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ISSN - 2237-7840

A GESTÃO DOS “FUTUROS” NAS DEMOCRACIAS: uma discussão a partir da noção de biopolítica
THE MANAGEMENT OF THE “FUTURE” IN DEMOCRACIES: a discussion from the biopolitical notion


Augusto Cecchin Bozz 1
Suely Henrique de Aquino Gomes 2



Resumo:
Este trabalho sobre a biopolítica, de natureza puramente teórica, se propõe a
analisar os modos pelos quais “os futuros” tornam-se inteligíveis, praticáveis e
governáveis nas democracias liberais contemporâneas. Aposta-se que a questão
central da biopolítica não é a morte, muito embora esta dimensão exista; mas o
medo das multiplicidades pensadas negativamente como acaso, incerteza,
aleatório, eventualidade. Por ter que projetar e maximizar a vida, a biopolítica
enfrenta – entre tantas outras – a desmesura do tempo compreendida como
excesso perigoso. Conclui-se que o catastrófico, a ameaça potencial às
infraestruturas vitais e a paranoica suspeita do outro vergam no aqui e agora os
mundos e os sujeitos do amanhã, coadunando biopolítica e niilismo.
Palavras-chave:Futuros; Biopolítica; Neoliberalismo; Catástrofe; Moral.


Abstract:
This work about biopolitics, of a purely theoretical feature, proposes to analyze the
ways in which “the future” becomes intelligible, practicable and governable in
contemporary liberal democracies. The hypothesis is that the central issue of
biopolitics is not death, even though this dimension exists; but the fear of
multiplicities thought negatively as chance, uncertainty, randomness, eventuality.
Because biopolitics has to project and maximize life, it confronts - among so many
others - the immeasurability of time understood as a dangerous excess. We
conclude that the catastrophic, the potential threat to vital infrastructures and the
paranoid suspicion of the other bend in the here and now the worlds and the
subjects of tomorrow, joining with biopolitics and nihilism.
Keywords:Futures; Biopolitics; Neoliberalism; Catastrophe; Moral



1 Escola de Comunicação, Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro E-mail:
augusto_bozz@hotmail.com
2 Professora titular da Faculdade de Comunicação e Informação da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
suelyhenriquegomes@gmail.com



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1. Introdução

A pandemia de Sars-Cov-2 recolocou o tema das práticas de cuidado com a vida no centro do pensamento
contemporâneo. Mais especificamente, realçou a experiência política da vida e suas estratégias de “fazer
viver ou deixar morrer" (FOUCAULT, 2010). O gerenciamento do “futuro” das populações (biopolítica) é
parte integrante das democracias liberais, na medida em que é indispensável ao seu desenvolvimento a
inserção e a circulação controlada dos corpos na economia, a gestão distributiva dos valores e das aptidões
do sujeito, a maximização calculada e utilitária da vida (FOUCAULT, 2008). Em nome de um “futuro”
específico, que pode vir a ocorrer ou não, uma completa variedade de bombas é lançada, chacinas são
autorizadas, animais são rastreados, carbono é comercializado, florestas são disputadas (ANDERSON,
2010a; BECK, 2019). Em outras palavras, o que a pandemia de Sars-Cov-2 realçou foi o secular princípio
de deixar morrer – ou poder matar – para poder viver.
Um “futuro” incerto, desde o nascimento da biopolítica (DILLON, 2007), tem sido dobrado no aqui e agora
para garantir a estabilidade da vida, eliminar as surpresas ruins, criar a infraestrutura adequada de proteção
e controle (FOUCAULT, 1999). Estes dispositivos de segurança – que consistem em uma vasta rede de
máquinas informacionais, de tecnologias de comunicação, de decretos legais, de enunciados científicos, de
tratados internacionais, de instituições, de práticas de cuidados médicos, de princípios morais etc. – são
formas de gerir o acaso, o aleatório do viver, a ameaça iminente, a catástrofe inesperada e já aí (AMOORE,
DE GOEDE, 2008; BRUNO, 2013; EVANS, 2010). Pois é do perigo que a biopolítica, há muito tempo, extrai
sua justificativa para salvar a todos e almejar uma vida depauperada, asséptica e indolor.
Diante desse horizonte pandêmico, cabe questionar a ontologia histórica desses dispositivos que
caracterizam o modo como nos relacionamos com o tempo e a vida: de que modo, hoje, determinados tipos
de “futuros” tornam-se inteligíveis, praticáveis e governáveis? Como determinados “futuros” são desvelados,
racionalizados e enunciados como devendo ser corrigido e eliminado? Como esses “futuros” específicos
são encarnados no presente, a partir de que práticas eles são objetivados? E quais suas implicações para
a nossa subjetividade, nossa ética, nossa existência?
Com tais questões postas, o objetivo deste trabalho é colaborar para uma história política da verdade e do
governo da vida. A primeira contribuição é quanto às transformações epistemológicas inerentes aos séculos
XX e XXI. O gerenciamento biopolítico do “futuro” se tornou possível quando a vida, tanto em nível biológico
quanto em nível cultural, emerge como objeto de saber e de governo. O conceito de risco e as tecnologias
preventivistas tornaram-se o modo dominante pelo qual lidamos com os fenômenos próprios da espécie
humana e da natureza. Os tópicos 2 e 3 exploram as mutações no regime de verdade, intimamente ligado
ao conceito de risco, em que algumas estratégias de antecipação do futuro se fundamentam.
A segunda contribuição é quanto à articulação da biopolítica com o niilismo, aliás, da própria biopolítica
como a “concretização sócio-histórica, psico-política, afetivo-subjetiva do próprio niilismo” (PELBART, 2016,
p. 14). Ao assegurarem a perpetuação da vida a partir do alargamento dos modos de monitoramento e
controle, as democracias liberais implicam na destruição do perigo e, portanto, na atualização dos valores
e impulsos que negam a diferença. Em outras palavras, a biopolítica, naquilo que promete, é a história da
desqualificação do mundo e de fazer dessa negação o impulso de dominação humana. O modo de ser
biopolítico alude a um rebaixamento da vida: o nojo por todas as multiplicidades que a atravessam, pelo
aleatório que lhe dirige o inesperado e o inacabado do ser. O tópico 4 explora um pouco este tema tão
contemporâneo.



