Recepção: 28 Maio 2014
Aprovação: 20 Abril 2016
Resumo: Uma das principais práticas de sociabilidade engendradas pelos escravos do Cariri foi a formação de núcleos familiares. Por meio de sua experiência, os cativos constituíram diversos arranjos que excediam a noção tradicionalmente ideal de matrimônio e núcleo familiar. Em meio a essa multiplicidade, constituiu-se uma família mista, na qual os laços de parentesco dos escravos ultrapassaram os limites de sua condição social e alcançaram tanto os livres quanto os libertos que trabalhavam e conviviam a seu lado, em regiões que não se configuravam como áreas de economia agroexportadora. O processo de combinação entre condições sociais diferentes desencadeou a mistura de distintos tons de pele percebidos na população livre e cativa, tanto que, a partir da segunda metade do século XIX, a família escrava pode ser caracterizada essencialmente pela mestiçagem.
Palavras-chave: história, família escrava, mestiçagem.
Abstract: The formation of households was an important strategy for social relations for slaves the Cariri region. The captives formed various types of familial rela- tionships which transcended conventional ideas of marriage and family units. In this heterogeneous context, the concept of family that arose involved kinship ties that joined enslaved, free and freed people who lived and worked together, irrespective of their differing legal status. The family arrangements observed are in contrast with those described in studies of regions where agricultural exports were not an important economic sector. The presence of family mem- bers with different legal status led to racial mixing, with a variety of skin tones observed among both enslaved and free populations, with the result that, from the latter half of the nineteenth century, the slave family can be characterized larged as miscegenated.
Keywords: History, Slave Family, Miscegenation.
As pesquisas acerca da família escrava no Brasil, apesar de constantes no correr do século XX, têm apresentado análises variadas nos últimos anos, sobretudo no que se refere aos estudos sobre as regiões que não se configuravam como áreas de economia agroexportadora. Ao contrário do que a historiografia tradicional da escravidão sustentou, essas áreas guardavam um contingente significativo de escra- vos voltados para o trabalho na agricultura, pecuária e/ou confecção de artigos para abastecer os mercados locais.
Entretanto, como o fluxo de cativos era tendencialmente maior para as regiões vinculadas à economia de exportação, os espaços de mercado interno, mesmo dispondo de mão de obra escrava, precisaram suprir a falta de braços para o trabalho com homens livres e pobres ali existentes. Um resultado da divisão do mundo do trabalho por escravos, livres e também libertos foi o estabelecimento de uma teia de relações sociais, como a família mista ou mestiça.
Além de perceberem uma presença maior nas áreas conhecidas como de plantation, os estudos também apresentavam uma alta porcen- tagem de casamentos entre escravos de um mesmo dono, uma vez que, em grandes plantéis, havia uma maior oferta de parceiros para os cativos.
Autores como José Flávio Motta, Francisco Vidal Luna, Manolo Florentino e José Roberto Góes, Iraci Costa, Robert Slenes e Stuart Schwartz, entre outros, mostraram que, para espaços como São Paulo e Rio de Janeiro, as uniões aumentavam conforme o tamanho das escravarias.[1]
Essa percepção, apesar de coerente e correta, contribuiu para uma conclusão contrária quanto às regiões que não produziam para a exportação. No entanto, pesquisas em regiões de predomínio de peque- nas propriedades têm apresentado um considerável número de relações familiares entre os escravos, como é o caso do sul do Ceará[2] e o sertão pernambucano.[3]
Assim, voltado para análise da família escrava em regiões de economia para o mercado interno, este artigo contemplará a constituição e a manutenção de unidades familiares, entre os anos de 1850 a 1884, entre os escravos do Cariri Cearense — região do sul da Província que englobava, no século XIX, a cidade de Crato e as vilas de Barbalha, Missão Velha, Jardim e Milagres — e sua influência na formação social da população sertaneja que ali habitava.[4] As fontes aqui utilizadas são inventários post-mortem, fundos de manumissão, registros de batismos, contagens populacionais e o censo de 1872.
Cariri Cearense: uma população mestiça entre livres e escravos
Ao alcançar a segunda metade do século XIX, a região sul do Ceará resguardava uma população que de ano a ano aumentava consideravelmente e se apresentava cada vez mais peculiar, tanto em relação ao enlace e mistura de africanos, de nativos e do branco colonizador, quanto no que diz respeito à condição social que distinguia essa população como servil.
O interesse pela ocupação das terras do sul cearense provocou uma corrida migratória, oriunda, em sua maioria, dos demais sertões cearenses e províncias limítrofes, como Pernambuco e Paraíba, por exemplo. No último quarto do século XVIII, sua densidade demográfica era significativa, uma vez que, no recenseamento realizado por ordem do governador da Capitania, general João César de Menezes, o Crato já contava com 3.143 habitantes, e Missão Velha com 4.078, perfazendo as duas principais freguesias um total de 7.221 almas viventes, entre livres e escravos.[5]
A intensificação de correntes migratórias à procura de terras para estabelecerem-se como criadores, agricultores ou como trabalhadores para senhores, já consolidada naquelas paragens, ocasionou um processo contínuo de apropriação do espaço territorial, a partir do crescimento da população que desembocava em suas terras. A busca por ouro em meados do século XVIII apenas fez com que se acentuasse ainda mais o fluxo populacional, com uma considerável entrada de escravos africanos.
A partir da expedição realizada à procura de ouro em novembro de 1756, a introdução de africanos, na condição de cativos, foi intensificada nessa localidade, pois, até aquele momento, apenas contava em maior medida com a mão de obra indígena e de poucos homens livres pobres, utilizada desde sua ocupação. Segundo o governador do Ceará em 1750, Lobo da Silva, a concessão para as minas do Cariri só seria possível se os senhores interessados tivessem “as lotações dos seus Engenhos cheias da escravatura” e se a mina fosse toda composta de “escravos novos”. Por essa razão, foram trazidos 61 escravos de Angola; 10 da Costa; 2 benguelas e 6 “criolos”, especialmente para esse fim, pois os que já resi- diam na terra, nativos ou africanos, deveriam continuar trabalhando nas lavouras e com o gado, de modo a não desestabilizar a economia local, especialmente a agricultura, ainda muito incipiente.[6] Ademais, não havia motivos concretos que justificassem uma empreitada maior.
Por outro lado, a região também contava com a afluência de ho- mens livres e pobres, alguns com suas famílias, à procura de serviço e moradia, ou mesmo fugindo dos efeitos das secas que assolavam seus lugares de origem, munidos apenas de uma pouca destreza no trabalho com o gado e no amanho da terra.
Dessa forma, no final do século XVIII e início do XIX, foram significativos os aumentos da população livre e escrava das vilas do sul do Ceará. Em 1804, a vila de Crato contava com 19.590 homens livres e 1.091 escravos. Comparados com os números apresentados por Joaquim Alves anteriormente referidos, a população do Cariri teve um aumento de seu contingente de cerca de trezentos por cento em apenas vinte anos.
Por todo o século seguinte, essa migração não cessou. Em virtude desse processo, o Cariri, na segunda metade dos Oitocentos, não sofreu com a falta de braços para o trabalho, pois, segundo o Senador Pompeu,[7] o Ceará já contava, em 1860, com uma população de meio milhão de habi- tantes (504.000), e somente as cidades e vilas de Crato, Barbalha, Missão Velha, Milagres e Jardim possuíam cerca de um sexto desse montante, mais especificamente, 79.234 habitantes. De acordo com os censos realizados durante o século oitocentista e as estatísticas elaboradas por esse autor, na sua segunda metade, a população das cidades do Cariri sofreu uma forte alteração tanto em relação à quantidade de livres quanto à de escravos.
