a isso o fato do INCRA ter ficado inicialmente submetido à pasta de Secretaria de Assuntos
Fundiários, liderada por Nabhan Garcia, pecuarista e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR).
Essa entidade possui um histórico de oposição à reforma agrária, à demarcação de terras indígenas e à
titulação de territórios quilombolas. Também nessa reforma, órgãos que estavam vinculados ao antigo
Ministério de Direitos Humanos, tais como a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial
(SEPPIR), o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais, passaram para o comando do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos.
Esses órgãos também influenciam iniciativas voltadas aos quilombos6.
Por fim, cabe mencionar ainda mais um problema a que estão submetidos os quilombolas: a violência. A
Conaq e a Terra de Direitos (2018) chamam atenção para o fato de que há uma permanente violência contra
os quilombos e nos últimos anos tem ocorrido um aumento exponencial, sendo que as situações são cada
vez mais graves. Entre 2008 e 2017 a pesquisa realizada por essas entidades mapeou: 2 assassinatos no
Sul; 2 no Sudeste; 29 no Nordeste; e 5 no Norte. Como se pode observar, é na região Nordeste que a
violência é mais intensa. Também deve-se mencionar que dos 38 assassinatos identificados no período em
análise, apenas 2 aconteceram em quilombos urbanos, tendo ocorrido no Quilombo dos Alpes no Rio
Grande do Sul, onde foram ceifadas a vida de duas lideranças locais: Joelma da Silva Elias e Volmir da
Silva Elias (Guinho). Para as entidades essa discrepância é indicativa de que as áreas rurais são mais
suscetíveis aos problemas relativos à falta de políticas públicas sociais mínimas. Também pode-se
mencionar a persistência de relações fortemente hierarquizadas e tradicionais de mando e dominação.
Em 2017, ocorreram 18 assassinatos de quilombolas; comparando com o ano de 2016, houve um aumento
de 350%. Para além dos assassinatos, os quilombolas também sofreram com ameaças, torturas, prisões
ilegais, despejos e negações sistemáticas de acesso a bens e serviços. Esses elementos evidenciam o
desrespeito aos direitos humanos desse grupo. Para A Conaq e a Terra de Direitos, as situações de violência
são reveladoras do estado de vulnerabilidade em que se encontram os quilombos no período atual. Para
além disso, apontam o racismo – tanto estrutural (que se vincula a histórica negação ao acesso à terra)
quanto epistêmico e econômico (que considera a vida negra descartável e não humana) – como elemento
estruturante dessas violências. Também procuram chamar atenção para o caráter estrutural da violência e
sublinhar que ela está diretamente ligada à luta pelo território. Um dado alarmante é que nem a gravidade
dos números e nem o trabalho incansável das lideranças quilombolas, das organizações e dos movimentos
5 Fonte: CONGRESSO EM FOCO. Bolsonaro: “Quilombola não serve nem para procriar”, 05 de abril de 2017.
Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-quilombola-nao-serve-nem-para-
procriar/. Acesso em 14 de dez. 2020.
6 Fonte: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. O que muda (ou sobra) para os quilombos com a reforma de Bolsonaro?
18 de jan. 2019. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-que-muda-ou-
sobra-para-os-quilombos-com-a-reforma-de-bolsonaro. Acesso em: 10 de jan. 2021.
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sociais na formação de denúncias ao longo de 2017, foram capazes de impulsionar a ação estatal efetiva
para atribuir responsabilidades e para promover políticas que enfrentam a violência dirigida aos quilombos.
O processo de coleta e de sistematização dos dados relativos às violações de direitos realizado por essas
entidades permitiu identificar diferentes contextos de conflitos envolvendo os quilombos ou territórios
quilombolas investigados: 1) especulação imobiliária – casos em que há risco de perda de território em razão
de interesses imobiliários para a construção de resorts, condomínios de luxos, entre outros; 2) latifúndio –
conflitos com grandes proprietários de terra e latifundiários; 3) megaprojetos-socioambiental – conflitos
socioambientais envolvendo grandes projetos, tais como duplicação de rodovias, mineração, agronegócio,
usinas hidrelétricas, entre outros; 4) racismo institucional – violações decorrentes de discriminação racial
perpetrada por instituições públicas ou grupos empresariais; 5) outros – violações associadas à violência de
gênero, ao racismo religioso e/ou a presença do tráfico de drogas e grupos milicianos no território. Os
quilombos que se encontram em fase inicial de regularização fundiária (33,8%) são os que tiveram maior
incidência de violação de direitos. Em seguida, ficam as comunidades que possuem o RTID (23,8%). Os
dados analisados revelam que os territórios quilombolas que se encontram no começo do processo de
regularização fundiária concentram quase 60% dos casos de violência identificados no levantamento
realizado. Assim, a insegurança jurídica-fundiária das comunidades é um elemento que agrava ainda mais
a vulnerabilidade dos quilombos.
4. Considerações finais
Ao longo deste artigo procurou demonstrar os avanços e retrocessos da luta quilombola, destacando alguns
empecilhos que se apresentam a efetividade da reparação. Há um paradoxo no antirracismo brasileiro, pois
ele ainda convive tanto com o racismo estrutural quanto com o racismo institucional. Obstáculos
institucionalizados desde longa data jamais foram removidos e permanece uma forte hierarquia social e
racial. A luta quilombola é exemplar nesse sentido. Apesar dos remanescentes de quilombo terem obtido
uma importante vitória legal, graças a atuação de entidades do movimento negro, esse grupo acaba
entrando em uma disputa bastante desigual para tentar fazer valer a letra da lei.
Pode-se afirmar que a reparação também tem limites porque o reconhecimento que foi outorgado às
comunidades remanescentes de quilombo envolve uma questão de status. Devido a isso, é preciso ter em
consideração dois elementos. O primeiro, tal como afirma Walzer (2003, p. 348) é que não se pode
conquistar o reconhecimento de quem, pensando em suas próprias reivindicações, reluta em concedê-lo.
Esse é precisamente o caso dos grandes latifundiários e proprietários de terra, alguns parlamentares e
representantes de grandes empresas – principais adversários dos quilombolas. O segundo elemento é que
a raça atravessa todas as relações sociais e acaba por institucionalizar um modo de tratamento para as
pessoas negras. Desrespeito e desconsideração, como consequência do racismo, fazem parte do cotidiano
desses indivíduos.
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