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2. Risco, população e futuro

A primeira menção da palavra “risco” ocorreu no século XVI na ocasião da navegação marítima. Resecum
ou do baixo latim risicu/riscu (GAMBA, SANTOS, 2006), a palavra marcava a ideia de suposição de que
algo ameaçava afundar os navios. Não havia certeza nem evidência sobre o que de fato ameaçava as naus,
apenas a inferência de um possível perigo oculto no mar. A palavra marcava também o rastro deixado pela
ameaça: um risco, um corte de navalha, uma abertura transversal no casco do navio.
Sua compreensão mútua dos rastros da ameaça e do perigo possível (amalgamando passado e futuro),
quando vulgarizada pela língua inglesa no século XVII, favoreceu a penetração dos significados de sorte,
chance e fortuna3 (GONDIM, 2007). Ganho evidente do sentido de “incerteza” e “possibilidade” que permitia
articular a vivência dos indivíduos à realidade que os cercavam: perigo, dano ou algum acontecimento infeliz
que pode acontecer a alguém (EWALD, 1991).
Buscamos a seguir traçar sinteticamente a evolução, a continuidade e a mutação deste termo quando
ultrapassou o limiar de cientificidade em duas modalidades de governo: o Estado de bem-estar social,
característico da modernidade, e o neoliberalismo econômico, característico da contemporaneidade.
Sabemos, contudo, que uma tal síntese se torna excessivamente resumida e parcial.


2.1 Risco e Estado de bem-estar social

No século XVIII, as antigas relações que os homens teciam entre si e com o mundo a partir do divino são
postas de lado. No lugar da cabeça do rei e da igreja, emerge a população administrada pelo Estado de
bem-estar social e pela ciência (FOUCAULT, 2007; cf. 1999); emerge a sociedade que é, num só tempo, a
acusadora e a julgadora do destino de cada um. Todas as formas de administrar ou conduzir o indivíduo
tornam-se “sociais”: direito social, medicina social, justiça social, política social, ciência social etc. O próprio
indivíduo, aliás, se concebe como um ser social que é estimulado ou limitado, incitado ou reprimido pela
sociedade.
A palavra risco se torna conceito central para as diversas estratégias de governo pautadas no bem-estar
social. Esta centralidade ocorre, por um lado, a partir da penetração das teorias de Pascal no termo risco
que, doravante, o torna passível de ser racionalizado: a “matematização” dos riscos passou a designar o
cálculo de probabilidade de um evento negativo ocorrer ou não e os ganhos e as perdas envolvidos no
evento. Por outro lado, esta penetração da matemática no conceito de risco ocorreu a partir dos problemas
abertos pela biopolítica, pelo gerenciamento da população, em meio ao desenvolvimento industrial e das
cidades, à alta densidade demográfica, ao fluxo de pessoas, entre outros.
O Estado de bem-estar social racionalizava os fenômenos da população através de esquemas estatísticos:
taxa de natalidade, de mortalidade, taxa de acidentes, de adoecimento, de invalidez (FOUCAULT, 1999,
2007, 2010a; ROSE, 2013; RABINOW; ROSE, 2006). A estatística forneceu à biopolítica moderna um
importante arquivo sobre a correlação entre os acidentes individuais inerentes ao desenvolvimento da


3 Vale destacar a relação que a noção de risco tem com o termo hazard quando passou a significar “acaso” ruim.
Etimologicamente, hazard vem do árabe ăz-zăhr que significa “jogo/lance de dados” e está intimamente ligado a
“incerteza” e a “aposta”. Chance, entretanto, vem do latim cadentia que significa o modo como os dados caem ou o seu
jeito de cair. Chance remete à ocasião e à disposição