Durante todo o século XIX, o espaço do Cariri foi escolhido pelos trabalhadores de áreas limítrofes, em vista das incontáveis possibilidades que a localidade proporcionava.[8] As cidades de Milagres, Barbalha e Missão Velha tiveram um acréscimo de cerca de 30% em seu contingente populacional de condição livre. Segundo Joaquim Alves,
[...] os números censitários apresentam a região como uma das que crescem proporcionalmente, sem reduzir a média do aumento do seu volume no decurso dos anos, apresentando sempre uma percentagem a mais sôbre [sic] as operações anteriores.[9]
No sul da Província, a presença de escravos, ainda que apresen- tasse oscilações, era bastante significativa, como mostram os dados reunidos na Tabela 1. Chama a atenção a pequena variação no número total de escravos entre os anos 1860 e 1873: apenas 88 cativos a menos que na primeira contagem. Crato, Barbalha e Missão Velha eram as maiores detentoras dos cativos, mesmo quando seus números estavam em baixa. No ano de 1873, é perceptível um aumento considerável no número de cativos em relação ao ano anterior, possível consequência das disposições da Lei nº 2.040, promulgada em setembro de 1871, que obrigava os senhores a matricular seus escravos sob pena de perda da propriedade cativa.
Por outro lado, os processos de contagem e recenseamentos populacionais do século XIX eram, na maioria das vezes, inexatos, o que explica o fato de o número de escravos contabilizados para o Cariri apre- sentar variações. Ao realizar seu Ensaio Estatístico, o Senador Pompeu destacou que suas quantificações não demonstravam o real contingente cativo de toda a Província. Essa afirmação também pode ser verificada pela observação de outros registros, como a matrícula dos cativos dis- criminada nos fundos de manumissão, onde foi classificado um número mais expressivo de escravos.[10]
Na matrícula de escravos, para o caso do sul cearense, o maior número obtido na contagem indica uma quantidade aproximada de 3.543 cativos matriculados no ano de 1872, sendo 1.975 em Crato, 556 em Barbalha e Missão Velha, e 1.012 em Milagres. A partir desses números, é perceptível como o Cariri, mesmo numa década de questionamentos acerca do cativeiro, ainda baseava suas atividades econômicas no tra- balho escravo.
Estrutura de posse de escravos no Cariri Cearense
Por volta da década de 1850, a população cativa no Cariri somava 3.141 indivíduos entre homens, mulheres e crianças pertencentes a um extenso número de pequenos e médios proprietários.[11] Uma quantidade pequena, se comparada com a de livres no mesmo período — 72.928; contudo, pela importância desse trabalhador para a produção, a presença escrava foi significativa na região do Cariri e mesmo no Ceará.
O serviço realizado pelo cativo era largamente utilizado, no espaço urbano, em trabalhos domésticos e de ganho e, no meio rural, nas lavouras, fazendas de gado e engenhos de rapadura e aguardente. No Cariri, como em muitas sociedades do interior do Nordeste, tanto no período colonial quanto no imperial, o desenvolvimento não se fez alheio à utilização do trabalhador escravizado, sobretudo o africano e seus descendentes.
Em estudo sobre o Piauí durante os séculos XVII e XVIII, Tanya Brandão afirma a coexistência do trabalho livre e escravo na região pastoril do sertão e que “no reino metropolitano interessava a difusão do regime de trabalho escravo na Colônia, dando preferência ao africano”.[12]
Por outro lado, embora caracteristicamente distinta na quantidade e tamanho das escravarias e no tipo de produção agrícola para o comércio interno, é necessário ressaltar que a sociedade que se formou no sertão nordestino, assim como no restante do Brasil, estava baseada na relação entre proprietários e não proprietários e, por isso, essencialmente ancorada em laços de sujeição, obediência e proteção. Os cativos não podiam fugir à sua condição: pela legislação em vigor, eram indivíduos obrigados a servir a outra pessoa. Isso não os desumanizava, porém os colocava em situação deveras peculiar: eram propriedade legal de outro, deviam serviços e obediência a seu dono.
Entretanto, quanto ao sertão nordestino, a relação entre senhores e escravos se mostrava bastante rígida e complexa, pois, ao mesmo tempo em que denotava a relação de dominador e dominado, tentava evidenciar um caráter paternalista vivido e mantido pelas duas partes, em virtude da maior proximidade imputada pelos plantéis quantitativamente menores em relação aos da Zona da Mata pernambucana e do Sudeste brasileiro, por exemplo.
Essa postura minava toda a sociedade do Cariri, que chegou à segunda metade do século XIX enraizada nos princípios escravistas, de propriedade e disponibilidade do elemento servil, além de econômica e socialmente atrelada ao trabalho escravo.
Donos de poucos cativos
A posse de escravos no Cariri Cearense no século XIX estava bastante dividida entre as várias propriedades da região, não sendo apenas privi- légio dos senhores mais ricos e abastados. No entanto, de acordo com Yacê Feijó de Sá,[13] alguns tinham um número bem maior de escravos, como Antonio Manoel Sampaio, dono do Engenho Tupinambá, em Barbalha, um proprietário que, em 1870, possuía mais de cinquenta cativos, alocados no canavial, no engenho, em sua casa comercial e em sua residência, no centro da cidade.
Os 272 inventários utilizados neste artigo apontam um número menor de cativos em comparação com os do Engenho Tupinambá, avaliados por Feijó de Sá. O dono do maior número de escravos era Felippe Telles de Mendonça possuidor de vinte e oito cativos. Seguia-se o capitão João Pereira de Carvalho, senhor de dezenove escravos. Tamanha quantidade de cativos, sem dúvida, conferia a esses senhores certo grau de importância para a população sertaneja, pois, via de regra, os indiví- duos que detinham maior número de escravos eram donos de engenhos e extensas áreas de brejo com lavouras de cana-de-açúcar, seguindo-se os grandes criadores de gado. Outros, menos abastados, alcançavam a cifra de dezessete cativos por escravaria, conforme se observa na Tabela 2.
A fim de balizar as diferenças entre os plantéis em espaços voltados para a agricultura de exportação e os de concentração no mercado interno, o levantamento das propriedades do Cariri Cearense foi feito a partir das mesmas premissas utilizadas pelos estudos que analisaram lugares voltados para o comércio externo, como a pesquisa de Roberto Guedes. Tal artifício aponta as disparidades regionais na situação econômica brasileira. Como para Guedes, entende-se, aqui, que as propriedades eram classificadas como pequenas, médias e grandes, definição mensurada a partir da quantidade de seus escravos: as pequenas tinham até 10 escravos; as médias, entre 11 e 20 cativos; e as grandes, mais de 20 escravos.[14]
Do total de propriedades observadas nessa região entre os anos de 1850 e 1884, 49,6% delas eram de senhores cujas escravarias constituíamse de até cinco escravos. Em relação às que detinham entre seis e dez cativos, percebe-se uma grande diferença (105 propriedades a menos) em compararação com aquelas, sinalizando, dessa maneira, as restritas condições financeiras dos senhores, que os impossibilitava de possuir muitos escravos, mercadoria de preço bastante alto. Além disso, ainda havia na região uma considerável oferta de mão de obra livre e liberta.
Também era considerável o número de senhores que não dispunham do elemento servil dentre seus bens, nada menos que 89 das propriedades analisadas. Essa cifra chama a atenção por ser maior que o número de escravarias com mais de cinco cativos, pois todas elas somadas chegam apenas a um total de 48 (isto é, 17,7%). No caso do Cariri Cearense, isso poderia ser explicado pelo aumento do preço dos escravos após a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, aliado ao baixo poder aquisitivo dos senhores. Nesse sentido, predominavam no Cariri os pequenos plantéis, e as médias e grandes escravarias se diferenciavam bastante em relação às demais regiões brasileiras, inclusive de outros sertões.