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sociedade: acidentes que ocorriam todos os anos, em taxas fixas; eram fenômenos regulares e previsíveis
ao nível da população, mas imprevisíveis ao nível individual. Diante desta ocorrência, cabia ao Estado
proteger o cidadão dos acidentes ou, quando a proteção falhasse, assegurá-lo pelo dano. Daí a formulação
do modelo de seguridade social, onde o conceito de risco – já abarcando o sentido de cálculo de
probabilidade – foi crucial.
Na seguridade social, o conceito de risco não designava um evento ocorrendo na realidade, mas uma certa
maneira de racionalizar, tratar e tornar inteligível no presente certos eventos capazes de acontecer a um
grupo de indivíduos (DEFERT, 1991; EWALD, 1991). Ele objetivava certos eventos possíveis, os
fragmentava até desvelar seus condicionantes e os reorganizava. Ao invés de propor uma intervenção no
real baseando-se em estados reais das coisas, como nos modelos disciplinares – diagnosticado a loucura
ou a doença, por exemplo, a intervenção consistia no internamento –, o risco propõe uma intervenção no
real baseando-se no possível. Na seguridade social, isso funcionava ao inverter o significado negativo do
acaso em algo positivo. O seguro atribui um novo modo de existência a eventos antes temidos; ele cria
valor, capital.
Em certo sentido, o risco introduz, na relação com o possível, outra ideia de justiça social. A ideia de causa,
muito recorrente nas racionalidades disciplinares – “a” causa da loucura, “a” causa da criminalidade, “a”
causa do suicídio ou do adoecimento –, foi substituída pela ideia de repartição coletiva dos danos. Assim, a
tecnologia de risco, na seguridade social, não tinha o objetivo de decompor um evento possível para impedi-
lo de se realizar, mas justamente distribuir seu peso, compensar um dano, atenuar o sofrimento, dar
condições de enfrentar as consequências negativas do evento.
Através do conceito de risco, a biopolítica novecentista conseguiu extrair uma estratégia de governo da vida
que consistia em:
calcular os possíveis eventos danosos através da estatística (amarrando as recorrências do passado ao
presente) e do cálculo de probabilidade (amarrando o presente ao que o sucede);
distribuir a toda a população os custos dos eventos danosos que a afeta, mas que só atinge de fato alguns
indivíduos (o risco define a própria sociedade, mas cada indivíduo se define pela probabilidade de risco que
cabe a ele e cujo ônus é coletivo); e
capitalizar os possíveis eventos danosos, perigosos, ameaçadores, na medida em que cada indivíduo possui
um esquema de indenização, logo, um preço.
Portanto, a tecnologia de risco, a partir da seguridade, tornou possível calcular a incerteza, o acaso, o
aleatório, e indenizar aqueles desafortunados que sofreram os danos. A introdução do conceito de risco nas
estratégias de governamentalidade biopolítica sinaliza, deste modo, não somente a emergência de uma
nova técnica de racionalização do futuro, mas também a emergência de uma moral diferente dos modelos
anteriores. Calcular os riscos torna-se um empreendimento, uma exigência, em uma sociedade que clama
à população que preste atenção à sua saúde e ao seu futuro. Vale ressaltar, entretanto, que esse modo de
dobrar o futuro sobre o presente visava apenas atenuar os sofrimentos, especialmente ao coletivizá-los, e
não necessariamente excluí-los do real.

2.2 Risco e neoliberalismo

Durante a primeira metade do século XX, uma série de mutações microfísicas nos campos da saúde, do
direito, da economia, da psicologia, para citar alguns, exerceu forte pressão sobre o conceito de risco até
um novo deslocamento epistemológico e moral. A passagem das doenças infecciosas para as doenças



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crônicas, a passagem do tratamento asilar para a reinserção do doente mental nos circuitos de trabalho, a
passagem da correção prisional para a vigilância e o controle do crime, enfim, esses três exemplos – e para
ficar apenas neles – marcaram os novos problemas de um mundo não mais ordenado e organizado
espacialmente, mas sim circulante e globalizado. É com estes problemas que o conceito de risco precisou
se defrontar enquanto tecnologia de racionalização dos fenômenos próprios da população.
Segundo Castel (1991) e Rose (2013, 2000), na psiquiatria, o conceito de risco passou a definir a
combinação de fatores que são prováveis de ocorrer em determinados comportamentos. Ao invés de
produzir um diagnóstico e de inspecionar o corpo do paciente, a psiquiatria produz dossiês e perfis baseados
no risco (SCOOT et al, 2005; para outras implicações dessa nova reposição do paciente nas terapêuticas,
cf. CALLON, RABEHARISOA, 1998, 2008). As terapêuticas abordam as correlações de fatores e estatísticas
que são comuns a determinados comportamentos de doentes mentais. Ou seja, o objeto concreto da
intervenção é o próprio feixe de combinações constitutivo do sujeito doente, o estado pré-adoecimento
(GONDIM, 2007).
Deste modo, esta técnica de racionalização tenderá cada vez mais a constituir as condições de emergência
do perigo, da ameaça e dos danos. Em seguida, se deduzem delas as formas de antecipação e intervenção.
Daí a psiquiatria sugerir um sistema de medicalização social com o objetivo de prevenir e antecipar o
surgimento de algum transtorno médico (ZOZARNELLI et al., 2014). Mas a prevenção deve, ainda, obedecer
a lógica do controle, e não a da disciplina: ao invés de internar o suicida, aplica-se nele um remédio
antidepressivo e um esquema de vigilância antes da emergência do suicídio para reintegrá-lo à sociedade,
ao consumo (VAZ, 2015).
O mesmo esquema de inteligibilidade se deu na saúde pública. O fator de risco (VAZ, 2006, 2007a, 2007b),
largamente utilizado para as doenças crônicas (câncer, pressão alta, diabetes, obesidade, entre outros),
indica que um determinado comportamento não causa necessariamente um evento negativo, mas aumenta
a probabilidade deste evento ocorrer: passa-se da doença à sua viabilidade. Os agentes não-humanos
(vírus, bactérias, enzimas, proteínas, genes) foram cada vez mais assimilados pelo fator de risco como
condicionantes de um evento negativo.
O corpo, portanto, abriu-se ao porvir (VAZ, 2002) e ao ambiente: a noção de fator de risco mapeia os
comportamentos e as condições que estão articuladas à existência futura de um evento negativo. Extrai-se
desse arquivo um nexo probabilístico e estatístico e, no fim, são produzidos perfis de risco com vistas a
intervir antes da emergência da doença. Em outras palavras, ele vincula comportamento a eventos futuros,
presumindo que está ao alcance da ação humana a prevenção e reparação. Esta técnica de racionalização
da “incerteza” visa as condições de realização do possível em um determinado ambiente. Mas, ao contrário
de sua aplicação no Estado de bem-estar social, ela agora compreende que é admissível uma intervenção
nestas condições: o sofrimento pode ser evitado, e não somente atenuado. Cabe, então, instaurar um
sistema de pré-detecção que encarne o futuro na forma de cálculo e crie formas de evitá-lo.
Concomitante a essas modificações no campo da saúde, uma outra ocorria no nível da economia e na arte
de governar. A partir da segunda guerra mundial, uma crítica à figura do Estado tomou corpo em favor de
uma economia globalizada de livre-mercado (FOUCAULT, 2008; BROWN, 2019). O neoliberalismo criticava
a proteção do Estado ao indivíduo, argumentando que a seguridade social e a saúde pública estimulavam
o indivíduo a adotar comportamento de risco.
Para eles, a coletivização dos riscos tem dois efeitos: primeiro, um altíssimo custo econômico da saúde, por
exemplo, é distribuindo entre todos, gerando um interesse por parte de cada indivíduo de consumir ao
máximo os cuidados médicos; segundo, ao separar o indivíduo do custo verdadeiro de seu comportamento
com a saúde – uma vez que o Estado de bem-estar socializa os custos –, o que ocorre é um estímulo ao
comportamento arriscado e pouco interessado em proteção. Para o neoliberalismo, o mercado é o lugar de



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formação de verdade sobre o comportamento, de modo que é a partir do mercado – da disputa, da
concorrência dos sujeitos de interesses – que se pode avaliar a vida e suas qualidades físicas e psicológicas.
Portanto, para o neoliberalismo, o Estado paternalista desencoraja o comportamento racional. O contribuinte
prudente, que honra consigo e com o outro, paga os custos daquele que é avesso aos riscos, que não cuida
de si. Aqui, uma outra ideia de justiça passa a emergir lentamente e que exige uma descoletivização dos
custos sociais: privatização de, senão todas, parte significante das instituições públicas em benefício de
uma responsabilização por parte do indivíduo pelo seu futuro. Não cabe ao Estado aplicar o fator de risco à
população com vistas a protegê-la, mas transferir essa tecnologia ao próprio indivíduo, para que ele seja
responsável pelo seu futuro, pelos seus atos, e assim, sendo prudente consigo mesmo, toda a população
se beneficie.
Cada um deve ser responsável pelas suas ações e assumir o preço de suas escolhas. Ao invés de uma
política pública de cuidado com a saúde, cada um é convidado a adotar um estilo de vida saudável para
viver longamente e feliz. A lógica neoliberal do futuro como mérito funciona produzindo um nexo entre vida
e projeto, entre comportamento e realização, entre o agora e o amanhã: é próprio do homo oeconomicus
aplicar sobre si um sistema de vigilância que antecipa a todo instante os possíveis eventos danosos. Com
base nas evidências extraídas pelo sistema de vigilância, ele gerencia seu comportamento de modo a obter
o melhor empreendimento de si. Biomedicina e economia se tocam quando o ser vivo passa a compreender
a si mesmo como modelável, como capaz de maximização da performance de si, de desenvolver aptidões
biológicas e psíquicas para investir no futuro. A vida, a partir da segunda metade do século XX, tornou-se
força, capital humano.
Isto implica em uma nova tecnologia moral do risco (VAZ, 2008). Em primeiro lugar, na relação consigo, há
uma articulação entre informação, comportamento e valor: aquele que não é prudente consigo deve pagar
o preço de sua ação (COOPER, 2017), e não, como faz o Estado de bem-estar social, distribuir seu custo a
toda a população (ver quadro 1).

Quadro 1: diferenças e continuidades no conceito de risco entre o Estado de bem-estar social e o
neoliberalismo econômico

Risco Estado de bem-estar Neoliberalismo
Uso Fenômenos regulares de

uma população: acidentes,
mortalidade.

Fenômenos ligados ao
comportamento do indivíduo
(fator de risco)

Tipo de saber Estatística e cálculo de
probabilidades

Estatística, cálculo de
probabilidades, banco de
dados, perfis.

Modo de ação Prever um possível evento
danoso

Prever as condições de
emergência de possível
evento danoso

Função atenuar os efeitos
Antecipar respostas e intervir
antes que o dano se realize

Ação humana e sofrimento Inerentes ao social, portanto
inevitável de ocorrer

Ligado à liberdade de estilo
de vida, portanto pode ser
evitado

Moral Coletivização dos custos Responsabilização individual
pelas escolhas

Fonte: Elaboração própria.



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Em segundo lugar, na relação com o outro, há uma articulação entre prazer e dano: aquele que não calcula
um dano ao outro quando obtém prazer – por exemplo, uma mulher que está grávida e faz uso corrente de
tabaco e álcool – é tido como monstruoso, irresponsável, sem escrúpulo, inviabilizando uma pessoa de se
empreender (VAZ, 2010, 2014). Embora a satisfação seja o fim último para o homo oeconômico, toda a
conduta deve ser “compatível com o interesse de cada um e de todos. É por isso que o incitamento a ‘viver
perigosamente’ implica o estabelecimento de múltiplos mecanismos de segurança” (FOUCAULT, 2008, p.
405).
Portanto, o futuro como mérito (neoliberalismo) e o futuro manipulável (fator de risco) são incorporados nas
diversas tecnologias de vigilância: do corpo, do crime, da doença mental, do trabalho, do ensino, da
periculosidade. É interessante notar que estas técnicas de vigilância neoliberais foram amplamente
estimuladas pelas democracias liberais que, sem dúvida, promoveram a suspeita a digna categoria de
conceito científico e estratégia de governo (BRUNO, 2005, 2008, 2013).