A “situação” do Cariri aproximava-se da realidade percebida nos plantéis analisados por Eurípedes Funes em suas pesquisas acerca das regiões brasileiras do Pará e Goiás, espaços distantes dos grandes centros e da economia de plantation voltada para a exportação.[15] No estado nortista, multiplicavam-se os plantéis entre um e dez escravos, configurando-se como pequenas propriedades. Os grandes proprietários, por sua vez, chegavam a ter cinquenta ou mais cativos, sobretudo na primeira metade do século. A realidade de Goiás, na primeira metade do século XIX, é a que mais se assemelha à do Cariri: abundavam as pequenas escravarias e, entre as maiores propriedades, apenas duas tinham acima de trinta escravos. De acordo com Funes, 62% das propriedades, possuíam entre 1 a 5 escravos. Quanto à escravaria em Goiás, se “37,2% estava distribuída por 37 propriedades com mais de 30 escravos, apenas uma possuía 86 dos 119 cativos”.[16] Nesse sentido, em regiões de sertão, a posse de escravos se mostrava, em média, bastante pulverizada entre os senhores.
A semelhante conclusão chegaram Flávio Versiani e José Vergolino em suas pesquisas acerca do interior de Pernambuco, região fronteira à deste estudo: “tanto no Agreste como no Sertão, predominava um escra- vismo de pequenos proprietários”;[17] mais da metade dos senhores tinha cinco ou menos escravos, e cerca de 80% dos inventários não ultrapassava a posse de dez cativos. Esses exemplos reforçam a inferência de que regiões interioranas também eram caracterizadas pela posse de escravos, contudo, com uma realidade distinta da vivida no Sudeste brasileiro e mesmo na Zona da Mata Pernambucana e no Recôncavo Baiano — o Nordeste açucareiro —, como se observa nos estudos de Robert Slenes e Stuart Schwartz.[18]
Na análise de Slenes para Campinas no século XIX, a média de escravos por plantel era diversa. Para o Sudeste brasileiro, o autor observou, nas listas de matrícula de escravos elaboradas em 1872, 34 escravarias com mais de dez escravos, sendo 11 delas compostas de 20 a 49 cativos; 4 contendo entre 50 e 161, e duas que apresentavam, respectivamente, 339 e 473 escravos — o que pode ser considerado como uma cifra bastante alta para os últimos anos da escravidão no Brasil.
Ao analisar o Nordeste açucareiro, Schwartz identificou, nas paróquias do Recôncavo Baiano, em 1816 e 1817, 4.653 proprietários para 33.750 cativos, o que equivalia a uma média de sete escravos por proprietário. Todavia, quando essa estatística foi realizada por paróquia, a média de escravos por senhores apresentou diferenças sensíveis para cada região avaliada. Conforme Schwartz, os distritos meridionais do Recôn- cavo, de pequenos plantéis, se baseavam na produção para subsistência e de mandioca para os mercados locais.[19] Os distritos baianos vinculados à produção monocultora de açúcar, de seu lado, apresentavam plantéis maiores que os observados no Cariri, embora a maior concentração de proprietários estivesse ligada às pequenas escravarias, provavelmente porque, na Bahia, a distribuição da posse de cativos estava significativa- mente vinculada à forma de utilização da terra. Via de regra, em posses voltadas à produção agrícola, o número de cativos era maior.
Na região sul cearense, percebe-se o mesmo contexto constatado para o Recôncavo: pequenos plantéis e com a variedade do número de escravos relacionada com a forma de utilização da terra, diferenciando-se, contudo, por se fazer o esforço pela lavoura canavieira, embora deixando espaço significativo para a produção para a subsistência, notadamente com o plantio da mandioca.
De modo semelhante, as fazendas de gado também se voltavam para as culturas alimentícias, muitas vezes, entretanto, em localidades diferentes, pois alguns senhores que se dedicavam às atividades agropastoris dispunham de propriedades separadas, para evitar que o gado destruísse as plantações. Serve de exemplo o casal capitão José Joaquim de Macedo e Roza Perpétua do Sacramento, que criavam gado na propriedade do Riacho das Antas e, no Sítio Coqueiro, nas Ribeiras do Rio Salgado, desenvolviam o cultivo e o refino da cana em seu engenho, assim como a preparação da farinha da mandioca em seu aviamento; além do que, possuía uma razoável quantia aplicada em escravos, num total de 1:820$000.[20]
Entretanto, em outras propriedades, havia separação das atividades produtivas, haja vista que algumas se dedicavam exclusivamente ao plantio da cana e seu refino nos engenhos, outras somente à lavoura canavieira e, ainda, aquelas que apenas criavam gado. Em quase todas, porém, havia pequenas culturas com plantações de legumes e fruteiras para consumo próprio.
Nos inventários analisados, foram encontradas pelos menos 34 fazen-das que se dedicavam à criação de gado, dentre as quais 30 se ocupavam exclusivamente dessa atividade, contudo, nelas se constatava a menor utilização de mão de obra escrava. Era maior o número de propriedades que possuíam engenho e desenvolviam a lavoura canavieira: 48 máquinas de engenho, algumas de ferro e outras de madeira, que fabricavam, essencialmente, a rapadura destinada à comercialização. O restante ou se dedicava apenas à lavoura canavieira, e seus proprietários se serviam de engenhos de senhores mais abastados, ou desenvolvia apenas uma pequena produção para seu próprio sustento.
De todas as atividades, o engenho e os canaviais agregavam boa parte dos escravos. Eram diversos os serviços nos engenhos para a pro- dução dos derivados da cana — rapadura, açúcar e aguardente — e, em todos eles, os cativos podiam ser empregados.
Embora não produzissem em larga escala, como no Nordeste açucareiro, os engenhos do Cariri também demandavam muitos traba- lhadores. Como afirma Manuel Andrade, “quando se iniciava a estação chuvosa, [...] não tinha ainda o engenho concluído a moagem e já era tempo de limpar o mato para a cultura da cana”.[21] Além do plantio e da limpa no canavial, funções deveras desgastantes e perigosas, havia a necessidade de trabalhadores para transportar os feixes de canas, já amarrados, para a casa da moenda. Segundo José de Figueiredo Filho, “cedo mesmo o engenho caririense teve que alugar braços para o trabalho”.[22]
Mesmo havendo necessidade de destreza em certos ofícios para o trabalho nos engenhos, não existia uma divisão ou mesmo uma rigorosa definição de grupos para a realização dos serviços. Se fosse necessário, o trabalhador do eito também poderia participar da moagem da cana, ou seja, não havia categorias especializadas entre os escravos. Nos inventários do Cariri Cearense, de todos os cativos arrolados, apenas um foi classificado com uma especialidade no ofício de engenho, era José, um mulato de cinquenta anos “mestre de fazer rapadura”, escravo do tenente-coronel Vicente Amâncio de Lima.[23]
Um maior conhecimento acerca das atividades em que os cativos eram empregados foi possível após as disposições de matrícula dos escravos, em decorrência da Lei nº 2.040. A matrícula realizada no ano de 1872 foi anexada aos inventários dos senhores do Cariri, e nela constam informações relacionadas com a vida pessoal e produtiva do escravo, o que proporciona uma visão mais aproximada dos trabalhos desempenhados pelo elemento servil. Eram cozinheiros, lavadeiras, costureiras e muitos deles ligados aos serviços da agricultura.
Contudo, outra parte da escravaria ainda foi arrolada como “sem ofício” ou capaz de quaisquer serviços — o que ocorria na maior parte dos casos —, aos quais se supõe que fossem delegados os trabalhos mais árduos ou que exercessem mais de uma função. Nos levantamentos da população escrava, na década de 1880, já são mais perceptíveis os espaços que esses ocupavam, conforme se verifica na Tabela 3.