3. Virtual, contingência e futuro

O conceito de risco dominou amplamente as estratégias de governo no século XX, mas ainda está em pleno
vapor com mutações estratégicas e servindo de inteligibilidade à complexa organização mundial (CASTIEL
et al., 2016). No seio dessas transformações, outras tecnologias de racionalização do acaso ultrapassaram
o “limiar tecnológico” (DELEUZE, 2005) na virada do séc. XX para o XXI; elas nos são radicalmente
contemporâneas – confundem-se com o tempo de nossas vidas aqui e agora, com a nossa moralidade – e
têm caracterizado os amplos e paradoxais sistemas de proteção das democracias liberais.
Tais tecnologias formam o conjunto das ações de antecipação do futuro baseadas no virtual. Em primeiro
lugar, elas respondem ao problema da contingência da vida que o neoliberalismo e o fator de risco
começaram a apreender (DILLON, 2007). Não lidam mais com a recorrência de fenômenos passados e com
a perpetuação dos fenômenos presentes, cujos efeitos compreendidos em um nexo linear de encadeamento
podem ser previstos e atenuados; nem mesmo lidam com fatores que condicionam um evento negativo
amanhã. O futuro, ao contrário, é problematizado como uma surpresa, uma disrupção, um brusco acaso;
ele sempre será radicalmente diferente do “agora” e potencialmente ameaçador. O nexo entre presente e
futuro se dá enquanto excesso e transbordamento (ANDERSON, 2010b; BECK, 2019; EVANS, 2010;
OPHIR, 2007).
Em segundo lugar, o excesso implica em uma diferença ontológica e epistemológica em relação ao risco.
Como excedente, o futuro não pode ser compreendido a partir do feixe de relações constitutivas do presente,
nem das atualizações do possível a cada momento. O futuro, para essas novas estratégias, possui o status
ontológico de virtual, potência de ser: uma ameaça que pode ou não acontecer, jamais sabemos (MASSUMI,
2007). A indeterminação é ao mesmo tempo objeto de saber e poder. Em termos epistemológicos, o
excedente não pode ser compreendido objetivamente (não há certeza!), mas seus efeitos podem ser
invocados afetivamente no presente, provocar temor e servir de justificativa para ações de proteção. Há,
nas ações de antecipação do futuro, uma proliferação de pensamentos que se valem do “como se”: fabulam,
imaginam, simulam, produzem narrativas e sentidos que apreendem e antecipam experiências de um futuro
que carrega consigo uma surpresa negativa, um impacto desastroso nas infraestruturas sociais. Estas
fábulas de futuros justificam intervenções baseadas no “poderia” (ANDERSON, 2010a).



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De modo geral, as novas estratégias de racionalização e governo do acaso, postas em cena pelas
democracias liberais na virada do último século, funcionam antecipando um futuro que pode ou não vir a
ser, mas cujos efeitos são desastrosos. Não à toa, elas se desenvolvem largamente no campo do combate
ao terrorismo, no campo de prevenção de catástrofes naturais, no campo de biossegurança de
doenças/pandemias trans-espécies, enfim, se desenvolvem no conjunto de eventos considerados difusos,
de difícil objetivação e potencialmente ameaçadores às democracias liberais. As ações de antecipação
visam proteger e cuidar das vidas valorizadas, enquanto outras, que não merecem ser vividas, são
abandonadas, destruídas e desfeitas.
Estas estratégias de racionalização e governo da contingência englobam as técnicas de precaução,
preempção e preparação (MASSUMI, 2007; AMOORE, DE GOEDE, 2008; ANDERSON, 2010a, 2010b).
Elas se valem de um vasto repertório de práticas discursivas que encarnam o futuro como indeterminado,
mas ao mesmo tempo passível de ser experienciado através da imaginação. Antes de passarmos a
descrevê-las, é preciso assinalar que, para apreender o evento potencialmente ameaçador, estas técnicas
enfocam, em primeiro lugar, a capacidade de inoculação e circulação do evento catastrófico em um mundo
que se estrutura como uma complexa rede de fluxos e conexões. Em segundo lugar, a capacidade da própria
vida social e biológica gerar o evento catastrófico, uma vez que ela é imprevisível, dinâmica e em perpétua
relação com não-humanos4; e, por fim, a capacidade dos efeitos de um evento catastrófico gerar ainda mais
eventos ameaçadores, já que eles podem se tornar causa a cada nova circulação.

3.1 Precaução

Esta técnica visa prevenir que um evento potencialmente ameaçador ocorra à uma população. A tecnologia
do risco também opera uma prevenção, mas há duas diferenças conceituais: 1) o risco previne com base
nas condições de emergência e na manipulação dos fatores ligados a essa emergência; 2) o risco pressupõe
um mundo que pode ser conhecido objetivamente, por isso sua função de prevenir atua sobre o real.
A precaução, ao contrário, se inicia ao identificar cientificamente – mesmo que a partir de critérios nebulosos
ou plásticos, pouco sistemáticos – uma ameaça potencial já em estado de irreversibilidade (AMOORE, DE
GOEDE, 2008). Em primeiro lugar, a precaução gera um sistema de alertas sobre o evento com alto grau
de incerteza (GONDIM, 2007). Em segundo lugar, o sistema de alertas antecipa “determinados futuros”
sobre o desenrolar do evento. Em terceiro lugar, cria mecanismos de compensação que visa desacelerar a
ameaça. Por fim, ela gera um excedente lucrativo sobre o excedente ameaçador do futuro (ANDERSON,
2010a), um excedente lucrativo interminável, infinito, que se autoproduz constantemente (BECK, 2019).
Por exemplo, diante do aquecimento global, a precaução alerta e sinaliza a irreversibilidade a partir de
cálculos que variam freneticamente, pois estão condicionados às associações, às relações, à não-
linearidade de fatores. O cálculo abarca uma rede que se estende das ações humanas sobre o planeta até
as variações no sol, na corrente marítima, nos ventos. Os perigos do aquecimento global surgem vinculados
espacialmente, mas seus “efeitos-causais” são calculados desvinculando-os do espaço e lhes dando um
alcance universal. O cálculo, como disse Deleuze (2008) sobre a sociedade de controle, é autodeformante


4 Como pontua Ulrich Beck no livro Sociedade de Risco (2019), “perigos vêm a reboque do consumo cotidiano. Eles
viajam com o vento e a água, escondem-se por toda a parte e, juntos com o que há de mais indispensáveis a vida – o
ar, a comida, a roupa, os objetos domésticos –, atravessam todas as barreiras altamente controladas de proteção da
modernidade” (p. 9). Em outras palavras, trata-se de ameaças decorrentes do próprio desenvolvimento tecno-econômico
que apreende a vida como manipulável.



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e contingencial, esfumaça o tempo e o espaço, é incerto e provisório. Por isso, o cálculo está sempre sujeito
à revisão à luz de novos dados, “sempre abertos a processos sociais de definição” (BECK, 2019, p. 27).
A sua função não é predizer qual “o nosso” futuro inescapável, mas gerar uma multiplicidade de futuros
específicos, mapear zonas possivelmente mais afetadas, produzir rankings de regiões que aceleram o
evento. Os cálculos não são práticas discursivas de predição probabilística; ao contrário, eles apenas tornam
sensível o imprevisível e nos fornece uma gama de respostas objetivas. Esta maneira de invocar o futuro
cria uma ameaça nebulosa – entre nós e em qualquer lugar – e como solução um mecanismo de
compensação que vise desacelerar o aquecimento e lucrar com ele: o comércio de carbono, por exemplo.
Em outras palavras, a precaução se baseia nos exames dos potenciais custos e benefícios da ação ou da
falta dela (GONDIM, 2007).

3. 2 Preempção

A preempção (MASSUMI, 2007), por sua vez, atua sobre as condições de emergência do evento
catastrófico, mas, diferente do risco, ela produz a própria condição de emergência da ameaça para então
anulá-la. Em certo sentido, a preempção atua sobre uma ameaça que ainda não se formou nem se quer
emergiu, ou mesmo foi identificada confusamente pela ciência. Ela lida com a incerteza do evento, sua
potencialidade: qualquer um e qualquer coisa, dentro ou fora da democracia liberal, pode engendrar o
perigo. Portanto, a primeira característica da preempção é compreender uma ameaça proteiforme
(AMOORE, DE GOEDE, 2008).
Se o inimigo é difuso, a intervenção deve ser igualmente difusa; se o inimigo é iminentemente ameaçador,
a intervenção deve ser igualmente iminentemente ameaçadora a ponto de provocar uma resposta real do
inimigo. Amplamente utilizada na “guerra ao terrorismo” – aliás, o termo surge no idioma inglês para abarcar
as relações entre o Direito e a indústria de armamento (CASTIEL et al., 2016) –, a lógica da preempção é
transformar os sistemas de segurança na imagem do terror para incitar o inimigo. Em outras palavras, a
preempção estimula o seu inimigo potencial a tomar forma emergente e, em seguida, intervir nele. Esta é a
segunda característica da preempção: transforma a ameaça potencial e difusa em uma ameaça real.
Isto implica em uma intervenção tanto no presente quanto no futuro, mas de modo que o futuro se torne
diretamente presente como efeito causal sem deixar de ser futuro. Isso ocorre no plano afetivo (EVANS,
2010). Ainda que não se tenha certeza quanto ao evento perigoso inerente ao futuro – pode ou não ocorrer
–, ele é sentido na forma do medo aqui e agora. O temor dos efeitos gera um excedente que funciona como
causa de uma ação no presente. A terceira característica da preempção é gerar uma política em potencial
formulada na lógica condicional: se, poderia, seria, teria etc. Por isso, as ações preemptivas nunca estão no
nível da verdade, mas no da eficácia (MASSUMI, 2007).
As práticas discursivas postas em cena pela preempção são os exercícios de imaginação de cenários e os
jogos estratégicos. Na “guerra ao terror”, onde os eventos ameaçadores eram invocados como pura
contingência, a imaginação de cenários serviu para sonharmos/fabularmos com o futuro, senti-lo
afetivamente no aqui e agora, encarná-lo no corpo. O resultado desta prática discursiva foi a produção do
medo de uma resposta tardia diante do terrorismo, seus desdobramentos e efeitos. Já os jogos estratégicos
– de caráter imersivo – permitiu que os participantes vivenciassem os cenários imaginados, explorassem
seus desdobramentos até a obtenção de uma experiência antecipatória. Estas práticas discursivas
invocavam um futuro “como se” que justificavam as ações bélicas e a implantação de dispositivos de
segurança (ANDERSON, 2010b).