De acordo com Funes, os cativos que constam como sem profissão declarada, formam um universo de escravos
[...] que poderiam desempenhar mais de uma função. As mulheres escravas eram costureiras, rendeiras, fiandeiras, mas também prestavam-se aos serviços domésticos ou vice-versa e por certo em época de colheita, em especial do algodão, iam para a lavoura.[24]
A força de trabalho cativa era, assim, uma alternativa para o desem- penho de muitas atividades, segundo a análise de Funes para o Ceará: “o cativo foi incorporado ao setor produtivo estando presente na pecuária, na agricultura, em serviços especializados, nos serviços domésticos, ou ainda como escravos de aluguel e de ganho”.[25]
A zona rural detinha a maior parte dessa mão de obra, sobretudo até a década de 1870. No livro de registros de batismos da Matriz da Comarca dessa região, na cidade de Crato, foram contabilizados, em média, 66,9% de registros constando moradia rural, os chamados sítios, para 21% em zona urbana e 12,1% em que não consta um lugar específico de morada.[26] Tal cifra se deve em grande parte ao desenvolvimento de atividades agropastoris, sobretudo com lavouras de cana, pois é justamente nas propriedades que privilegiavam a lavoura canavieira que se percebe, na maioria das vezes, uma maior concentração de trabalhadores cativos.
O braço escravo, nesse sentido, era empregado em diversas atividades, e não apenas nas propriedades agrícolas. Isso explica a expressiva quantidade de senhores que tinham apenas um, dois ou cinco escravos arrolados em suas posses e uma diminuta quantidade de senhores donos de quinze escravos ou mais (Tabela 2). Ademais, o elemento cativo possuía alto valor monetário, o que qualificava a sua compra como um grande investimento, que certamente não seria realizado se não fosse para servir aos senhores em suas atividades econômicas. Entretanto, o número de cativos não era suficiente para a economia do Cariri Cearense, pois foi preciso aliar sua lida à dos trabalhadores livres pobres.
Trabalhadores livres e escravos: juntos no serviço, separados por condição
Ao lado dos cativos, homens livres e pobres compuseram a massa de trabalhadores pertencente à região do Cariri na segunda metade do século XIX. Ao contrário de uma rígida divisão social do trabalho,[27] uma categoria e outra realizavam quaisquer ocupações, ou seja, partilhavam o mundo do trabalho.
A partir do censo de 1872, a análise da população em relação às profissões exercidas aponta para o compartilhamento de determinados tipos de serviço por livres e escravos, sobretudo os trabalhos considerados agrícolas, ou seja, os ligados ao amanho da terra (Gráfico 1).
A oferta crescente de trabalhadores no Cariri da segunda metade do século XIX era essencialmente composta por livres. Aliás, já no século XVIII, a entrada de cativos não impediu a introdução do homem livre e pobre ali chegado e sem condições de obter terras para si e para sus- tento de sua família. Com a grande oferta de braços livres, os senhores tendiam a suprir sua demanda com esse tipo de trabalhador, embora não se desfizessem da mão de obra cativa.
Ademais, o considerável número de livres em relação aos cativos também se explica por ser essa a década final da escravidão, principalmente no Ceará, que teve a extinção da escravatura quatro anos antes do restante do Brasil, em 1884. Não obstante, os escravos aparecem no mencionado censo realizando serviços juntamente com os trabalhadores livres.
Nos engenhos, o trabalhador livre era bastante requisitado, especialmente no tempo das moagens, quando aumentava o trabalho e os poucos escravos que os senhores tinham não supriam toda a demanda. Segundo Figueiredo Filho, esse período era aguardado por patrões e empregados “como o acontecimento principal da vida rural caririense. O agregado tem trabalho certo e a família melhora de alimentação com o acréscimo da ração de guloseimas do engenho”.[28]
É somente durante a década de 1860, época do surto algodoeiro do Cariri, que se vislumbra uma maior divisão de livres e escravos nos espaços de produção, pois, ainda segundo Figueiredo Filho, o resultado da expansão da cultura algodoeira “era todo devido ao trabalho livre; o lavrador preferiu pagar aos assalariados 1$280 diários, a empregar nas roças seus poucos escravos”.[29] Ficou, assim, o trabalho livre essencialmente nas plantações de algodão, e o escravo, nas lavouras de cana com uns poucos trabalhadores a seu lado.
Guilhermo Palácios afirma que esse processo de mudança nas relações de trabalho
[...] teria a virtude de, além de aproveitar a suposta desocupação dos pobres no campo, impedir a incorporação dos altos custos da escravidão ao preço final do produto e evitar assim que as peculiaridades do modo dominante de controle social do trabalho e as conjunturas adversas em seus preços encarecessem o algodão regional e lhe tirassem competitividade no mercado internacional.[30]
Assim sendo, nas relações entre senhores e trabalhadores livres perpas- savam negociações que, aparentemente, os descaracterizavam da situação de sujeição: eles passavam a morar nas terras dos senhores, que, em troca, absorviam seus serviços nas atividades desenvolvidas na propriedade. Ao firmar moradia com o senhor de engenho, esses homens tinham seus laços bastante estreitados com seus patrões, devendo-lhes honra e respeito, pois tinham “que trabalhar na moagem na época das plantações, limpas, e atender sempre às necessidades do patrão. Só aluga seus braços a outrem, quando há escassez de trabalho no sítio onde mora”.[31] No entanto, “esses trabalhadores tinham permissão para derrubar trechos de matas, levantar choupanas de barro ou de palha, fazer pequeno roçado e dar dois ou três dias de trabalho semanal por baixo preço, ou gratuito, ao senhor de engenho”.[32]
Dessa maneira, conviveram, no espaço de produção, trabalhadores livres e escravos, um grupo dependente e muitas vezes fiel ao senhor, muito embora a condição jurídica ainda diferenciasse as categorias dentro desse grande grupo de trabalhadores. O trabalhador livre preferia ser jornaleiro, morador ou agregado do senhor, o importante era não estar sob a mesma condição jurídica que os cativos. Por outro lado, mesmo juridicamente separados, essa proximidade contribuiu para o surgimento da família de caráter misto: a união entre escravos e livres.
Cabras, caboclos, negros, pardos e mulatos: a construção da família mista
O significado de família é aqui entendido em termos de parentesco e de convivência familiar e não apenas pelo conjunto de núcleos familiares legalmente constituídos. Ao analisarem a constituição e a permanencia da família escrava, Costa, Slenes e Schwartz propuseram algumas definições para os modelos de união observados em Lorena, seu espaço de estudo: a família abrangeria
[...] o casal (unido pela igreja), presentes ou não ambos os cônjuges, com seus filhos, caso os tivessem; os solteiros (homens ou mulheres) com filhos e os viúvos ou viúvas com filhos. Em qualquer dos casos os filhos deveriam ser solteiros, sem prole e coabitar junto aos pais. Os viú- vos(as) isolados, bem como o solteiro(a) viver junto a filhos com prole, não constituem família, e enquadram-se no grupo denominado ‘pseudo famílias’ dividido em três subcategorias: uma relativa aos viúvos isolados (vale dizer que não constituíam família), outras referentes às pessoas em vivência com filho(s) e respectiva(s) prole(s).[33]
Essa concepção baliza este estudo, dado que a família é percebida a partir das relações estabelecidas pela consanguinidade ou mesmo por afetividade, como é o caso do compadrio. Dessa forma, também não são considerados como família os viúvos isolados, bem como o solteiro vivendo junto a filhos com prole. Assim, família abrange o conceito de pessoas unidas por vínculos afetivos ou por conveniência, que podiam contar ou não com a legalização da Igreja. Tal afirmação se configura como uma noção universal, pois pode ser aplicada à família de diferentes estratos sociais, e não somente à escrava.