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Em resumo, a preempção 1) forja uma ameaça proteiforme, difusa e potencial; 2) encarna essa ameaça
virtual em uma ameaça real; 3) seus efeitos são sentidos no nível afetivo, justificando intervenções em todo
o globo. A preempção afirma: “não sabemos, mas os afegãos poderiam ter armas nucleares caso não
interviéssemos e isso poderia ser desastroso para o mundo todo”. Nunca saberemos se tinham ou não, nem
mesmo se havia terroristas no Afeganistão, mas o medo de existirem – e no futuro emergirem como evento
catastrófico – alimentou a intervenção dos E.U.A no Oriente Médio e os diversos assassinatos de generais
afegãos após o 11 de setembro. E se hoje resta apenas a dúvida, é porque a intervenção foi eficaz – e não
necessariamente verdadeira – e deve continuar.

3.3 Preparação

Ao contrário da precaução e da preempção que intervêm na contingência de modo a prever eventos
ameaçadores, a preparação explora a complexidade do evento, orienta suas ações para as consequências
perturbadoras capazes de danificar e destruir vidas. Sua finalidade é construir um sistema de proteção
resiliente que atenue os efeitos negativos do evento e que os processos sociais sejam mantidos
normalmente (LAKOFF, 2017). A primeira característica da preparação é justamente lançar luz sobre “o
quê” interromperia e suspenderia a vida normal, “de que modo” isso ocorreria e “como evitar” a interrupção
durante o desenrolar do evento perigoso.
A preparação não orienta sua prática em torno de um inimigo proteiforme, difuso, fantasmagórico, nem
mesmo em torno de um evento irreversível e latente no aqui e agora. Ela faz emergir uma série de eventos
de grande magnitude, que podem possuir uma determinada frequência e que são chamados de
“catástrofes”: terremotos, pandemias, tsunamis, deslizamentos, furacões, enchentes, explosões etc. Esses
eventos são potenciais, e não da ordem do possível; destruições que ainda não ocorreram, porém são
imanentes ao desenvolvimento tecno-científico contemporâneo e, por isso mesmo, já são sentidos como
reais hoje. A preparação não objetiva a catástrofe em si, mas o potencial político das catástrofes (BECK,
2019) que constituem fortes ameaças à vida. Esta é a segunda característica da preparação: nomeia a
essência estrutural de um conjunto de eventos de ameaça potencial.
Ao nomear, a preparação obtém uma unidade relativamente estável daquilo que ameaça e em seguida
estabelece conexões com outras preocupações de segurança, de infraestrutura e de fluxos. Elas podem
integrar as práticas de encenação e jogo, de modo a gerar conhecimento sobre vulnerabilidades, fragilidades
e fraquezas. Na preparação, a encenação teatraliza catástrofes – operadas em termos do “e se ...”, como,
por exemplo “e se um terremoto....” – para examinar seus efeitos no tempo e no espaço. Em seguida,
estabelece relações imaginativas com outros eventos gerados pela catástrofe: após um terremoto, pode
ocorrer a explosão de uma fábrica, o congestionamento do trânsito, colapso no fornecimento de energia
elétrica, grupos dominarem outros, saques de mercadoria e dinheiro. O jogo estratégico, por seu turno,
encarna essas relações imaginativas, dando a elas um estatuto real, uma performance afetiva, direcionando
a atenção para elementos que merecem maior preparação.
Assim, a nomeação, a encenação e o jogo estratégico funcionam a) como pedagogia para convencer as
democracias liberais sobre a necessidade de planejar e investir recursos de proteção diante de um futuro
potencial e; b) como efeito evidencial para reivindicar no aqui e agora ações de preparação reais. Isto gera
promessa e demanda de resistência à catástrofe ligada às competências técnicas, de planejamento e de
administração de recursos. Portanto, a terceira característica da preparação é organizar as capacidades de
resposta de um conjunto distribuído de atores após um evento, de modo a garantir e cuidar das vidas
valorizadas em detrimento de outras (LAKOFF, 2017). Diante dos eventos catastróficos, as democracias



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liberais precisam lidar com “perdas de mercado, depreciação do capital, controles burocráticos das decisões
empresariais, abertura de novos mercados, custos astronômicos, procedimentos judiciais, perda de
prestígio” (BECK, 2019, p. 28).


4. Vida, incerteza e moral

O intuito da biopolítica do virtual – preparação, preempção e precaução, por exemplo – é compreender a
vida como “pura” contingência. As ações de antecipação do futuro penetram nessa indeterminação que elas
mesmas tornam inteligível, praticável e governável. Na pura contingência, o futuro é transbordamento
incapaz de ser conhecido objetivamente ou de ser previsto através de tendências passadas e atuais. As
democracias liberais lidam com um futuro que extravasa infinitamente o aqui e agora: é surpresa.
O presente carrega consigo a própria ameaça que precisa ser desvelada enquanto futuro, temida hoje sem
deixar de ser futuro, causa atual de um efeito que pode ou não vir a ser. Por isso, a vida é constantemente
tensionada à beira de uma catástrofe. Ela tornou-se ameaça e promessa, dano e oportunidade, destruição
potencial e incerteza produtiva. O paradoxo das democracias liberais consiste justamente em produzir e
conviver com a imanência do catastrófico (BECK, 2019; OPHIR, 2007): o mundo não é mais morada, e sim
aflição e temor – eis a nossa experiência subjetiva.
É neste contexto de tensão generalizada que algumas vidas são tomadas como mais importantes que
outras, são mais valorizadas e precisam ser melhor protegidas enquanto outras são abandonadas ou
ativamente apagadas – “CPFs cancelados”. As democracias liberais, no fundo, operam seleções que podem
ser interpretadas como a normalização do estado de exceção (BECK, 2019), o alargamento dos campos de
concentração (AGAMBEN, 2007), uma necropolítica (MBEMBE, 2018). Interessa-nos, para trabalhos
vindouros, no entanto, apontar para outra dimensão desta compreensão da vida como contingência e
catástrofe: a moral de uma suspeita do outro (PELBART, 2016), fortemente amalgamada com as políticas
neoliberais e as redes de comunicação.
As ações de antecipação desvelam o futuro como potencialmente excedente. Ou seja, prenhe de
catástrofes. Para proteger as vidas valorizadas, elas antecipam esse excedente hipotético através da
precaução, da preparação e da preempção. Porém, ao antecipar a catástrofe, um novo futuro transborda e
pode carregar consigo outras ameaças. Antecipar-se a um excedente é justamente produzir um novo
excedente, uma vez que a vida é contingência e nada garante sua salvação. Deste modo, a única resposta
possível é tornar-se ainda mais preparado. Mas a promessa de preparação só pode ser cumprida por meio
de mais antecipação. Isto, por sua vez, produz outro excedente, que exige outra preparação, que mobiliza
mais antecipação infinitamente.
O que se forma nas ações de antecipação é um círculo paranoico que se alimenta a cada volta, sem jamais
perder força. A paranoia e o medo são os modos como cada sujeito, nas democracias liberais, lidam com o
futuro, o mundo e o Outro, o correlato de uma prática de governo que faz do acirramento o lugar de produção
de verdade operada pela assunção de que nunca é muito cedo e que qualquer coisa e/ou indivíduo pode
representar uma ameaça potencial, ocasionando a destruição de vidas, inclusive daquelas que, segundo a
lógica que aí opera, merecem ser vividas. Na paranoia da ameaça infinita, “as coisas da vida cotidiana
convertem-se, praticamente da noite pro dia, em ‘cavalo de Tróia’” (BECK, 2019, p. 64; grifo do autor).
A suspeita do outro é o nosso próprio modo de ser e marca a desconfiança que temos de tudo o que nos é
diferente, nossa aversão ao devir, às singularidades e às singularizações. Ela faz do indeterminado, do que



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não se vê e não se percebe, um dos elementos epistemológico e ontológico do sujeito contemporâneo. E o
medo, a partir das técnicas de antecipação do futuro, torna-se parte integrante do pensamento e da vivência.
Suspeitamos – e a nossa suspeita alimenta infinitamente outras suspeitas – de que nossa projeção, nosso
empreendimento em direção ao amanhã, é constantemente ameaçado por um excedente que carrega
consigo a ameaça, mas uma ameaça que não é nossa, e sim do outro. Diante desse “inimigo” proteiforme,
clamamos por intervenção, vigilância e justiça. Como afirma Deleuze, “destruir, e destruir um inimigo
anônimo, intercambiável, um inimigo qualquer, tornou-se o ato mais essencial da nossa nova justiça. [...] A
modernidade do Apocalipse não está nas catástrofes anunciadas, mas na autoglorificação ao programada”
(1997, p. 55; grifo do autor). Antes de se tornar exceção à regra, a suspeita do outro faz de Si mesmo a
glória.


Considerações finais

Existem diversas formas de lidar com o futuro nas sociedades democráticas. Aqui, descrevemos duas: a
biopolítica do risco (com suas mutações internas) e a biopolítica do virtual. Elas nem sempre se opõem, e,
por vezes, até se reforçam. Antecipar o futuro, em ambas as modalidades, implica em um governo do acaso,
em uma subordinação acelerada do aleatório, seja produzindo um nexo causal, seja produzindo um nexo
eficaz. Ambas assinalam uma vontade de saber e de controlar as coisas por vir. Mas também assinalam a
negação radical da alteridade, a luta reativa com o devir em favor da autoglorificação.
O que nos interessa destacar é que a biopolítica cada vez mais tem operado uma clivagem na
contemporaneidade. Em primeiro lugar, enquanto experiência subjetiva da contingência, ela sustenta e tem
sido sustentada por um processo de valorização da negação: ao fazer da suspeita do outro, da paranoia,
do catastrófico, portanto, nosso modo de se relacionar com o mundo, a biopolítica introduz um valor
descartável às vidas consideradas ameaçadoras. É no vácuo dessa subjetividade paranoica, acreditamos,
que se inscrevem as lutas atuais em torno da empatia, da identidade de gênero, do lugar de fala, do racismo,
da eutanásia; é um contrapelo das vidas abandonadas.
Em segundo lugar, ela sustenta e é sustentada por mudanças na prática do dizer a verdade. Ao tentar
neutralizar as ameaças visando a manutenção de um tipo particular de vida, a biopolítica do virtual presume
que a vida e tudo o que a cerca é contingencial, que o futuro é um excesso. Logo, não há garantias. Uma
ameaça cresce condicionalmente no nível afetivo enquanto permanece futura. A política em potencial
descarta as causas reais em favor dos efeitos retroativos que, quando encarnados no presente, são eficazes
para exigir proteção e intervenção: o verdadeiro provém da eficácia.
Em último lugar, a biopolítica sustenta e é sustentada por uma ampla ontologia do contingente. Tudo deve
ser pensado e problematizado como contingente, incluindo o social, o econômico, o jurídico, a saúde, a
língua, o trabalho. Ao invés de nos descobrirmos como seres sociais, tal como ocorria na modernidade, que
implica em uma governamentalidade orientada aos fenômenos do social, agora descobrimos a nós mesmos
como incerteza, indeterminação, contingência. Isto marca a passagem de uma biopolítica de proteção da
população para a biopolítica de proteção dos sistemas vitais.


Referências:



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