A partir desse entendimento, podem ser admitidos os mais variados arranjos encontrados nas uniões cativas e o porquê de serem consideradas como unidade familiar, na medida em que todos se enquadram no conceito apresentado. Por isso, entende-se que qualquer escrava solteira que tivesse pelo menos um filho, apresentado ou não em batismo, formava, juntamente com o seu rebento, uma família, mesmo que “incompleta”.
Com essa concepção, foi possível perceber-se uma gama consideravelmente maior de laços familiares formados pelos escravos, e também compreender como estavam divididos seus grupos familiares. Na análise dos registros de batismos foram encontrados 369 unidades familiares, distribuídas em três categorias: endogâmica, exogâmica e matrifocal. As duas primeiras são entendidas por núcleos familiares, na medida em que se divisa a presença do pai e da mãe, com filhos ou não. A terceira é entendida como família incompleta, por se tratar de uma união não oficializada pela Igreja e também porque a presença paterna, em quase todos os casos, era desconhecida.
Ao acrescentarem-se as informações dos fundos de manumissão,[34] o número de famílias aumenta significativamente, pois passam a formar um total de 463 unidades, além de ser possível visualizar uma nova categoria, a denominada monoparental, que diz respeito a indivíduos na condição de viuvez, mas com prole, conforme evidenciado na Tabela 4.
A conceituação dos tipos de família segue uma categorização so- cial: a noção de endogâmico está relacionada com o fato de serem uniões compostas somente por indivíduos de condição escrava, independente- mente de pertencerem ou não ao mesmo proprietário; e exogâmico diz respeito às uniões de escravos com pessoas de diferentes estratos sociais, livres ou libertas. Em todos os dois casos é facultativa a presença de filhos já que, o casal, por si só, é considerado como unidade familiar, posto que é levada em conta a união legal, e tanto os núcleos endogâmicos quanto os exogâmicos são considerados como famílias completas.
Ao que parece, os casamentos entre escravos de donos diferentes no Cariri não contaram com o incentivo de seus senhores, assim como não ocorreu com os proprietários de Campinas, conforme análise de Slenes: “os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casamento formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e pessoas livres”.[35] Todavia, no Cariri, quando existentes, essas uniões se mostravam bastante duradouras, como no caso de Manoel e Anna, ele escravo de Antonio Leite Rabelo, e ela de Anna Maria do Espirito Santo, que batizaram quatro filhos nos anos de 1873, 1874, 1876 e 1877, uma união que durou, no mínimo, uma década.[36]
Outro caso é o do casal Rosa e Luiz, bastante peculiar, pois os côn- juges residiam em vilas diferentes, a mulher, em Jardim com seus filhos, ao passo que seu marido vivia na vila de Milagres, onde era escravo de Antonio Gonçalves Dantas, irmão de Francisco Gonçalves Dantas, senhor de sua esposa. Nesses casos, “não é difícil imaginar as complicações que podiam surgir quando esse tipo de união ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre tratamento humano e direitos de pro- priedade”.[37] Provavelmente, por essa razão, esse tipo de união tivesse sido bem menos frequente, conforme apresentado na Tabela 4.
Os demais casais arrolados na categoria das famílias endogâmicas são formados por cônjuges que pertenciam ao mesmo dono, perfazendo o total de 66 casos. Poucos, contudo, se comparados com outras modalidades de laços familiares, como a família exogâmica e a matrifocal. No entanto, o que explicaria uma cifra tão baixa de matrimônios legalizados? Slenes enfatiza que, para São Paulo, “a política de incentivar uniões ‘legítimas’ se traduzia, em parte, em reformas visando simplificar as exigências burocráticas da Igreja, e, portanto, o custo do casamento religioso”.[38] Esse custo diz respeito à exigência de uma “farta documentação”, bem como ao pagamento das provisões, que terminava por excluir os casais pobres desse sacramento.
No Cariri, ou mesmo no sertão, “viver junto” era prática comum em todos os segmentos sociais. Dessa maneira, o custo do casamento legal parecia ser o maior entrave à legalização, pois os escravos não tinham condições de arcar com essa despesa. A cobrança, então, caberia aos se- nhores, que decidiam se se responsabilizariam ou não por esse pagamento.
Quando faleceu, a senhora Umbelina Moreira deixou algumas dívidas, entre elas o pagamento dos alimentos comprados para seus escravos, entre os anos de 1858 e 1862, os dízimos dos seus ‘bichos’ e mais “de batizados e casamentos dos escravos” na quantia de 29$000 na matriz da cidade de Crato.[39] Assim, embora a união sacramentada pudesse ser o desejo de muitos cativos, eles nem sempre dispunham de economias para tal, e muitos ficavam à mercê da iniciativa de seus donos. Esse, inclusive, pode ter sido o fator de maior influência para o alto número de mães solteiras nas fontes a que se teve acesso.
Nesse sentido, o matrimônio dos seus escravos não era prioridade para os senhores do Cariri. Da documentação consultada, constam apenas dois proprietários com mais de um casal de escravos legalmente unidos: os senhores Domingos Gonsalves Martins e Pedro Telles de Quental. Dos cinco escravos pertencentes à escravaria de Pedro Telles de Quental, quatro formavam dois casais: o cativo Izidoro e sua esposa Maria, e Ignácio e Vitória. No caso desses escravos, o cruzamento dos registros de batismos e fundos de manumissão aponta também para ou- tras ilações. O primeiro casal, Izidoro e Maria, foi arrolado nos fundos de manumissão com quatro filhos em sua prole, contudo, em dois dos registros de batismos, Maria é dada como solteira.[40] O mesmo aconteceu com o segundo casal no registro de sua única filha, Josefa, que, nos fundos de manumissão, por sua vez, foram apresentados como casados e com filiação legítima, o que permite supor que os senhores preferiam realizar os casamentos na Igreja quando percebiam que havia certa estabilidade na união dos seus escravos.[41]
Por outro lado, aponta também para a consolidação e a permanência das uniões cativas no Cariri Cearense, em especial, para a atuação do escravo enquanto agente histórico. Os cônjuges Pedro e Delfina, pertencentes ao senhor José Pinheiro Bezerra de Meneses, são um caso bastante significativo da existência de uniões estáveis entre os escravos, nos anos de 1850 a 1884. Esse casal, na década de 1870 e início de 1880, batizou seis filhos: no ano de 1873: João; Benedito em 1875; Vicente em 1876; João em 1879; Maria em 1880 e Pedro em 1882. Pode-se, então, considerar essa relação como de duração considerável, dadas as condições a que os escravos estavam submetidos e também, como afirma Slenes, porque as relações de 40 anos eram raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade.[42]
É preciso que se ressalte, conforme Slenes, a veracidade quanto ao conteúdo expresso nos documentos a partir do fato de que as informações contidas nos registros de batismos e fundos de manumissão não são contraditórias; ou seja, os dados fornecidos sobre os escravos, citados em uma e outra fonte, não eram excludentes. Mas, vistos em conjunto, permitem certa apreciação da trajetória de tais cativos. Os senhores, de acordo com a análise combinada das fontes, classificaram com exatidão seus escravos no levantamento do Governo Provincial do Ceará em 1882, tornando, assim, segura a análise das relações afetivas estabelecidas pelos cativos pertencentes ao espaço caririense de fins do século XIX.
A família de Pedro e Delfina é uma das primeiras da listagem de manumissão. Não há dúvidas de que as fontes apresentam as mesmas pessoas: consta o mesmo nome do dono, José Pinheiro Bezerra de Meneses, tanto nos registros de batismos quanto nos fundos de manumissão, bem como desse casal de escravos. A primeira vez em que aparecem nas fontes é no ano de 1873, batizando, ao que tudo indica, seu primeiro filho de nome João. A ele seguem-se mais cinco infantes.
Em 1883, toda a família aparece arrolada na classificação para a libertação por meio dos fundos de manumissão, em que constam cinco pessoas na unidade do casal, sendo dois deles livres e menores de oito anos. Considerando-se que esse levantamento foi realizado no ano de 1883, tem-se para o casal Pedro e Delfina pelo menos dez anos de união.
A historiografia também se refere à possibilidade de que uma parcela das mães solteiras apenas legitimassem suas uniões após o nascimento dos primeiros filhos.[43] Para o Cariri, todavia, deduz-se que a demora na oficialização do casamento pela Igreja ocorresse mais por vontade dos senhores que dos próprios escravos.
Por outro lado, mesmo sendo as uniões endogâmicas bastante visí- veis e estáveis, percebe-se que, no Cariri, sobrepunha-se à quantidade de uniões legais entre escravos e pessoas livres. Dos 139 núcleos familiares, 48,9% eram compostos por escravos casados com livres ou com libertos. Em três vilas do Cariri, esse tipo de união ocorreu com maior frequência: dos dezenove escravos que foram indicados para emancipação pelo governo provincial pelos fundos de manumissão, em 1883, nas vilas de Missão Velha e Barbalha, dezesseis estavam casados com pessoas livres; em Jardim, o percentual de escravos dessa categoria atingia os 90%.
Dos 68 casos em que um cônjuge era cativo e outro era livre ou liber- to, 63 casais possuíam filhos e cinco unidades familiares eram constituídas apenas pelo marido e sua mulher. No que concerne à divisão por gênero, existiam 26 homens casados com mulheres livres para 42 casais em que a mulher era cativa. Dos registros de mães cativas e cônjuges de outra condição social, 32 dos parceiros eram livres, e 10 eram de libertos, o que indica, pelo menos nessa última categoria, um processo ativo de libertação da família, dado que o termo liberto indicava necessariamente um passado cativo.
A ausência de casamentos de escravos com parceiras libertas indica uma preferência ou mesmo uma estratégia dos cativos em evitar filhos escravos — uma vez que era a condição jurídica da mãe que marcava o filho. Além disso, a luta pela alforria estaria sensivelmente mais facilitada, pois seria apenas por sua liberdade.
Nessa configuração, percebe-se que, por se ter registrado um significativo número de proles oriundas desse tipo de matrimônio, esas uniões parecem não ter sido um entrave para a sociedade. Pelo contrário, ocorreram com tanta frequência que o Governo Provincial, quando da libertação pelos fundos de manumissão, precisou lançar a circular de 09 de janeiro de 1883 instituindo a prioridade de libertação para as famílias mistas; ou seja, escravos casados com pessoas livres ou libertas.
Entretanto, de todas as classificações, a família matrifocal é a mais significativa em número.[44] Esse grupo é formado essencialmente por mulheres solteiras com filhos, com apenas a exceção de um homem classificado pela Junta como solteiro com parentes em Milagres: era o escravo Raimundo, de 15 anos, que tinha quatro pessoas em sua família, provavelmente seus irmãos.[45]
O número de famílias matrifocais no Cariri se sobrepunha, visivelmente, aos demais tipos de unidades presentes na comunidade cativa, pois somavam 67,8% das famílias identificadas nas fontes. Essa, contudo, não era uma peculiaridade da região caririense, visto que tal configuração também predominava em todas as regiões escravistas brasileiras. Diante disso, a significativa recorrência desses arranjos não permitiu que eles fossem desconsiderados, porém, como não possuíam legalização sacra, foram entendidas como ligações promíscuas.
Essa alta porcentagem de mães solteiras provocou, por muito tempo, uma visão distorcida acerca da presença, necessidade e importância dos laços familiares entre os cativos. Charles Rybeirolles manifestou essa percepção quando de sua viagem a algumas regiões brasileiras. Segundo este autor, não há famílias, apenas ninhadas entre os cativos, enfatizando a existência de crias animalizadas, em vez das relações de afetividade e consanguinidade dos escravos.[46]
Ao longo dos caminhos seguidos para a percepção de unidades familiares cativas pela nova historiografia sobre a escravidão, a compreensão das relações entre escravos como promíscuas se mostrou equivocada, dando espaço à observação de uma pluralidade de arranjos familiares.
Alteraram-se os pressupostos, modificou-se a forma de ver as relações entre os escravos. A partir dessas mudanças, passou-se à compreensão de que, no decorrer de suas trajetórias, os cativos desenvolveram laços de afinidade, solidariedade e amor. De tal forma que Slenes afirma ser a família “centro de um projeto de vida”, que “não se reduzia a estratégias e projetos centrados em laços de parentesco. Ela expressava um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de suas esperanças e recordações”.[47]
Mestiçagem no Cariri Cearense da segunda metade do século XIX
No jornal O Araripe, periódico veiculado na cidade de Crato entre os anos de 1855 e 1864, os anúncios de fugas dos escravos constantemente apresentavam as misturas étnicas que tornavam o elemento servil tão peculiar. Assim ocorre no relato dos escravos Antonios:
Ao abaixo assignado fugirão dois escravos em janeiro de 1846, e forão em demanda do Rio São Francisco, de onde vierão verídicas noticias: os escravos tem os signaes seguintes. Antonio, cabra filho de tapuia com mulato, ha de ter a idade de trinta e oito annos, oficial de carpina, e sapateiro, sabe ajudar missa, e alguma coisa lê: esse escravo consta axar-se vendido por um velhaco ao Coronel Ernesto da Costa Medrado: o outro escravo também se xama Antonio, cabra trigueiro, filho de uma molata com negro, é alto em proporções [sic], tem o rosto redondo, meia barba, dentes limados, pernas grossas, ar devoto, canhoto e é amigo de contar estórias a meninos.[48]
Em primeira análise, o anúncio parece se conformar com os demais avisos corriqueiros de evasão de escravos proclamados pelos jornais O Cearense, de Fortaleza, e O Araripe, do Crato. São dadas todas as características físicas dos Antonios, bem como o dia da fuga e o que apreciavam fazer, provavelmente nos momentos ‘livres’. Percebem-se fortes indícios do comportamento dos cativos, como a maneira utilizada por eles para se movimentar e, principalmente, de aspectos das suas origens.
O primeiro Antonio foi apresentado como cabra filho de tapuia com mulato, o que dá a dimensão alcançada pela família escrava que se formou nessa região. Antonio era filho de índio com mulato, a mistura do branco e do negro, ou o encontro das três raças, que, nas palavras de Oliveira Vianna, eram a branca, a vermelha e a negra.[49]
Da mesma forma, o segundo Antonio classificado como cabra trigueiro, filho de uma molata com negro aponta para a mestiçagem dos cativos. Ao apresentá-lo como cabra trigueiro, seu senhor tentou dar a dimensão da tonalidade de sua pele, mais escura. E assim os cativos começavam a ser percebidos pelas diferentes tonalidades de pele, que evidenciava um processo intenso de mestiçagem.
Dessa maneira, com o decorrer dos anos, esse processo de for- mação da família escrava alcançou maior evidência a partir das novas distinções de cores que eram atribuídas aos cativos, como pode ser observado na Tabela 5.
No decorrer do século XIX, a presença do escravo africano tornou- se diminuta, sobressaindo-se aqueles nascidos no país e, em especial, na região. Para o caso de Fortaleza, Mariana Assunção, em análise de inventários post-mortem, constatou que
[...] os escravos africanos não eram maioria dos cativos do Ceará, mas sim os brasileiros. De acordo com as denominações cromáticas dos es- cravos, os mulatos perfazem os maiores percentuais, compondo 53,3% dos brasileiros classificados pela cor da série. Em seguida aparecem os cabras com um pouco mais da metade deste percentual, perfazendo 39,9%. A lacuna maior recai sobre os negros, pretos, fula e mestiço, que juntos constituem uma minoria quase insignificante, pois chegam a 7% dos escravos brasileiros inventariados segundo a cor.[50]
Quando contados por origem, mesmo não tendo sido apresentada a classificação de 223 cativos, percebe-se que o número de escravos considerados nacionais se sobrepõe em muito ao dos escravos africanos. Esse resultado, contudo, pode ser explicado pelo fato de que, ao porto do Ceará, não chegavam navios negreiros, de modo a facilitar a compra de escravos originários da África. Somava-se a isso o fato de a entrada de africanos estar oficialmente proibida desde 1831, quando todos os aportados ao Brasil e provenientes do tráfico transatlântico deveriam ser considerados livres.
Caetano De’ Carli, em pesquisa sobre a família escrava no sertão pernambucano, também evidenciou, para esse mesmo século, a diminuta quantidade de africanos em relação aos escravos nacionais: “79,6% dos escravos são referidos como nascidos em Pernambuco, 0,9% na África, 8,8% na Paraíba e 1,8% em Alagoas”,[51] o que permite a inferência de que, no século XIX, os cativos das províncias do Norte eram, em sua maioria, nacionais e, consequentemente, miscigenados.
Por outro lado, os escravos nacionais, já mestiços, chamam a atenção pela diversidade classificatória que excedia a categoria dos pre- tos, pardos e caboclos da contagem oficial, muito embora nunca fossem contados caboclos entre os escravos em nenhum dos levantamentos populacionais realizados para o Ceará. Isso se dava pela proibição, ainda nos Setecentos, da escravidão indígena. Contudo, como os caboclos e índios sempre eram contados em número diminuto, a probabilidade era de que estivessem nas variadas categorizações dos mestiços.
No entanto, surgiram os cabras, crioulos e mulatos. E esses em maior número que os cativos classificados em categorias oficiais, como os pardos, por exemplo. É possível que, por serem escravos, as definições tivessem de ser mais específicas, como nos anúncios apresentados no início deste tópico, daí aparecerem novas categorias. Ademais, essas classificações tinham mais raiz na percepção social, do que nos padrões institucionais utilizados para as contagens populacionais. Dessa maneira, as classificações de pardos, mulatos, caboclos, cabras e pretos, atribuídas aos cativos, poderiam assumir dimensões diferenciadas.
Na primeira metade do século, de acordo com a Tabela 5, a maior parte dos cativos arrolados nos inventários foi classificada como crioula ou mulata, descendentes mais próximos do africano. Na época, tais termos podiam ser empregados para dar a ideia de “um escravo que nasceo na casa do seo senhor”[52] ou mesmo de um indivíduo nacional. Na segunda metade do século, o número de crioulos diminuiu substancialmente em relação a outras modalidades de tons de pele. Pretos, pardos, caboclos e cabras se configuraram como designações mais específicas dos cativos. De acordo com Mary Karasch, à medida que os escravos se tornavam nacionais, os senhores mudavam a maneira de classificá-los: os africanos eram designados pelo local de origem, e os nascidos no Brasil pela sua cor.[53]
O mulato e o pardo eram considerados como indivíduos resultantes da miscigenação entre o branco e o negro, tomados, algumas vezes, como sinônimos. O ponto de diferença entre os dois era comumente apontado pela cor da pele, pois o primeiro apresentava uma tonalidade mais forte, mais próxima do negro, posto que era descendente direto dele. Segundo Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez e latino, produzido entre os anos de 1712 e 1727, o verbete mulato já indicava “filho e filha de branca e negro ou de negro e mulher branca. Este nome mulato vem Mu ou mulo, animal gerado de dois outros de diferente espécie”.[54]
Quanto ao pardo, por sua vez, mostrava uma pele mais clara, mais amarelada; e, de acordo com Raphael Bluteau, uma “cor entre branco, & preto, própria do pardal donde parece lhe veio o nome. Homem pardo: mulato”,[55] não sendo necessariamente filho de branco com negro. É interessante ressaltar que, no verbete pardo, há uma remissão para o verbete mulato e que os termos negro e preto eram tomados como sinônimos, definidos, respectivamente, como “filho de pais negros”[56] e como “negro, escravo”.[57]
Para José D’Assunção Barros, a definição pardo estava relacionada com uma categoria que “o indivíduo não raro ostentava com certo orgulho para distanciar-se mais da ideia de escravidão associada aos negros”, aliado a um “preconceito que postula para o indivíduo assim classificado um ‘estar a meio caminho do branco’, embora sem chegar lá”.[58] Já com relação aos mulatos, o autor enfatiza que “mostravam-se capazes de se movimentar melhor através da mediação entre dois mundos, de melhor negociar com sua ‘pigmentação diluída’ a simpatia do branco escravocrata”.[59]
Barros considera que as duas categorias, a dos pardos e a dos mulatos, estavam a meio caminho do branco, mas indicam, ao mesmo tempo, que sofriam os preconceitos advindos de sua cor. De toda forma, a tonalidade de pele mais clara facilitava, ou mesmo permitia, que ex-escravos mulatos e também pardos libertos pudessem se inserir com maiores chances de sucesso na esfera dos brancos. Mesmo os mulatos eram considerados como pertencentes a uma categoria com relativa aceitação pela sociedade, pois, pela mistura com o sangue europeu, “os senhores preferiam utilizar os escravos mulatos para executar trabalhos domésticos, quando se tornava necessário uma aproximação dos escravos com os mesmos ou com membros de sua família”.[60]
Contudo, chama a atenção o elemento cabra.[61] A partir da década de 1830, escravos considerados como pertencentes a esse grupo apresentam um aumento significativo e contínuo, especificamente sobre as categorias mais numerosas que prevaleciam na primeira metade dos Oitocentos. Segundo Karasch, o termo ‘cabra’ designava os cativos de raça mista, provenientes de outras misturas.[62] Nesse caso, o cativo pertencente a essa categoria apresentava uma tez tipicamente mais escura que os outros, pois era “mestiço de mulato e negro”.[63]
Barros, em análise da prancha número 22 de pintura de Jean-Baptiste Debret, ressalta a percepção do pintor a respeito de uma escrava que referenciou como cabra, caracterizando-a como “crioula, filha de mulato e negra, cor mais escura que o mulato”.[64] Sua indicação já principiou com a ênfase na diferenciação relacionada com a naturalidade, filha de mulato e negra, mas o artista ainda achou propício mencioná-la como uma categoria de pigmentação da pele mais escura que a do mulato.
Laura de Mello e Souza, analisando a adoção de crianças abando- nadas sob ônus do Senado Provincial de Mariana-MG, observou que a Câmara daquela cidade exigia documento que comprovasse a brancura das crianças para serem doadas às instituições ou a pessoas encarregadas da criação de expostos, mesmo sendo elas livres conforme o Alvará de 1775. Se a criança fosse considerada mulata, perdia o benefício, além de ter de repor o montante já pago pela Câmara.[65]
De outra parte, é possível que inventariantes e autoridades judiciais, no momento de produção do documento post-mortem de um indivíduo, o classificassem com base em características fenotípicas, sobretudo a cor de sua pele. Certamente, essa classificação implicava melhora ou piora das condições sociais dos indivíduos, posto que, na sociedade brasileira, a cor da pele indicava um passado de escravidão ou ascendência cativa.
Nada obstante, no Cariri Cearense, ao longo dos anos, algumas categorias passaram a se sobrepor a outras. Quando observado o levan- tamento dos escravos nos inventários, é possível perceber-se que cabra, como designação de uma cor, ganhou espaço entre os cativos ao longo dos Oitocentos.
A classificação dos escravos, embora não tivesse o caráter de oficialidade que tinham as contagens populacionais, apontou, em relação a essas, sensíveis diferenças, como visto na análise da Tabela 5. Como demonstra o Gráfico 2, cabras, mulatos e crioulos passaram a ser as designações a que mais recorreram os senhores de escravos do Cariri Cearense, e, em relação a esses, os considerados pardos, pretos e caboclos tiveram recorrência mínima.
No entanto, o que chama a atenção é o fato de as categorias que envolviam a participação do africano ganharem mais espaço nos padrões escravos. As designações cabras, mulatos e crioulos não apenas apon- tavam para uma escravaria mestiça, como também marcavam a forte presença do africano nesse grupo social. Roberto Guedes percebeu que, para a região em estudo (Porto Feliz/SP),
[...] a cor dos escravos dependia da presença africana. Na medida em que os negros africanos se tornavam mais numerosos, mais ausentes eram os pardos crioulos, ressalvando-se, porém, que nem todos os negros eram africanos e nem todos os pardos eram crioulos.[66]
O autor ainda explica, em rodapé, que “em síntese, africanos e crioulos são predominantemente de cor negra, mas os pardos, em sua grande maioria, são crioulos”[67] e não têm relação com o sangue africano.
No caso do Cariri Cearense, como não havia entrada massiva de escravos africanos na região, ou mesmo na Província, os cativos que ali existiam eram, via de regra, nacionais; em outras palavras, eram crioulos, tomando-se esse termo como designativo de descendente de africanos. No Gráfico 2, é possível perceber-se como, ao longo do século XIX, houve um constante uso desse termo como classificação para cativos, embora não fosse a maioria, fato explicado, como referido anteriormente, por não haver desembarque de africanos na Província na época em exame.
De toda maneira, a lógica apontada por Guedes parece também ser possível para a realidade sul cearense. Com os escravos, a utilização do termo pardo era bastante incomum, uma vez que essa designação servia mais para indivíduos egressos do cativeiro. Mesmo assim, na década de 1870, a recorrência a esse termo para classificar escravos aumentou um pouco, artifício que poderia ser explicado pelo caráter mestiço que tinha a escravidão sul cearense, bem como pela aproximação da abolição, que faria com que senhores já pensassem na integração de seus cativos com seu contingente de agregados e moradores.
Por outro lado, a classificação cabra é a mais recorrente e mais curiosa no gráfico apresentado. Entre as décadas de 1820 e 1830, o número de escravos assim classificados subiu aproximadamente nove pontos percentuais e continuou subindo nas décadas seguintes até 1860, quando começou a decrescer. Nada obstante, mesmo caindo o número de escravos arrolados com essa designação, não deixou de ser a mais utilizada pelos senhores até a abolição, que, no Ceará, ocorreu em 1884, como já referido.
É também provável que esse termo implicasse um conceito regional, com características de sertão. Nas recordações escritas por Paulo Elpídio de Menezes, os cabras compunham a camada de trabalhadores livres e pobres na virada do século XIX para o XX, “moradores nos sítios do pé-de-serra do Araripe e nas terras dos Senhores-de-Engenho, do Brejo”.[68]
Antes de 1884, porém, indivíduos dessa categoria no Cariri eram trabalhadores livres e pobres, mas também escravos — os de nação cabra, como referem os inventários, que povoavam a região do Cariri, conforme relatos de visitantes na década de sessenta do século XIX. Segundo Francisco Freire Alemão, nas comemorações religiosas, preenchendo
[...] o corpo da Igreja havia mais de mil mulheres pela maior parte “ca- bras”: ou mamelucos [...] De tarde, houve processão, q’ vi passar pela nossa rua, da janella [...] e por fim grande nº de cabras de camisas por cima das seroulas, mas limpas, o q’ nos parece corresponder as mulheres de lençol na Igreja.[69]
As designações cabras e mamelucos indicam a presença do ele- mento indígena entre os escravos. No caso do sul cearense, a população nativa, com forte presença na ocupação, foi praticamente dizimada quando da sua colonização. Os sobreviventes foram aldeados em missões de catequese e/ou reduzidos à condição de trabalhadores escravizados. Assim, os termos cabra e mameluco carregavam resquícios indígenas, pois “derão os portugueses este nome a alguns índios, porque os acharão rumiando, a erva Betel, que quase sempre trazem a boca”.[70] Indivíduos caracterizados por essa designação eram resultado da miscigenação entre africanos ou mestiços e desses com o elemento branco e o indígena.
Como antes da abolição, o Cariri Cearense era formado por fa- mílias mistas, sinal de que os cativos não estabeleciam relações sociais apenas com os seus companheiros de cativeiro, mas também com os outros estratos existentes na sociedade em que estavam inseridos. Um contato, no espaço da produção ou do lazer, que certamente influenciou na miscigenação percebida no Cariri Cearense.
Essa invisibilidade do negro e do índio pode ser explicada de acor- do com a mistura de sangues presenciada por Henry Koster: “a cor do sertanejo varia do branco, os quais em pouco número, necessariamente, ao moreno-escuro, com tantas gradações que será raro encontrar-se dois indivíduos com a mesma variedade de coloração”.[71]
Na região do Cariri, “a raça negra”, para Figueiredo Filho, “está quase absorvida, poucos negros legítimos restam ainda, o mestiço, com o preto e o de outra raça vai, cada dia, adquirindo as características do branco e do caboclo”.[72] A essas características de cores e tonalidades de pele eram atribuídos nomes, quiçá para facilitar o conhecimento do senhor sobre seus escravos como em: um é pardo, o outro é mulato e o último é caboclo, por exemplo.
Tais designações também podiam ser decididas no momento de matrícula e inventário de bens por juízes de paz e avaliadores, os quais nem sempre poderiam seguir uma lógica nas qualificações, além de considerarem a nação ou a cor dos cativos como se fossem categorias excludentes. Assim, à população de cativos eram impostas algumas qualificações, as quais, em última instância, poderiam ter um significado bastante aproximado.
Nesse sentido, pode-se dizer que o Cariri, a partir da segunda metade do século XIX, era um espaço complexo, de contrastes e seme- lhanças, com uma forte diversidade populacional. O número de escravos africanos já era bem menor em detrimento da quantidade de mestiços que a região apresentava, e, além disso, a presença do trabalhador livre e pobre já era mais marcante ao lado do escravo. Assim, a população se mostrava bastante numerosa e, principalmente, miscigenada. O branco, o negro e o índio se transformaram, no decorrer dos Oitocentos, em cabras, caboclos, mulatos e pardos.
Considerações finais
Este artigo objetivou apresentar a dinâmica demográfica da população es- crava no sul da Província do Ceará durante o período de recrudescimento da escravidão brasileira, ao longo do século XIX. Para isso, foi discutida a existência e a permanência da escravidão e de núcleos familiares no Cariri Cearense. As fontes analisadas, inventários, registros de batismos e fundos de manumissão, contribuíram para verificar-se a constituição de laços familiares duradouros nas escravarias e, principalmente, fora delas, como no caso da família mista.
Dessa maneira, a família escrava foi responsável por grande parte da organização social dos cativos, na proporção em que possibilitou sua integração na sociedade para além das senzalas, implicando o estabelecimento e o fortalecimento de redes de parentesco e sociabilidade, tanto endógenas quanto exógenas. Ou seja, tanto os cativos como os demais estratos sociais conviviam diariamente com livres e libertos.
A proximidade dos livres e libertos nos espaços de trabalho facilitava a formação de vínculos consanguíneos com os escravos. Desses enlaces, advinha o segundo traço distintivo da escravidão no Cariri Cearense: o crescimento vegetativo dos indivíduos considerados mestiços. Resultado das interações entre livres, libertos e escravos que se caldearam com nativos e descendentes do branco colonizador, constituiu-se uma população misturada, miscigenada, mestiça.
Notas